Bate-papo com Pedro Pires, da Cia do Feijão

Bate-Papos   |       |    6 de julho de 2010    |    1 comentários

Já faz meses que convidamos Pedro Pires pra tomar uma cachaça conosco e conversar sobre esse agradável assunto: Lei Rouanet e Políticas Públicas para as Artes Cênicas. Mas como a proposta temática que fizemos a ele gerou uma entrevista de mais de duas horas, só agora estamos conseguindo publicá-la. Felizmente por um lado e infelizmente por outro, todas as questões levantadas neste bate-papo com relação à Lei Rouanet continuam muito atuais e, mais do que isso, continua sendo extremamente necessário debatê-las.

O convite ao Pedro, obviamente, não foi aleatório. Além de ser gente boa e trabalhar aqui perto de casa, ele faz parte de um coletivo estável de teatro chamado Companhia do Feijão, que está envolvido com as políticas públicas pra cultura desde sua fundação, em 1998, tendo acompanhado importantes momentos de lutas e conquistas do movimento do teatro de grupo da cidade de São Paulo. Além disso, ele compõe a Comissão de Políticas Públicas da Cooperativa Paulista de Teatro e, finalmente, mas não menos importante, está sempre envolvido com encontros e debates a partir dessa temática – como debatedor e organizador. (Destes encontros, o que mais nos moveu a convidá-lo a bater um papo com a Bacante foi um debate  realizado durante o Cena de Teatro – Festival de Teatro de São Caetano, que registramos neste post aqui.)


Foto de Jorge Etecheber РPe̤a Reis da Fuma̤a

A idéia do longo bate-papo que você pode ler abaixo foi abordar de maneira bastante direta e até mesmo didática as possibilidades de políticas públicas ideais e completas para a cultura (especialmente as artes cênicas) e os esboços de políticas que temos no cenário atual; tudo isso a partir do histórico e da experiência da Cia do Feijão. Naturalmente, fizemos digressões, a ponto de falarmos até do Dráuzio Varela e do filme da Rita Cadilac. Isso provavelmente vai ser um bom motivo pra você querer parar de ler no meio da entrevista. Então, pra não correr o risco de que partes fundamentais do raciocínio se percam, me dei o direito de destacar algumas partes, mas, claro, você tem, por sua vez, todo o direito de me ignorar e ler tudo ou fazer sua própria edição, este é, aliás, o procedimento mais indicado.

Como a Cia do Feijão financiou seus projetos ao longo de sua história?

Bom, quando a Cia do Feijão começou, não existia ainda a Lei de Fomento, era um momento… foi 97 pra 98… era um momento que não tinha nenhuma política pública constante de financiamento. Então, na verdade, a Cia do Feijão surgiu… ganhou seu primeiro dinheirinho, vamos dizer assim, com um projeto do Sesc, que era um projeto que uma época o Sesc colocava mais dinheiro concentrado em uma atividade, então a gente começou com uma turnê que a gente fez com um espetáculo pequeno em cima do Julgamento do Homem Elefante, do Brecht, que é um entreato que está no Um homem é um homem. Então, a gente foi chamado pelo Sesc pra fazer alguma coisa do Brecht, a gente escolheu fazer isso. Nesse momento a Cia do Feijão recebe seu primeiro cachê, vamos dizer assim, e esse dinheiro possibilitou a gente se remunerar e guardar um pouco pra gente poder circular e pra companhia ter algum fundo de caixa. No ano seguinte, que foi 99, a gente também participou de outra turnê do Sesc (Porque essas turnês do Sesc elas viajavam pelo estado de São Paulo, em todas as cidades que tinham Sesc, a gente ia se apresentar. Nesse segundo ano, ele foi expandido, tinha as cidades-pólo, onde tinha o Sesc, e essa cidade cobria cinco outras cidades na redondeza que não tinham Sesc. Então, era um circuito mesmo. Em 99, que foi com o Ó da Viagem, que era em cima do Turista e o Aprendiz do Mário de Andrade, a gente, por exemplo chegava em Taubaté, que era a cidade que tinha Sesc, então a gente fazia Taubaté, Cruzeiro, Pindamonhangaba, Guaratinguetá e São Luiz do Paraitinga. Então era cada dia numa dessas cidades que a gente apresentava o espetáculos e cada cidade também recebia os artistas e as programações dessas cinco cidades, então era um monte de gente e tinha música, tinha teatro, tinha dança. O único pré-requisito era que você tinha que ter espetáculos relativamente maleáveis pra se apresentar nas condições que cada uma dessas cidades apresentava. E tinham roteiros, por exemplo, a gente fez Vale do Paraíba, Piracicaba e Baixada Santista, então foram quatro semanas, foi Taubaté, São José dos Campos, Piracicaba e Santos – as cidades-sede. Então era um mês inteiro que a gente fazia espetáculos de quarta a domingo; e segunda e terça viajava, era dia de mudar de sede.) Esse foi o segundo dinheiro que a Cia ganhou.


Fotos de José Romero – Peça O Ó da Viagem

Depois, esse projeto do Sesc foi abandonado e não tinha edital, era assim, você apresentava seu projeto no Sesi, ou eles chamavam pessoas… então na verdade você conhecia as pessoas que faziam a programação e falava: “ó, tenho tal projeto”, aí ele podia comprar ou não seu projeto e ele falava quanto que ele podia pagar e você aceitava ou não. Isso, ao mesmo tempo, essa época foi a época que surgiu o Arte contra a Barbárie aqui em São Paulo, que começou justamente a discutir essa ausência de uma Política Pública para o teatro. E o que se entende por política pública? É uma política que dura ao longo do tempo, ou seja, ela não é uma política do governo que está de plantão, ela é uma política que se estabelece ao longo do tempo. Isso, do ponto de vista do criador, como o Moreira fala, ela é estrutural e estruturante – ela é estruturante porque, em face a uma possibilidade de você ser subvencionado pelo seu trabalho, você pode projetar num prazo mais longo aquilo que você vai fazer, que é diferente, por exemplo do Sesc, porque no Sesc calhou que nesses dois anos a gente foi chamado e a gente era chamado assim dois meses antes de começar o negócio, que fechava. Então, se não tivesse fechado, você ia ter que falar: “bom, não dá pra fazer”, ou seja, você não poderia estar se dedicando só a isso, porque se não saísse esse dinheiro, você ia viver do quê? Aí não dava. O que tem de estrutural e estruturante numa política pública conseqüente é isso: que você tem um horizonte maior de trabalho que permite que você tenha uma dedicação se não quase que exclusiva, bem exclusiva ao seu trabalho artístico. Mas, enfim, já entrei um pouco nos meandros da política pública. Isso foi em 99, depois a gente conseguiu um edital aqui, outro ali, era um edital do Estado [de São Paulo] pra produção de espetáculo que era o… como é que chamava? É o anterior ao ProAC. Foi um edital lançado pelo governo Covas e que saía um a cada “quantos anos eles queriam”, não tinha uma freqüência, não saía todo ano esse edital. Inclusive ele já não vinha saindo há muito tempo e, se não me engano, o Marco Antonio Rodrigues e o Reinaldo Maia foram algumas das pessoas que fizeram pressão pra que isso saísse porque era uma possibilidade de produção e de criação de espetáculo pra grupo e tal…

E também não era uma Lei?

Era um programa de governo, não tinha em Lei, não estava em Lei, era uma coisa que existia aquele projeto, mas não tinha obrigação do governo soltar, tanto que não vinha soltando. Antes disso, eu não sei como é que funcionava, efetivamente, eu só sei que talvez nos anos 70, 80 tivesse alguma coisa, mas não era constante, mas aí vocês precisam perguntar pro Moreira que ele viveu essa época e eu não vivi, fazendo teatro já e tendo grupo, tal. Então, na verdade, o nosso segundo espetáculo adulto que veio depois do Ó da Viagem, que foi O Antigo 1850, ele foi criado com o dinheiro desse edital que a gente entrou já, um edital com concorrência e faixas de prêmios, a gente entrou no mais baixinho porque a gente era até certo ponto desconhecido, então onde tinha mais prêmios foi que a gente entrou, e a gente conseguiu esse pra montar esse segundo espetáculo, isso foi em 2001 que a gente estreou. Depois, em 2002 o Fomento passa. Em 2002, a gente apresentou um projeto pra Lei de Fomento, a primeira edição, não ganhamos, depois em 2003, no início do ano, a gente ganhou o Fomento, que a gente vem renovando até hoje, 2010, mas que não são projetos anuais os do Feijão, nossos projetos geralmente ultrapassam um ano, então não é que a gente entra todo ano. A gente tem esse primeiro que é Tradições Dramáticas Brasileiras, depois a gente tem um estudo sobre A Alma Brasileira Através de Seus Personagens, depois a gente tem Por que a Esquerda se Endireita?, a Utopia, primeira versão e o Quimeras que é o que a gente tá agora até o fim do ano. Então vamos ver, de 2003 até o final agora de 2010, são sete anos, a gente tem cinco fomentos, são cinco em sete anos, então não é todo ano. O que é diferente da realidade de outros grupos, que tem outros custos de manutenção e outras dinâmicas. Mas, enfim, então a partir de 2003, a gente é mantido, o grosso das nossas despesas – aluguel de espaço, remuneração das pessoas que fazem parte do Feijão – pelo Fomento, com algumas lacunas que a gente fica sem Fomento, entre uma edição e outra tem alguns meses que a gente fica sem nada. Além disso, a gente tem recursos que provêm de vendas de espetáculos, pra prefeituras ou pra Sesc, Sesi, enfim, a gente vende os nossos espetáculos, porque pela nossa dinâmica a gente mantém vários deles em repertório. Além disso, a partir de certo momento no Fomento, a gente não tem usado mais o Fomento para produção de espetáculos, a gente tem usado o Fomento para pesquisas e manutenção da nossa sede. Então, depois que a gente entrou no Fomento, a gente vê um espetáculo que foi subvencionado pelo Prêmio Myriam Muniz, que foi o Nonada, não, minto, Nonada foi na época do Fomento. O Pálido Colosso que foi Myriam Muniz e o Veleidades Tropicaes que foi pelo ProAC, a produção do espetáculo, que aí pegam as lacunas que a gente está sem Fomento também, porque o Fomento acaba, a pesquisa acaba, e entra na fase de produção do espetáculo que vem dessa pesquisa. Então, basicamente, são essas as formas de financiamento do Feijão.


Fotos de José Romero – Peças: Nonada e Pálido Colosso, respectivamente

Algumas dúvidas com relação a isso: então teve essa primeira vez que vocês apresentaram projeto para o Fomento que não foi aprovado, depois disso todas as vezes que vocês apresentaram projetos eles foram aprovados?

Todos os nossos projetos foram contemplados.

Com relação às vendas de espetáculos, você citou exemplos de compradores possíveis, mas eu queria saber o inverso: se existiu algum caso ou se vocês já prevêem algum caso em que vocês não venderiam o espetáculo – pra alguma certa instituição ou algum evento ou pra um tipo de…?

Já, já teve. Às vezes tem coisas, por exemplo, festival que abre inscrições pra uma “concorrência” e que paga, sei lá, 1500 reais, 2 mil reais… aí a gente não se inscreve; como tem lugar em que a gente vai e faz de graça. Depende da situação. Nunca aconteceu de alguém querer comprar um espetáculo nosso e a gente falou: “não, lá a gente não vai porque essa pessoa não é idônea” – nunca aconteceu com a gente, até porque em geral quem compra da gente são instituições… é… – é ilusório falar que existe isso, né, a não ser que seja uma maracutaia muito grande – mas, em geral, quem compra são prefeituras, algumas outras instituições, mas nunca aconteceu com a gente de falar: “não venderemos esse espetáculos pra Fulano de Tal porque ele é desonesto ou porque nós não concordamos com ele”… Já aconteceu de a gente não se sujeitar a regras que são impostas por alguns festivais, mas no caso não é que eles procuraram a gente, é que eles abriram a possibilidade de a gente se inscrever e a gente não se inscreveu. Talvez depois você possa até falar com a Fernanda Haucke que ela que cuida mais disso, ela que já diz os nãos, entendeu? Mas, em geral, às vezes vem convite de festivais ou de lugares que querem que a gente vá por bilheteria, a gente fala: “ó, por bilheteria a gente não vai porque tem um custo pra gente ir e a gente vive disso”. Como tem outros casos que falam: “Dá pra vocês virem aqui?”, e a gente fala: “Claro, dá pra vocês arrumarem o transporte?”. Tem uma noção… é muito louco isso, tem muita gente que pensa o teatro como uma coisa de diletante, não sei se dá pra vocês entenderem, é quase como uma tiazinha lá do interior que fala: “Vem aqui fazer a pecinha de vocês” e acha que a gente vai dar pulos de alegria porque a gente vai ter um lugar pra apresentar. E não é assim, é uma profissão. É como ir ao dentista… você não fala assim: “ô, dentista, concerta meu dente aí”. Ele vai falar: “não, você me paga”. Mas a arte, o teatro, ainda tem, pra muita gente, essa ignorância, achando que o cara tá fazendo por prazer… (pausa) lógico que é por prazer que a gente faz. Senão a gente não estaria nessa. Mas a gente tem uma noção precária do que é o profissionalismo da arte no Brasil ainda. E às vezes tem muita gente que fala que “não, você está indo pra ganhar dinheiro” [tom de condenação], ué, tô indo pra ganhar dinheiro, é a minha profissão. Até que se revogue o capitalismo e a república, a gente precisa ganhar pra pagar nossas contas, né, a gente não tem mais pai nem mãe que sustente a gente, então a gente precisa. E também valorizar o que a gente faz, né, porque a gente sua a camisa pra fazer isso.

E tem também os casos de Festivais que usam verba pública e que não pagam os grupos que se apresentam, por exemplo. Eu não conheço nenhum festival que não tenha verba pública.

É, isso é um buraco negro, né? A hora que o dinheiro sai do Estado e não é com regras claras, a gente nunca sabe quem está embolsando ou quanto cada um está embolsando. Então, essa transferência do recurso público – que seja pra ONG, seja pra OSCIP, seja pra Fundação – é uma forma de você burlar uma transparência, porque a partir do momento em que entra numa ONG, a necessidade de ela prestar contas é muito menor que a de uma Secretaria de Estado e isso é uma coisa que já é histórica no Brasil, que é essa prevaricação público-privada. O dinheiro vai pra uma associação e aí essa associação gere esse dinheiro ao bel prazer dela, porque ela está muito menos amarrada ao Estado do que o Estado propriamente dito. Isso porque o Estado tem uma série de restrições e de necessidade que dentro da perspectiva “eventualista” como o governo vem tratando a cultura, eles precisam fazer isso do dia pra noite, porque é pra dar votos, pra aparecer a prefeitura de Tal, então você precisar ter agilidade pra contratar, porque é muito mais uma operação de marketing do que uma operação de cultura e pra uma operação de marketing e de propaganda, você tem que ter agilidade, porque as coisas mudam de um dia pro outro. Então, cai uma chuvarada em São Paulo, despenca o índice de popularidade do prefeito, ele precisa começar a fazer ações que levantem a bola dele, porque a próxima eleição tá aí. Então, esse é o raciocínio, que é diferente do de uma política pública constante e, justamente, os caras não gostam dele porque eles não podem manipular essa verba, essa verba tem endereço certo. E como se na sua casa, você ganha X e você tem dois filhos, aí você escolhe um, diz “esse aqui vai ter tudo” e o outro “tu te vira, negão, vai lá vender bala na esquina”.

E nesse mesmo sentido, você sabe que a Secretaria de Cultura de BH é uma Fundação hoje?

Pois é, mas isso é normal. E, na verdade, aqui em São Paulo, no Estado de São Paulo, se você pensar a Assaoc, ela é uma fundação, existe ainda a figura da Secretaria de Estado da Cultura, mas quem faz todo o papel de contratador e de gerenciador dos projetos é a Assaoc, porque ela tem uma agilidade. Só não é tão escancarado, por enquanto.

A partir disso, gostaria que você definisse qual é a posição da Cia do Feijão com relação à Lei Rouanet, tanto no sentido de vocês se inscreverem diretamente, quanto no sentido de fazer parte de projetos que estão apoiados pela Lei Rouanet.

Na verdade é um grande saco de gatos a sua pergunta, então eu vou dividir ela estrategicamente. Assim, o Arte contra a Barbárie, de 98 pra 99 (me falha exatamente a data precisa, mas acho que o primeiro manifesto é de 99), ele faz um diagnóstico naquele momento muito preciso, porque, assim , eu já falei aqui de política pública, então você pensando política pública, não é que não existia política pública no Brasil, existia. Essa política pública se chamava Lei Rouanet. E o que que faz a Lei Rouanet? Qual o processo? (pausa) Lei Rouanet é uma lei complexa, que vem de outra lei que se chama Lei Sarney, que é anterior e tem o nome do próprio dono do bigode, e que ela tem vários mecanismos dentro dela, tem o Fundo Nacional de Cultura, que deveria ser uma coisa que funcionasse, mas não funciona; tem outros mecanismos de investimento de dinheiro na cultura; mas efetivamente o que funcionou e funciona na Lei Rouanet é que é uma Lei de Renúncia Fiscal. Então explicando isso e seguindo essa linha didática da conversa: o governo todo ano, independente do orçamento do Ministério da Cultura, fala: “esse ano destinaremos um teto de um bilhão de reais para renúncia fiscal”, ou seja, Lei Rouanet. Então, você tem uma empresa que é auferida pelo lucro líquido – não é qualquer empresa que pode usar esse mecanismo, são empresas grandes, pra ser auferida pelo lucro líquido são empresas de médio a grande porte, porque as pequenas empresas tem outro mecanismo de apuração de lucro que é o lucro presumido, que já é um fixo. Então, essas grandes empresas tem o imposto de renda todo ano pra pagar. Um percentual desse imposto de renda devido ao governo, elas podem destinar para a Lei Rouanet, em várias áreas da Lei, que é educação, cultura e artes em geral. Então, voltando, o Arte contra a Barbárie disse assim: “existe um único mecanismo de financiamento para a cultura e para as artes no Brasil, esse mecanismo se chama Lei Rouanet. Esse mecanismo pega o dinheiro do contribuinte brasileiro, do Estado brasileiro, essa empresa pega esse dinheiro e vai destinar pra onde ela bem entender, vai aplicar esse recurso no projeto que ela quiser”. Enfim, a empresa tem um certo dinheiro dela e que ela vai destinar ao projeto cultural e o diagnóstico do Arte Contra a Barbárie era justamente esse, ele perguntou: “Onde é que essa empresa vai colocar o dinheiro dela?” e o que acontece, grosso modo, é que essa empresa vai colocar o dinheiro dela numa ação que indiretamente fortaleça a imagem dessa empresa, não numa ação que fortaleça a cultura de região onde ela está, o país ou o estado dela, ela vai usar esse recurso como um recurso de publicidade, de propaganda, de marketing dela. Então, no frigir dos ovos, o que resulta? Em quem o OMO vai colocar o dinheiro dele pra patrocinar um show? No Arnaldo Antunes, no Roberto Carlos – botando os dois meio parecidos – ou no grupo A Barca, que tem uma pesquisa sobre música tradicional brasileira, que viaja o Brasil todo, que faz levantamento e que tem as recriações e as criações dele. Logicamente o OMO vai ver… “qual é nosso público-alvo?”; “ah, tem um produto novo pra juventude…”, “ah, então vamos botar o dinheiro no Arnaldo Antunes”; ou não, “a gente tá perdendo terreno nas senhorinhas”; “ah, então vamos botar no Roberto Carlos”. “A Barca? Quem é Barca?”. Não existe. Né? Então, quer dizer, esse recursos ficam na mão das grandes empresas, que têm o seu Departamento de Marketing e que usufruem e pensam, mercadologicamente, como é que vão usar esses recursos. Isso é um aspecto. Tem um outro aspecto que é o dos produtores das artes, que não são os artistas, em geral, são os produtores, e que normalmente têm os canais já com essas empresas. Esses produtores, logicamente, até às vezes vão conseguir fazer o projeto x ou y que tem algum diferencialzinho, mas ele tá interessado mesmo no lucro dele, da produtora dele, ele tá pouco se lixando em fazer um trabalho artístico. E ele vai ficar com a maior parte do bolo, que ele vai incorporar como lucro dele. E por outro lado, você tem os artistas que fazem pesquisa, que têm um trabalho continuado e que não estão ligados ao interesse desse mercado: que é vender. Então, toda essa parcela do criador artístico fica à deriva com a Lei Rouanet, porque o que ele faz não é do interesse dessas grandes corporações. Ou então, se ele é um cara que começa a ter uma projeção, ele logicamente vai ter que começar a fazer, não obras, mas produtos, que se adequem a essa lógica de consumo. Na verdade, é uma lógica de consumo no final das contas, tanto que esses caras não falam em espetáculos, eles falam “produto”. Você pergunta: “como é que vende?”, o cara fala: “não, esse produto” ou “o produto da Cia do Feijão precisa ter isso, isso e isso, pra atingir um público alvo assim, assim, assim e pra dar tantos por cento de retorno à imagem do produto”, que é o que está patrocinando o “produto” da Cia do Feijão. E, se você observar também, grande parte dos recursos usados pela Lei Rouanet são recursos que vão para publicidade e propaganda. Tem até um jornal em São Paulo que eu não sei se ele ainda faz isso, que ele fazia um looping com o dinheiro dele. Ou seja, ele pegava uma companhia de teatro ou de dança e falava assim: “grupo, seguinte, eu tenho um tanto de lucro e eu tenho espaço de mídia no meu jo rnal, então eu te dou esse dinheiro como patrocínio via Lei Rouanet e você faz a propaganda no meu jornal e me paga esse dinheiro de volta”. Então, é o que eu chamo de looping: o jornal dava o dinheiro pra essa companhia, ou esse grupo ou esse produtor, e esse produtor comprava mídia nesse jornal pra divulgar o trabalho dele. Ou seja, esse dinheiro saía por uma porta da empresa e entrava pela outra – saía pela Lei Rouanet e entrava pelo departamento de vendas de publicidade. Daí, quer dizer, a grande questão da Lei Rouanet é que esse recurso que era público e que deveria ser pensado, a utilização dele ser pensada numa perspectiva de contemplar a maioria dos cidadãos ou a relação do cidadão com a arte, com o espetáculo, com a cultura, ele perde essa característica que é republicana – da “coisa pública” – e adquire uma característica privada, que é: o que que vende mais sabão em pó. E em geral, esses caras onde esse dinheiro é aplicado eram atividades culturais que deveriam ser atividades culturais do livre mercado, como é a Broadway. Por exemplo, a Broadway não tem dinheiro do Estado que eu saiba, então se o produtor quer fazer o Miss Saigon ou O Rei Leão, o cara vai lá, ele pode até emprestar dinheiro do banco, vai montar o espetáculo, e aí se o espetáculo der lucro, ele embolsa o lucro; se o espetáculo empatar, beleza; se o espetáculo der prejuízo e esse cara não tiver fundo pra cobrir, ele quebra. E nos EUA quebra mesmo, o cara vai até preso dependendo de como ele quebrar. Então, essa ótica perversa brasileira, faz com que a gente crie uma Broadway aqui com dinheiro público. Ou seja, o produtor nunca quebra e ele não corre risco, porque se o show do Roberto Carlos – não dá nem pra falar em música porque, de certa forma, o filão da música é um filão que vive um pouco a economia do mercado, porque é outra escala, a música tipo Roberto Carlos, sertanejo, essas coisas, é uma coisa que dá dinheiro mesmo, os caras ganham dinheiro vendendo e o pessoal paga… porque é de massa, isso que a gente falou em São Caetano também, é outra escala a da produção de massa, porque tem televisão no meio, tem muita grana, é um mercado, uma indústria cultural. Quando o produtor começa a produção dele a conta já tá fechada. Porque o mecanismo é esse: ele apresenta o projeto na Rouanet, a Rouanet aprova – porque dentro das regras da Rouanet não tem nenhum análise mais profunda de se aquilo que ele tá apresentando é relevante ou irrelevante pra cultura, a princípio tudo é relevante. Então, depois de aprovar no Ministério, ele sai pra captar, ele capta 500 mil nessa empresa, 500 mil nessa empresa, 500 mil nessa empresa: ele tá com um milhão e meio. Um milhão e meio já paga a produção dele, o lucro e dois meses de temporada, então ele vai produzir, fazer os dois meses de tempo rada. Se o espetáculo ou a atividade estourar a boca do balão, ele vai continuar e aí sim ele vai entrar no lucro dele de venda. E, se não der lucro, beleza, o dele já tá no bolso e ele já tá engatilhado no próximo projeto, porque como ele também não é o criador, ele não tem essa estafa da criação, porque você sabe que quando você cria uma coisa, quando você termina, você tem que ter um tempo até você criar uma próxima coisa, porque você não é maquininha de criação quando é uma criação artística. Então, envolve várias questões. Além disso, tem uma outra figura dentro da Lei Rouanet que é o atravessador, que não é nem o produtor, nem a grande empresa, nem o “artista”. São os caras que fazem a ponte entre o produtor e as empresas. Esses caras têm o portifólio de empresas que dão lucro (tem lucro líquido todo ano), que não têm um departamento de marketing assim tão desenvolvido, mas que eles têm contato lá dentro e sabem que , no final de ano, entre setembro e dezembro, eles vão ter uma grana que ou eles dão pro governo ou eles podem desovar em outro lugar. É bem “desovar” mesmo o termo, porque a empresa não tem nada a ver com cultura, não quer saber. Esses caras foram sondando essas empresas, provavelmente eles devem passar uma grana pra alguém dessas empresas também, eles vão nessas empresas e fazem a ponte – muito com projeto social. Eu sei porque eu trabalhei num projeto social que tinha um cara que fazia “captação”. Não é captação, é maracutaia. Ele vai nas empresas que têm dinheiro pra disponibilizar pela Lei Rouanet, pega o dinheiro desses caras joga no projeto social e fica com 20% pra ele, que é a taxa que ele cobra. Então é um atravessador. É que nem nos anos 70 tinha o atravessador do mercado lá do CEAGESP, que é o cara que comprava do pequeno produtor a um preço irrisório e trazia pra São Paulo. E ele pagava um real pro pequeno produtor rural e vendia por dez no CEAGESP. Então esses nove eram o lucro dele só por trazer pra São Paulo. E isso na Lei Rouanet também existe, esse atravessador. Eles até tentaram criar uns mecanismos pra impedir, mas na verdade continua e é estelionato, não tem outra palavra, tá pegando um dinheiro que… é um atravessador. Mas, enfim, acho que eu cobri bem a Rouanet.

Acho que você definiu bem o diagnóstico que o Arte Contra a Barbárie fez do que seria a política cultural que existia naquele momento e que se limitava a isso. E daí é possível dizer então que o posicionamento da Cia do Feijão com relação à Lei Rouanet se alinha a essa visão do Arte Contra a Barbárie?

Sim. E perdura até hoje. E, no frigir dos ovos, a Lei Rouanet é uma privatização de um recurso público e que não se projeta no tempo, é estanque, projetinho aqui, projetinho ali, projetinho lá.

Não é estruturante.

Não é estruturante pra um tipo de trabalho como o da Cia do Feijão. É estruturante sim pro cara que tem uma produtora que toca dez projetos ao mesmo tempo e que não é artista, ele é o produtor, ele, nesse caso, vamos dizer, é um capitalista. Ele pega dinheiro aqui pro filme, pega dinheiro ali pro show, pega dinheiro ali pro teatro, pega dinheiro ali pra exposição de artes plásticas e ele faz o lucro dele. Aí ele paga mal o cara do cinema, paga mal o cara do teatro, paga mal o cara das artes plásticas e esse artista fica sempre na dependência de que outro produtor venha chamá-lo pra fazer alguma coisa e ganhar uma merreca, ou seja, esse artista não pode viver bem. Porque ele fica dependendo desses caras. Então como é que ele pode estruturar o trabalho de pesquisa dele? Não dá, né?

Com relação a essa questão, nós sabemos que existem muitos grupos em São Paulo que, como a Companhia do Feijão, estão alinhados a esse pensamento que surgiu no Arte contra a Barbárie e continua até hoje, mas eu gostaria que você mapeasse como se dá o posicionamento na classe artística paulistana. Na sua visão, esse é um pensamento comum na classe teatral em São Paulo ou há muitas discordâncias?

É bem comum dentro dos grupos, porque aí tem uma diferença, que é um pouco da visão de mundo de quem faz teatro de grupo. Porque você tem quem faz teatro de grupo e quem fica, entre aspas, “no mercado”: contratado aqui, contratado ali, não tem vínculo. Mas nos grupos a gente percebe que a Lei Rouanet se tornou um fracasso pros grupos, porque aquilo que a gente faz não tem valor de mercado, não é facilmente vendido, não é pra muita gente – ou poderia até ser pra muita gente, mas dependeria de outros mecanismos de circulação, porque a gente sabe que quando a gente circula os nossos espetáculos em regiões que têm um trabalho de cultura, ele funciona, mas ele não é um evento que é só divertimento, um evento pra massa, ele tem as particularidades dele. Então, dentro dos grupos existe essa visão de que a gente tá excluído da Lei Rouanet, a Lei Rouanet não serve porque ela serve aos interesses de marketing das empresas e vai patrocinar o mainstream da televisão. E a gente faz outro tipo de trabalho, que é um trabalho muito mais ligado à pesquisa artística, a um aprofundamento de questões mesmo do ser humano; e a indústria cultural, não, ela trabalha na superfície, no entretenimento, na diversão. Então, dentro do panorama do teatro paulistano, que eu posso falar, existem pessoas que vão pulando de produção em produção. E se essas produções, em geral, são patrocinadas pela Lei Rouanet, ele vai falar: “Não, não pode acabar a Lei Rouanet porque eu vivo da Lei Rouanet”. Logicamente, os produtores, que é a grande… bom, alguns produtores, também, porque os produtores paulistanos estão caindo aos pedaços… a maior parte dos produtores não sobrevive nem da Lei Rouanet, os pequenos produtores, você tem 4 ou 5 grandes produtores que abocanham todas as fatias, grande parte do dinheiro da Lei Rouanet. E uma parte maior ainda vai pra projetos de ONGs educacionais que não são artísticos.,. por exemplo, a Telefônica eu sei que patrocina através da Lei Rouanet projetos que têm interesses educacionais, ela tem esse foco, ou pelo menos tinha há 4, 5 anos. Então, se você pensar ainda na arte, a educação ainda dá mais visibilidade pra projetos sociais, mas a arte ainda é o cu do cavalo do bandido. E isso fora a arte que é da grande elite, entendeu? Então, uma exposição de artes plásticas que vai lá todas as senhoras do high society paulistano, a Sala São Paulo, que a high society paulistana mandou construir, pra quando ela não estiver na Europa ela poder freqüentar os concertos, todas essas coisas, enfim. E você tem na verdade uma grande desinformação no Brasil de o que é uma República, de o que é uma verba pública e isso é histórico no Brasil. O brasileiro continua sendo aquele caipira com chapéu na mão que fala assim: “sim, senhor”, “não, senhor” pro patrão dele… e quem tem esse olhar mais horizontal, toma na cabeça, quem fala assim: “eu sou um cidadão, eu tenho esses direitos e eu tenho esses deveres”. Então, se eu tenho direito de ter acesso à cultura, como está na nossa Constituição, eu tenho direito de ter acesso à cultura e não de que eu tenha acesso à cultura via Lei Rouanet e que eu ainda preciso pagar 130 reais por um ingresso, 200 reais por um ingresso, como é no Alfa Real, por exemplo, que é um teatro que mantém a programação dele via Lei Rouanet, basicamente, e que cobra 200 reais, 150 reais pra você ver um balé, pra você ver a Pina Bausch, pra você ver sei lá quem, entendeu? É mais uma perversidade da Lei Rouanet.

Nesse contexto, como você vê o Vale Cultura pra isso?

O Vale Cultural é inútil. Não é uma política… é uma política talvez populista, você está dando pra um cara cinquentinha por mês, você vai onde você quiser. Aonde que ele vai? Se ele puder trocar como vale de supermercado ou nas Casas Bahia pra ele comprar um radinho ou pra ele pagar prestação, ele não vai gastar na cultura. Ou se ele tiver que gastar na cultura – que aí é um outro problema que eu vou entrar nele depois – ele vai juntar o vale pra ir ver o show do Chitãozinho e Xororó…

Ou o mesmo exemplo do Roberto Carlos ou quem seja, que já foi pago com dinheiro da Lei Rouanet e vai ser duplamente pago com dinheiro público…

É. E isso por quê? Porque na verdade você não tem um projeto pra cultura, de desenvolvimento do cidadão pra cultura ou pras possibilidades que a cultura e as artes apresentam pra ele. Esse cara tá abandonado… há quinhentos anos. Ele é mal e porcamente alfabetizado na escola, tanto é que os números da educação mostram que aumenta o número de alfabetizados, mas tem analfabetismo funcional. Então, assim, a não ser um ou outro que parece que é meio iluminado e que o cara por conta própria vai fuçar essas coisas, você não tem na formação do cidadão brasileiro, a relação dele com a cultura, com as artes. E se você não tem isso, como é que você quer que um cara que trabalha oito horas por dia num canteiro de obras, ainda demora mais quatro pra chegar em casa, oito com quatro, doze, o cara perde meio dia dele no trabalho e no trânsito. Depois ele tem que chegar em casa, dormir, fazer a comida dos filhos, se é mulher – né, porque o homem também não tá aí – como é que você quer que o cara pense em literatura? Como é que você quer que o cara pense em teatro? Como é que você quer que o cara pense… você pega mesmo uma arte mais industrial que é cinema… ele não tem um cinema perto da casa dele. Você entende? Quando a gente faz temporada aqui, no Feijão, a gente sabe que mesmo que a gente faça de graça, pra um cara que mora na periferia, só o preço da condução já inviabiliza a vinda dele pro teatro, porque ele não tem essa sobra por mês. Então, se você não tem uma educação de qualidade, que mostra essa outra possibilidade pro indivíduo; se você não tem aparelhos culturais próximos ao lugar onde esse cara mora, esse cara não vai se interessar por outro tipo de cultura que não seja aquela cultura que é indústria cultural e que é vendida pela televisão como objeto de desejo, que é publicidade pura. Então, ele vê o Chitãozinho e Xororó na televisão, ele quer ver o show do Chitãozinho e Xoxoró ao vivo, é o sonho dele e não tá errado, porque aquilo a que ele tem acesso, entendeu? Agora, que televisão aberta ou mesmo a cabo faz alguma programação que seja um pouco mais profunda? Nenhuma. É tudo zap. Se você não pegar o cara naqueles dez segundos ele não fica pra ver o programa. O problema… quer dizer, engraçado, outro dia eu estava lendo uma entrevista de um cara que fala sobre educação no Brasil e ele falava assim: “O problema da educação no Brasil é secular há décadas”, aí precisava por entre aspas, assim, “é secular mais precisamente há dez décadas” (risos). Então, o nosso problema, o da cultura, tá ligado a essa questão que é secular há décadas. Mas, enfim, então o Vale Cultura, nesse panorama, ele é inútil, entendeu? Como os Pontos de Cultura, me parece que também é uma coisa populista, porque você vai mostrar o que no Ponto de Cultura? Tá certo, alguns ponto de cultura provavelmente vão…

É um pouco diferente porque deveria apoiar projetos que já deveriam existir, né?

É, mas os que já existem são poucos. As pessoas entram na onda do Ponto de Cultura como uma ONG pra ganhar um dinheirinho do Estado e pra fazer que nem a gente viu quando a gente foi pro nordeste, um grupo de universitários com cabeça de vento ensinando mulheres rendeiras de uma cidade do nordeste a fazer artesanato com jornal enroladinho, fazer cestinho de jornal de papel. Esse é o absurdo brasileiro, que dá no Pontos de Cultura, que dá no Vale Cultura, porque você não tem um pensamento geral sobre a arte e sobre a cultura, você age ali. Então, por exemplo, você tem esse pessoal que faz… esses Pontos de Cultura viraram “casa da Mãe Joana” do que se diz hoje que é o Teatro do Oprimido do Augusto Boal. Eu já vi algumas coisas de qualidade péssima, então isso vai espantar o público. Vão falar: “teatro? Tô fora!”. E com razão, porque a qualidade é de terceira. É de uma pretensa agitação social ou conscientização social, mas é mal feito, mal organizado, é complicado.

Claro que não dá pra estabelecer uma regra geral, acaba sendo assim quando é feito sem cuidado, não é que todos vão ser, né?

Mas é a questão da regra, né? Toda regra tem suas exceções. Eu tô falando da regra, não da exceção. Tem projetos de ONG que são maravilhosos, que são bem feitos, que são dignos, que são feitos por pessoas honestas, que honram mais do que o Estado até cada centavo que recebe? Sim. Mas me parece que a maioria é não. Existem projetos dentro da Lei Rouanet que são de qualidade e que têm profundidade? Sim. Mas a maioria é não. Por isso, eu não posso também, por exemplo, fazer um terrorismo que nem algumas pessoas fazem, algumas pessoas que estão aí de plantão pra enchuriçar a vida dos outros e falar: “O Ói Nós tá com dinheiro da Lei Rouanet, o Ói Nóis é o Satanás”, porque eles ganharam o edital da Petrobras. Mas que absurdo! A gente do Feijão entra em edital quando é via Lei Rouanet e se a gente tivesse acesso a alguma empresa que fosse nos pagar via Rouanet, a gente ia, até pra desafogar o Fomento, porque tem gente chegando no Fomento e a gente tá entupindo o caminho deles. Se a gente tivesse uma outra maneira de sobreviver, o Feijão, que não fosse a Lei do Fomento… e a gente pesquisa, a gente não fica marcando toca, esperando, a gente tá sempre fuçando, falando: “como é que a gente pode manter o nosso trabalho como a gente quer fazer?”, entendeu? A gente fica procurando outras maneiras de manter o trabalho. E se for… sei lá… se tiver um empresário que veja o nosso trabalho e fale: “eu vou patrocinar vocês via Lei Rouanet”, a gente vai fazer, porque a gente sabe que o nosso trabalho é honesto, é digno e é importante. Como o próprio Grupo Galpão, é um grupo que é mantido por verba de Lei Rouanet. Você vai falar que o Grupo Galpão é safado por causa disso? Nããão. O Grupo Galpão conquistou e conseguiu furar uma brecha e se mantém hoje com outros projetos além do trabalho deles, via Lei Rouanet. Aí tá uma perversidade também que as pessoas ficam jogando nós uns contra os outros. De gente que mama na Lei Rouanet e de gente que é politiqueiro ou é incompetente artisticamente e que fica entrando nessas ondas. É lógico que a Lei Rouanet é um mecanismo perverso, mas eu não posso criticar a priori o Grupo Galpão porque usa Lei Rouanet, não posso criticar o Ói Nóis porque conseguiu, o Latão porque conseguiu. Muito pelo contrário, eu falo: “Latão, que bom que você conseguiram a Lei Rouanet. [Grupo] XIX, que bom que vocês conseguiram. Porque agora, quem sabe, nesse ano vocês não vão precisar entrar na concorrência da Lei de Fomento e vão deixar mais recursos pra Lei de Fomento. Ou não vai precisar entrar no ProAC, vai deixar mais recursos pro ProAC. Quando, na verdade, o que a gente precisava é que todo esse recurso da Lei Rouanet fosse pra um fundo público e que esse fundo público cada uma das artes pensasse como é a melhor maneira de distribuir esse recurso público – pensando em quê? No seu trabalho artístico? Aí não, aí entra o papel do Estado também, porque o endereço é o cidadão, não é o artista, o artista é o meio. Também tem isso porque muitas vezes a gente é criticado por isso, falam: “é corporativo isso que vocês tão fazendo, vocês tão querendo dinheiro pro bolso de vocês”. Por isso que tem que ter uma comissão de seleção que pense – não no grupo! – mas pense na interferência que esse trabalho desse grupo ou desse artista pode ter na comunidade, na região ou no país onde ele tá inserido. O Estado tem que garantir isso. Não é um interesse privado do artista também, porque senão você tá também pegando recurso público e botando privadamente na mão de um artista que não tá nem aí com o país que ele tá, com a realidade que ele tá, ele quer lá fazer as experiências dele porque ele se acha um gênio. E pra ser gênio demora um pouco… normalmente é a geração seguinte que reconhece o gênio, não é a própria geração. Então, essas coisas desses gênios de agora é também uma fabricação da mídia, que fica elegendo um gênio a cada semana pra poder vender o gênio. O Mário de Andrade tem um texto muito interessante, que tá no Empalhador de Passarinhos, em que ele fala justamente isso: não são artistas, são artesãos, quem vai dar o status de artistas é a posteridade, porque uma obra artística é aquela que fica. Ela pode até ressoar no momento dela, mas uma obra artística mesmo é uma obra que nem a do Machado de Assis, que sobrevive do século XIX ao século XXI. O teatro tem uns problemas no meio, porque ele é uma arte mais fugaz, que não fica registrada (se bem que hoje em dia…), mas enfim, o Mário de Andrade falava isso, que as pessoas ficam com essa pecha de artista, mas ele definiu bem: “não é artista, tu é um artesão, quem vai te dar status de artista não é você”. Mas a mídia tá todo dia… ela precisa do artista porque é o que vende… que não é nem mais artista hoje, é chamado de celebridade. Artista é o genérico e a celebridade é o especial. Então, precisa fabricar celebridade pra vender, pra ter televisão, pra ter programa de entrevista, talk-show…

Fabrício: Isso me lembrou do comentário do Dráuzio Varela sobre a Rita Cadillac.

Juli: Ah, pois é. Eu assisti um filme e aí tinha um trailer da Rita Cadillac, do filme dela. E aí tinha lá várias pessoas comentando o trabalho dela e chega um momento em que aparece o Dráuzio, todo respeitável, senhorzinho, que faz o médico do Fantástico! Aí mostra a imagem dela rebolando no Carandiru praquele monte de homarada sem ver mulher há muito tempo, né, e ela lá. E o Dráuzio fala assim: “Uma pessoa que tem a coragem de fazer um trabalho como esse, honestamente, nesse ambiente… é uma artista!” Era assim o comentário e aí cortava. A definição daquela pessoa super respeitável do que é um artista.

É, é polêmico, né? Por exemplo, o que que é isso, né? A Rita Cadillac que vai num presídio… é um trabalho artístico? Corajosa ela é, realmente. E ela vai lá ganhar o dinheiro dela… Se você pegar o Chacrinha, hoje ele é Cult, virou uma coisa Cult. Interessante, é uma coisa que vai marcar aí pra frente, a gente não sabe o que que vai ser, é um cara que inventou algumas coisas que foram interessantes pra se pensar… maneiras de comunicação… mas ao mesmo tempo… enfim, não dá pra falar muito disso. Complicado. Mas que a Rita Cadillac é uma figura e que é uma pessoa idônea… você olha pra cara dela, você fala: “é honesta”. Ela não deve estar milionária, rica, ela não ganha dinheiro em cima de ninguém. Ela tinha uma bunda boa e rebolava bem e tinha uma personalidade que ficou, mas até aí não é artista. O que ela produziu? Ela rebolou? Não, é uma pessoa que fez um trabalho que, vamos dizer, é “arte aplicada”, é a arte e a dança aplicada à atenuação dos hormônios dos presos, pra eles irem lá, verem o show dela, baterem uma punheta e darem uma descarregada e diminuir a tensão social que fica ali dentro, pairando. Porque você imagina, se tu tá preso no presídio e você pode ver a Rita Cadillac… bixo, ufa! Tudo bem, mas aí você vai entrar numa questão que é o sistema penal, do presídio, do que é isso… que é uma coisa escatológica, né? Então, a gente tá sempre tapando esses buracos, botando esses paninhos quentes… e não é arte, é outra coisa.

Acho que é importante colocar algumas críticas que a gente sempre ouve no sentido de substituir a Lei Rouanet por um outro modelo. Acho que a coisa mais forte que eu ouço disso é o medo de uma estatização pelo medo de ficar só sobre os critérios do Estado (confuso) em dois sentidos: na possibilidade de corrupção e no controle ideológico da arte. Qual a sua opinião sobre isso?

Primeiro, quem vai ser o próximo governo que vai entrar? Não sabemos. Qual a orientação dele? Não sabemos. Quanto tempo ele vai durar? Quatro anos. Então, mesmo que exista um dirigismo, esse dirigismo dura quatro anos, e isso se ele tiver plenos poderes na mão dele de falar o que vai ser patrocinado. Então, isso é uma falsa questão. Até porque, pela pesquisa hoje se tivesse eleição quem ganhava era o Serra. Então, todo mundo que tá metendo o pau que o PT ou a esquerda radical vai dominar a arte e a cultura, se o Serra ganha amanhã, já ia ter que mudar de discurso, porque quem estará no controle não é mais a esquerda radical, é a centro-direita… ou… centro-esquerda… que no fim da contas, centro-esquerda ou direita e esquerda hoje em dia tá…

Centro expandido, vamos dizer…

É, é que nem você pegar uma bússola no centro do pólo norte, ela vai ficar maluca, ela não vai saber pra onde apontar. Então, isso é uma falsa questão, nesse ponto de vista. Segundo, tudo depende de como ela seja regulamentada… se você tiver transparência e se esses projetos forem julgados – no caso, eu vou pegar bem no teatro, que é a minha área – se eles forem julgados por uma comissão ampla e mista, como é por exemplo a Lei de Fomento – por que o Fomento dá certo? Porque tem uma comissão que é idônea, você tem metade da comissão indicada pela Prefeitura e a outra metade é eleita pelos representantes dos projetos que estão concorrendo e os nomes, as listas, são indicados pelas entidades que representam esses artistas. Então, aí é democrático! Tem possibilidade de ser mais democrático que isso? O resultado que vem, ele é efeito, não tem dirigismo, porque você tem comissões que são plurais. Você tem o cara que gosta mais de realismo ou que estudou mais o realismo, você tem o cara que estudou mais o expressionismo, você tem o outro que estudou mais o teatro político e eles vão ler, não a tendência do projeto – se o cara é mais de esquerda ou mais de direita, se ele é mais revolucionário, se ele é mais reacionário – não, eles vão ler a qualidade do projeto, a articulação do projeto, eles vão ver o histórico de quem está propondo o projeto. E isso se chama meritocracia, que é uma coisa que nos outros países desenvolvidos do mundo, funciona, só no Brasil que não, porque aqui é a coisa do apadrinhamento. Se essas mudanças da Lei Rouanet, não contiverem isso, esses mecanismos claros, logicamente ela vai pender, a cada governo, pra quem tá de plantão lá, pra turma que tá mandando, agora se elas forem pensadas, se elas tiverem mecanismos de distribuição transparente, de julgamento transparente não tem porque falar que isso é estatização, no sentido tacanho do termo ou autoritário do termo. Então, isso tudo são falsas polêmicas. Na verdade, sabe, é estúpido, é como eu falei outro dia, é Corinthians e Palmeiras, é o corintiano falando: “ah, o curíntia é melhor” e o palmeirense falando: “ah, o palmera é melhor”. E eles vão se dar um tiro um no outro, e às vezes morre corintiano, às vezes morre palmeirense, às vezes morrem os dois. Quem fica triste? A mãe que perdeu o filho porque quem morre, morre, né?

Desenvolve um pouco a metáfora do corintiano e o palmeirense, porque você já tinha falado, mas ainda não estávamos com o gravador.

É, essa briga… agora que eu to lembrando, eu to tomando umas cachaça, eu tô esquecendo tudo o que eu falei. (risos) Essa também é uma grande falácia, é uma grande falsa polêmica, do pessoal que fala sobre a estatização e da questão do mercado. Nós estamos em uma sociedade em que a economia é capitalista e o sistema é republicano, então você vai ter mercado e você deve, você vai ter Estado. Qual é o tamanho de cada um? O tamanho que é necessário. Você precisa ter um Estado que vai distribuir recursos, que vai pensar no desenvolvimento do país… Isso é tudo teoria, né? É lógico que qualquer Moreira que fale aqui depois de mim, ele vai mostrar que a realidade não é essa e a realidade infelizmente não é essa, mas teoricamente falando, dentro do modelo, você tem um Estado que visa ao bem comum (República, res publica, coisa pública); que visa o desenvolvimento do cidadão, a preservação dos seus direitos, a cobrança dos seus deveres. E do outro lado você tem o mercado que em algumas áreas a dinâmica dele é fundamental, é o que tai dentro da economia capitalista. Então você vai ter um Estado que vai prover essa sociedade com o que ela precisa e onde o setor privado não vai entrar, porque não dá lucro ou, se entrar, ele vai tirar a pele de quem tá consumindo, então não pode – por exemplo, saúde, não pode! – e esse Estado vai cuidar do cidadão e vai cuidar desse mercado, vai delimitar: “até aqui você pode fazer a loucura que você quiser, você pode tirar o coro quanto você quiser; daqui pra cá não, porque aqui você entra na particularidade e no direito individual, no direito que tá assegurado na Constituição. Então todo mundo precisa ter escola, então; tem gente que pode pagar uma escola particular; quem não pode pagar tem direito a ter a mesma educação; é assim no Brasil? Não é. Mas teoricamente é. Então o Estado tem que fazer isso. Então, essa briga de que deve ser privado ou deve ser estatal é uma briga de corintiano e palmeirense, que na verdade tá escondendo modelos de ganho que no fundo é tudo. Não sei se eu expliquei direito.

Acho que sim. Fica faltando só a conclusão de que são radicalismos, mas ninguém está discutindo de verdade e considerando que vai ter os dois.

Tem que ter os dois, né? Do jeito que as regras estão, você tem que ter os dois. Então tem ter o Estado que tem o tamanho do Estado e o setor privado que tem o tamanho e as regras do setor privado. Por exemplo, as pessoas falam de estatização da cultura… quantos funcionário tem a Funarte pro Brasil? Quantos funcionários tem o Ministério da Cultura pro Brasil? Pegando particularmente na minha área que é a arte e a cultura, eu digo que o Estado é menos do que o mínimo, a presença do Estado na arte e cultura. O orçamento da Lei Rouanet é muito maior do que o orçamento do Ministério da Cultura. Entendeu? Então, precisa, sim, de uma presença do Estado pra cultura; precisa, sim, que, por exemplo, os projetos dos CEUs sejam retomados aqui na cidade de São Paulo, porque tem o aparelho lá e a turminha jogando futebol na quadra. Tem teatro? Não. Tem música? Não. Talvez agora com esse negócio da Santa Marcelina tenha um pouco. Mas todo o projeto do CEU que era de uma integração de uma comunidade via cultura, não só esporte… porque esporte é espartano, né? A cultura é ateniense. Então, esporte, em geral, leva pra uma coisa mais bélica e a cultura leva pra uma coisa um pouco mais elevada, mais democrática, tanto que a democracia é de Atenas, não é de Esparta. E o culto do corpo, a competição desenfreada é muito mais espartana do que ateniense, pegando na raiz da nossa civilização. Então, quer dizer, são esses falsos extremos que na verdade escondem a briga pelo poder, não o desenvolvimento da sociedade, mas grupos de poder que querem poder pelo poder, não o poder pelo desenvolvimento ou por uma coisa maior que é a democracia, a igualdade, a fraternidade, que são os ideais republicanos.

5 horas depois, vamos encerrar, mas vai ser uma pergunta grande… vou te dar um caminho e aí você vai… Todos nós falamos da insuficiência do Fomento hoje. É uma lei que é modelo e está se multiplicando, mas aqui em São Paulo mesmo é insuficiente e aí acaba gerando coisas como, por exemplo, as pessoas questionarem que as mesmas companhias sempre ganham porque não cabe mais gente. Como você vê essa insuficiência do Fomento; como é que isso se explica? Se você concorda que o fomento é insuficiente porque ele precisaria de outras políticas em volta. Te pergunto, nesse sentido, se esse projeto de lei que está sendo votado para substituir a Lei Rouanet é também uma resposta a isso.

Tem bastante coisa aí pra falar. O Fomento, como você mesma falou, ele tem a especificidade dele que é para projetos em continuidade de grupos que trabalha continuamente. Ele é uma política. A gente sabe que precisaria de outras políticas em volta que dessem conta das demandas por políticas públicas. Então, por exemplo, pra produção e circulação, não existe… existe o ProAC de produção e circulação pro estado todo, mas só pra você ter uma idéia o orçamento do ProAc do ano passado foi de 16 milhões e 500 mil reais pra todas as artes, não só pro teatro. E só pra Sala São Paulo acho que saem em torno de 40 milhões de reais do orçamento do estado, fora a parcela que eles têm via Rouanet. E a Sala São Paulo tem uma fundação pra gerir os recursos. Então, vamos dizer que a gente fosse um país riquíssimo – que a gente não é. Quer dizer, é um disparate isso. 40 milhões, vamos dizer que é o que precisa pra que aquele prédio funcione, pra que aquele corpo de músicos seja bem remunerado, apresente uma qualidade que eles parece que vêm apresentando, enfim, me parece que tem uma qualidade ali naquele trabalho, tá bom, 40 milhões de reais. Pra música. Clássica. Uma sala. Pra um corpo que deve ter, sei lá, 100 pessoas que trabalham ali. É um disparate que você tenha 16 milhões e 500 pra todos os outros artistas de São Paulo. Não é? Isso é complicado. Daí imbrica na guerra interna do pessoal de teatro pelo Fomento, então vai falar logicamente que os grupos que sempre ganham estão tirando dinheiro dos outros, mas a briga é outra, a briga é pra que tenha outros tipos de acesso pra outros tipos de criadores que não trabalham em grupo e mais recurso, outra leis que peguem o espectro da criação artística em seus outros vieses que não seja só o de grupo e essas outras leis com recurso. Ao invés de a gente se unir pra brigar por essas outras leis, a mesquinhez faz com que as pessoas ataquem aquela coisa que funciona pra que aquela verba seja pulverizada, pra que mais grupos tenham… ao invés de você ganhar 200 mil, você ganha 20, mas ai você não faz o trabalho que você precisa com 200 mil. Esse é um aspecto da Lei de Fomento, que ela é muito bem pensada, por isso que ela cria tanto problema, por isso que ela não caiu até hoje, porque ela funciona, porque ela tem mecanismos ali que são republicanos a fundo, ali. Tanto que querem desvirtuar, querem criticar, tem gente do teatro, tem gente do poder público que quer detonar ela e ela vem se mantendo. E não é a custa de muita mobilização, é que ela realmente… tá todo mundo vendo que ela é uma revolução pro Brasil em termos de aplicação de recurso público, porque no Brasil a regra de aplicação de recurso público é o apadrinhamento, é a privatização. Essa lei que tá no Congresso pra ser votada, é uma Lei Rouanet light. Ela mantém o mecanismo de renúncia fiscal, com alguns pedagiozinhos, ou seja, o cara não pode mais abater 100%, ele tem faixas que ele tem que contribuir um pouco com dinheiro do bolso dele, então Itau Cultural, em vez de botar 1 bilhão, eles vai ter que botar 900 milhões de dinheiro do Estado e 100 milhões eles têm que botar do bolso deles. O que é 100 milhões pro Itaú? Não é nada. E olha que eu to chutando um valor alto, hein, não é nem tudo isso.

Principalmente porque já tem o que volta pra eles como imagem…

Sim, então, é uma reforma light. Você fica lendo gente que fala “ah, vamos trocar o certo pelo duvidoso”… caramba. É que o produtor que tá escrevendo aquilo ele tá pensando no que ele pode perder, ele não quer sair da acomodação em que ele está, porque do jeito que ele tá ele já tá pagado as contas dele, tá reservando dinheiro da aposentadoria, tá comprando carro novo, então ele não quer ter que sair do lugar cômodo onde ele tá, então tem essa resistência inicial. E com relação a política públicas, existem algumas coisas apontadas, mas que ninguém garante que vão sair. O governo fala, através do Ministério da Cultura, que os fundos vão funcionar, mas eu tô meio calejado, só vou acreditar quando a coisa estiver funcionando, porque pro que a gente quer colocar mesmo lá dentro, que é o Prêmio Teatro Brasileiro, existem resistências, inclusive por esse governo que tá aí, porque é uma lei nos moldes do Fomento: ela tem um orçamento fixo por ano, ela prevê vários mecanismos do funcionamento dessa lei, ou seja, pra ninguém ficar brincando com ela, dizendo: “esse ano vai assim, outro ano vai assado, aquele ano vai cozido”. Que é a diferença entra a política de Estado e a política de Governo. A política de Governo é a política do governo de plantão, então, esse ano, dependendo do governo vai assado, vai cozido e vai frito…

Se tem eleição, se não tem eleição…

Ou então se ele… pensando mais utopicamente o governo percebe uma coisa que começou a se desenvolver ali, por exempo, rap na periferia. Então ele vai lançar o edital pra turma dos grupos de rap conseguir fazer o trabalho deles, uma coisa nova que surgiu. Ou ele percebe que precisa de um incentivo pra dramaturgia, que tá faltando texto nacional, então eles vão criar esse edital. E que também vai da gente ter pessoas que identifiquem isso, o que a gente não tem. A gente tem um corpo de funcionários da cultura que é um ó. Eles são uns tecnocratas que não sabem o que é teatro, não sabem o que é música, não sabe o que á artes plásticas, são tecnocratas: burocratas com uma formação técnica. Outro dia eu vi uma palestra de um projeto aí, que tinha as duas figuras – em termos de hierarquia – mais altas do projeto, que não sabiam picas do projeto, pra que que ele servia e que não tinha estofo mesmo, cultural, eram pessoas técnicas, sabe? Também não sei… se conseguir passar a Lei do Prêmio Teatro Brasileiro, eu vou falar: “quem bom! Pro teatro vai ter uma perspectiva de alguma melhora nos próximos anos”. Mas, eu acho que não passa, a perspectiva de passar é pequena, porque os governos de plantão não querem nada que engesse eles, entende?


Eu te interrompi quando você estava dizendo que uma política de Governo é uma política para reconhecer e agir sobre questões imediatas…

E uma política de Estado é a que fica no tempo.

Cabe ao governo somente a execução…

É. E se ele quiser fazer transformações ele precisa passar por um debate público grande pra transformar isso… e melhorar. Porque o país… precisa ter seu cinema? Precisa. Feito pelos seus cidadãos artistas para os seus cidadão espectadores? Precisa. Um país precisa ter um teatro feito pelos seus cidadãos artistas para os seus cidadãos espectadores? Precisa. Precisa ter artes plásticas feitas pelos seus cidadãos artistas para os seus cidadãos que vão usufruir? Precisa. Tá na Constituição. Então, você precisa ter coisas que façam com que o cidadão possa ter acesso às artes plásticas. Mas as artes plásticas precisam ser produzidas e quem vai produzir é o cidadão artista plástico e esse cidadão artista plástico ele não pode produzir de final de semana quando ele na tá trabalhando no banco. Se ele, meritocraticamente, falou: “olha, eu tenho qualidade, eu pesquiso, eu suo a camisa e eu tenho alguma coisa a dizer com a minha arte”, esse cara merece destinar o tempo dele pra essa qualidade que ele alcançou e pra desenvolver essa qualidade pra que outras pessoas possam usufruir disso. Porque o artista é isso, você faz uma coisa pros outros, não é pra você. Lógico que é também pra você, você tá respondendo a uma coisa que a sua alma pede pra você fazer, sua vontade pede, mas essa vontade, você tá produzindo uma coisa que vai ser efetivamente usufruída por outras pessoas, o endereço são as outras pessoas.


Finalmente, sobre esse projeto que está tramitando agora, especialmente essa parte do Prêmio Teatro Brasileiro: você disse que não acredita que isso passe, que seja aprovado, mas você acredita que tenha sido construído com base numa discussão popular relevante?

Eu acho que os pitacos e as questões que a gente aqui do teatro aqui de São Paulo colocou pro Ministério desde o ano passado, e que a gente foi ouvido por eles, são coisas que estão sendo pensadas há anos e que vêm de uma experiência – daqui de São Paulo. Eu não sei como foi a contribuição de outras regiões do Brasil que têm realidades muito diferentes da realidade de São Paulo. Eu não sei até que ponto isso foi popularizado, mas ao mesmo tempo, você precisa ter pessoas com cabeça, porque… enfim, São Paulo levou as questões que tinha já, que vinham de discussões, de amadurecimentos e de experiências. Então, eu posso dizer que o que a gente levou daqui de São Paulo foi uma coisa que eu acho que tem uma substância de pensamento. Com relação às outras áreas, às outras artes e à consulta, eu não posso falar, porque não tô no Ministério, não tava no Ministério. Por isso que eu acho que é até light a reforma da Lei Rouanet, porque ela mantém o mecanismo de incentivo. E você vai acabar com o incentivo de uma hora pra outra? Talvez não seja sensato também, porque se de repente você corta, você vai matar 90% que é tranqueira, que é aproveitador, mas tem 10% ali que tem um trabalho sério e você vai matar esses caras também. Qualquer política que você substitua… senão fica que nem o golpe que a Zélia e o Collor deram na poupança, eles confiscaram o dinheiro de todo mundo, parou tudo. Então, quer dizer, precisa ter uma transição, pra que a gente não dê arma pro bandido, na verdade, porque se você fizer uma coisa que rompe de uma hora pra outra, você tá dando uma arma pros grandes meios de comunicação, pras grandes empresas caírem matando num projeto público. É idiota isso. É dar arma pra todos os meios que tão mamando nessa teta acabarem com isso em dois meses. Então como é que se pode fazer uma transição para isso? Talvez essa primeira reforma seja uma maneira que eles encontraram, até inteligentemente, não sei, de fazer uma transição pra outra perspectiva, que, sei lá, daqui a 10 anos, se a coisa for bem, pode passar todo o recurso público pra ser gerenciado pelo Estado e ninguém vai chiar. Então o radicalismo de acabar com a Lei Rouanet de uma hora pra outra é estúpido estrategicamente falando, também, porque não vai passar e vai ser detonado, no dia seguinte vai acabar. Ou no próximo governo que for eleito que não seja da mesma orientação desse, vai acabar, ele revoga essa lei ou não põe dinheiro no Profic, Pronac, Profac, Proseiláoquê.

'1 comentário para “Bate-papo com Pedro Pires, da Cia do Feijão”'
  1. O Dragão disse:

    Tive o desprazer de conviver com esse bundão. Anarquista bancado pelo Estado, sem nenhum talento, tudo que há de errado no teatro brasileiro é representado por esse bosta.

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