O Capitão e a Sereia

Críticas   |       |    18 de novembro de 2009    |    5 comentários

Feito por quem e para quem

Já era. Fez uma peça baseada num livro infantil, com figurino e cenário coloridos, com música e ainda de graça… a galera vai levar os filhos! E várias vezes!

O capitão e a sereia

A postura firme do grupo Clowns de Shakespeare em dizer que a peça O Capitão e a Sereia não é uma peça infantil está plenamente justificada na complexidade de uma história que quer revelar muito mais do que a aventura de um capitão que sonha em ver o mar. No entanto, por outro lado, não seria nada mal compartilhar com as crianças – e, afinal de contas, sempre cabe perguntar: de que crianças estamos falando? – algumas das mensagens e mesmo algumas das dúvidas contidas na história do Capitão Marinho e da Trupe Tropega, Mas Não Escorrega.

Oi? Do que que cê tá falando? Que mensagens?

Bora. Vamos passo a passo. Tô falando da discussão necessária – e praticamente ausente da nossa sociedade – sobre os limites e as relações entre coletivo e indivíduo – que deve ter uma raiz bem parecida com a velha quizumba entre público e privado, mas essa aí deixa pra outro dia.

A escolha do grupo é muito clara: não vamos falar do herói que tem uma incrível trajetória até alcançar seu sonho individual, mas da trupe, do coletivo, não para colocá-lo como vítima abandonada, não só porque ele ficou, mas porque ele existe; existe em função dos indívudos que o compõem e para além deles.

O capitão e a sereia elenco

A partir dessa simples e dolorida escolha temática, tudo mudou na historinha infantil do capitão que queria conhecer o mar. E mudou radicalmente, embora a base permaneça a mesma e as cenas lembrem muito as ilustrações do autor do livro. Mudou porque não estamos mais criando um herói, deixamos esse cara de lado, embora – ê, Brasil! – mantenhamos a expectativa de que ele um dia venha nos salvar das enrascadas em que nos metemos. E ficamos de olho nos binóculos, enganando… nós mesmos. E aqui é que o Capitão Marinho ganha amplitude e passa a representar, não alguém específica ou diretamente, mas um conflito que é mais típico e natural da sociedade ou do “agrupamento de gente” do que costumamos pensar.

Pra começo de conversa, é no mínimo curioso notar que a questão tão presente em encontros como o Próximo Ato e, claro, nos butecos dos teatros – esses que sustentam o fazer artístico paulistano – que inclui problemas de convívio, razões de união, fatores agregadores, limites para manter equilíbrio, relação com capital, possibilidade de expressão plena do eu, concessões que doem etc, talvez não passe nem perto das cabeças da maioria das pessoas desse mundinho, embora esteja em seu cotidiano necessariamente. Em outras palavras, ainda que toda a vida em sociedade pressuponha pensar diariamente esse limite entre indivíduo e coletivo, e lidar com ele em situações práticas inúmeras – tais como o descarte adequado do próprio lixo ou as disputas variadas no trânsito, por exemplo – na maioria dos casos o processo não é consciente.

Portanto, quando o grupo decidiu não falar desse herói que nunca chega, mas do coletivo que se vira enquanto líder não vem e das maneiras que ele tem de se virar, ou seja, do trabalho por trás dos pseudo-heróis, ele optou por escancarar esse conflito e valorizar os vínculos coletivos – aqui dava até pro grupo mostrar o Peões, do Coutinho, antes da peça. Ok, não dava, eu que tô forçando a relação.

E, já que a brincadeira aqui é forçar a relação, vou um pouquinho mais longe na idéia de coletivo – nós, que, na Bacante, realizamos um trabalho coletivo também. Apesar de termos enfiado a palavra coletivo ou grupo num monte de editais e ela tenha se banalizado um pouco, ainda dá pra resgatar o que queremos dizer com isso. Uma frase na montagem O Capitão e a Sereia – que, olha, eu não lembro perfeitinha, mas era tipo isso aí – resume bem a idéia que está sendo trabalhada: “O indivíduo que se sobressai ao coletivo ou o coletivo que sufoca o indivíduo”. E agora vou tentar explicar porque talvez essa dicotomia seja falsa ou, por outra, como poderia ser evitada…

Não é o indivíduo versus coletivo.

Não é a individualidade versus coletivo.

É o “individualismo” versus coletivo.

Trata-se de decidir qual entre eles tem soberania. Ou, por outra, trata-se da tentativa de salvação da idéia e das práticas coletivas que vão sendo esmagadas pela supervalorização do que é puramente individual, do que beneficia a um único ser, no caso, o “eu”.

Então, não quer dizer que estar num coletivo suprime o indivíduo ou a individualidade, ao contrário, quer dizer que o coletivo é a mistura que se faz dessas individualidades em plena potência. É a busca pelos encontros afirmativos e equilibrados capazes de tornar as ações desses indivíduos mais potentes. E é aí nessa união que o indivíduo, como parte do coletivo, contribui para o todo. Estamos falando de vários indivíduos, abrindo mão, não da individualidade, mas do individualismo (de priorizar a si próprio a cima de tudo) para formar outra coisa, mais forte, mais potente e mais justa. Estamos falando de um encontro que constrói algo comum – que não é lucro, embora possa ser isso também, mas que é algo além, algo impalpável, porque está próximo da idéia de justiça.

E o que se constrói coletivamente e que passa a ser “bem comum” naquele coletivo, pode ser desde uma peça ou de esquetes enquanto esperamos pelo capitão, até um canal de TV comunitário, até o mutirão pra construir uma escola mais bacana pro bairro, até uma política pública para a cultura, até uma rede colaborativa de criação de softwares livres… até…

Até porque nós, como “agrupamento de gente”, seremos sempre um coletivo que precisa se enxergar como coletivo pra funcionar. O problema talvez seja que, quando o equilíbrio entre indivíduo e coletivo se rompe, mesmo em situações cotidianas, fica mais difícil lidar com a crise porque não havíamos pensado nisso antes, nunca fomos incentivados a tornar a relação entre indivíduo e coleitvo um processo consciente. Então, quando inseridos repentinamente num coletivo que assim se declara, como um grupo de teatro ou um site de crítica, corremos o risco de nos sentir inseguros ou sufocados, simplesmente por termos sido sufocados e encaminhados para o individualismo a vida toda e não sabermos exercer plenamente nossa potência em contato com o coletivo. E, tardio, o aprendizado demora mais…

Essa viagem toda de “agrupamento de gente” e, sobretudo, do equilíbrio que permite que o encontro seja potente e potencializador vai pra qualquer lugar em que você queira pensar. Vai pra sua família, pra sua vizinhança, pra merda do seu escritório… mas vai também pra produção de conhecimento numa época em que a cultura já está entrando na rede num caminho sem volta. Exemplos práticos… dá uma olhadinha nessa idéia. E, depois, no pólo oposto, dá uma olhadinha nessa, de pessoas querendo esmagar a circulação do conhecimento coletivo.

Agora que já falei sobre a temática da obra e até onde, mais ou menos, ela pode chegar, volto à peça com mais foco. Não, não vou falar que os Clowns de Shakespeare são artistas completos como disse o crítico árvore da vez, porque os considero meus amigos e pega mal ficar puxando saco de amigos. Vou é pegar no pé, que é isso que leva a coisa toda pra frente. O que, afinal, estamos esperando dos caras? – eles nos perguntam e a gente se pergunta. Além de uma peça muito bem-feita, alegre, musical, e que trata, sim, de um tema que extravasa as questões do próprio grupo – este em fase de reconstrução – para pensar uma questão geral que é essa do coletivo versus individualismo… o que mais esperamos? Esperamos conexões. Esperamos ver Natal, não porque queremos ver terra rachada, migrantes e Severinos, mas porque queremos saber como é, afinal, o hip hop de Natal; queremos saber como foi essa história estranha da base americana na Segunda Guerra – ups, li isso de base americana em algum lugar recentemente…; queremos saber como é esse horror da prostituição infantil abordado com bom humor pelo Bagaceira em Meire Love. Mas, se não for a conexão com Natal, queremos saber quais são as outras conexões do grupo com esse mundo que cohabitamos. E ver isso transformado em arte. E queremos saber de um monte de coisas que a gente nem sabe que quer saber… mas que eles sabem. Eles, Clowns de Shakespeare, moradores de Natal, brasileiros de hoje, que enxergam a situação da cidade em que vivem, mas conhecem também outras muitas cidades e suas questões porque estão sempre circulando por aí a trabalho, que viram o Redemoinho rachar e que viram sabe-se lá que coisas mais… eles sabem o que mais podem incluir na poesia e na brincadeira séria de usar a imaginação. E assim dar mais grossura pro caldo e fazer a poesia dizer mais, compartilhar mais, jogar mais verdade e mais provocação na rede, pra fora da sala de ensaio.

Vários casos de vizinhos do Sesi Vila Leooldina voltando pra rever a peça. Porque gostaram e também porque era de graça

'5 comentários para “O Capitão e a Sereia”'
  1. Alex Cordeiro disse:

    Pensar o complexo sistema de um coletivo é estar dentro de um risco constante. Lidar com a indivualidade (sim, uma vez que toda forma de convivência grupal se estabelece a partir do indivíduo) é lidar com a capacidade do encontro… Ai expandindo a possibilidade da palavra encontro: encontro estético, de velores socias, afetivos, políticos… e por ai vai. Enquanto as questões locais como prostituição e ou invasão americana, eles estão mais que conectados com a realidade coletivo x indivíduo da cidade do sol.

  2. Juli =) disse:

    Oi, Alex.

    Concordo com você e reitero… é a partir do invivíduo, não do individualismo. Sim, a capacidade de lidar com o encontro e, sobretudo, com a convivência que se estabelece a partir dele.

    Quanto às questões locais, foram só alguns exemplos que me vieram. Não digo para tratarem especificamente disso, não… também sei o quanto eles estão presentes politicamente, ou pelo menos tentam e fazem questão de estar, em Natal e no movimento do teatro de grupo como um todo, mas eu só sei porque os conheço, não pela peça. Minha provocação é justamente que isso – essa presença, essa conexão, esse pertencimento – apareçam na obra, virem arte.

    Um abraço e obrigada por comentar.

    Juli =)

  3. Alex Cordeiro disse:

    Concordo Juli… mas tenho a impressão que o espetáculo em questão extrapola qualquer tipo de classificação pela universalidade do tema. Quando se opta por evidenciar a figura de um lider que não chega, não estaria a trupe se posicinando ideologicamente de uma forma, digamos, mais sutil?

  4. Carol Alves disse:

    Oi Juli,

    fiquei arrepiada com o post, e cada vez mais tenho gostado do blog Bacante.
    E nossa, falar dos Clowns é até covardia, porque eu amo esses caras e mulheres. Preciso deixar registrado que esse foi o primeiro espetáculo que me emocionou a tal ponto que não consegui conter as lágrimas que rolaram pelo meu rosto. A qualidade artística deste grupo é o que me faz acreditar no teatro, eles abriram minha mente, minha visão pra o teatro politizado, com esmero, com origem, com pesquisa e embasamento. E acho que eles tem mais de Natal, e mesmo de uma brasilidade que talvez nem eles saibam explicar.
    Podem não ser questões de Natal, mas é ao modo natalense, sinto esta apropriação.
    A princípio quem não os conheça pode não associar, mas quando se descobre, fica um pouco óbvio.

  5. Karen disse:

    eu li o livro é muito legal nota 100000000000000000000000000000000000000

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