Entrevista com a Cia. Luna Lunera

Bate-Papos   |       |    16 de julho de 2008    |    6 comentários

Janelas dramatúrgicas, blackouts dramatúrgicos e outros temas sérios

Era um fim de tarde bonito e quentinho em Rio Preto. Entrevista agendada, tomamos nossos lugares naquele ambiente meio “Luciana Gimenez entrevista” ou “Mais Você – versão férias coloridas de verão” para conversar, a princípio, com três integrantes da Cia Luna Lunera (da montagem mineira de Aqueles Dois), Odilon Esteves, José Walter Albinati e Rômulo Braga. O Cláudio Dias, como não consegue parar quieto, tinha saído por aí dar uma de produtor – como nos informou o Odilon, minutos antes de ir enganar o Rômulo pelo interfone. Explica-se: o Rômulo, segundo o Odilon, não gosta de dar entrevistas pois é meio envergonhado – e vai ficar ainda mais depois de a gente contar isso sobre ele – então o Odilon interfona fingindo-se atendente do hotel pedindo que ele desça do quarto com urgência.

Todos posicionados em suas almofadas chiques e confortáveis ao lado de palmeiras imperiais vindas diretamente de Santos para um habitat estranho, hora de começar. “Ei, no contrato não estava dito que tinha fotos!”, reclama o Zé Walter, “eu tenho uma maquiagem diferente para o entardecer”, completa. “E a poltrona não podia combinar com a sua barba, né?”, acrescenta Odilon. “Não, não, o meu é cavanhaque, Barba é outro cara que está aí que, aliás, é muito bom”.

Toda essa introdução é só pra você perceber que a entrevista abaixo não é tão séria quanto parece. Os meninos da Luna Lunera – que, de fato, têm carinha de meninos – são realmente muito sérios ao falar do trabalho que realizam e do fazer teatral em si, mas isso não impede que sejam bem divertidos com o gravador desligado.

A entrevista, pra variar, ficou muito maior do que a nossa capacidade de transcrevê-la, portanto, mais uma vez, a Bacante apela para o estilo folhetim como uma maneira de tornar sua leitura mais emocionante e nossa vida mais tranqüila. Além disso, uma novidade pra você que nunca terminou de ler Os Sertões porque é muito grande: a partir de amanhã, cada trecho da entrevista terá publicada uma versão em áudio, de modo que você pode acompanhar a conversa enquanto toma banho.

No capítulo de hoje, você vai descobrir a importância da existência de uma janela na sede de um grupo de teatro, além de ser apresentado pra [Isa]Bela [Paes] – que por enquanto não fala nada, mas é integrante internacional da Cia. E, não perca, nas partes seguintes, os empolgantes debates sobre “o qué que se tem feito no tiatro lá prôs ládiMinas” e como transformar seu festival num enorme cantinho do café.

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Fotos: Maurício Alcântara

Juliene: A gente pode começar falando do processo, até porque é um tema que vocês abordam no final do espetáculo, principalmente o tema da direção e dramaturgia colaborativa. No caso de Aqueles Dois, tem uma pessoa que fecha a dramaturgia?

Odilon Esteves: Não. Tudo foi coletivo. Os cinco assistiam tudo. A gente está sistematizando o que aconteceu agora, mas tudo aconteceu num fluxo muito natural. Porque a gente começou o processo em maio só pra treinar. O Claudio tinha voltado da Espanha, tinha feito contato e improvisação lá por seis meses. Eu estava com umas questões com relação à ação verbal. Mas a gente estava sem grana pra contratar uma pessoa, um especialista nessas duas coisas. Aí a gente começou a fazer um treinamento interno: o Cláudio daria aulas de contato e improvisação dentro do que ele sabia e eu ia propor uma oficina de ação verbal pra gente tentar estudar e descobrir isso juntos. E aí, por que surgiu Aqueles Dois? Porque a gente precisava de um texto pra servir de mote pro trabalho de ação verbal. Pra não ficar aleatório, eu falei: “gente, vamos escolher um texto”. Começamos a ler Caio [Fernando Abreu] e…

(Chega Bela)

O.E: … A Bela é do grupo também… E aí, quando a gente escolheu o conto e começamos a trabalhar com ele, a gente se apaixonou um pouco pelo texto. Por que a idéia era levar os contos do Caio, não era pra se fixar em um. E aí saímos de férias em julho com a seguinte incumbência: que cada um dos atores teria que trazer uma proposta de direção pras semanas de agosto, já que a gente tava gostando do texto, pra usar daquilo pra fazer também um exercício de direção. E aí a gente escolheria um de nós pra ser o diretor. A idéia era ser isso, era cada um dirigir os outros atores por cinco dias e ao final desse um mês a gente escolheria o diretor.

Juliene: Tipo show de calouros com diretores?
(Risos)

O.E: Não, na verdade não tinha isso, não. Era mais pra que cada um pudesse exercitar, fazer um exercício de direção por semana, colocar suas idéias em prática. Porque até então não tínhamos a pretensão de chegar numa montagem. Tinha a pretensão de um treinamento. E um dos desejos nossos que começou com ação verbal e com contato e improvisação era também de exercitar a direção e a dramaturgia. Mas nesse momento, como a gente tinha passado por um processo colaborativo com o Nessa Data Querida em 2003, que tinha supervisão do Antônio Araújo, do Vertigem, do José Alberto de Abreu, na dramaturgia… na atuação tinha algum núcleo?

José Walter Albinati: Paulo Moraes, do Armazém.

O.E: Paulo Moraes nos atores. E ainda a gente teve outro projeto muito bacana em 2003 do Galpão Cine Horto, que é um braço do Grupo Galpão, chamado oficina 3X4 em que quatro grupos foram convidados, quatro diretores e quatro dramaturgos. E faziam esses núcleos de direção de um processo colaborativo. No nosso trabalho posterior a esse, tínhamos uma diretora, mas não tínhamos um dramaturgo. Então o exercício da dramaturgia já ficou na mão da diretora e dos atores. O exercício, como a gente entendia na sua função num processo colaborativo. O que era a função do dramaturgo lá, a gente já absorveu um pouco aquela função. E aqui a gente radicalizou um pouco, cada diretor teve essa sua semana – que era muito diferente, propostas muito diferentes de um e de outro – mas que começou a contaminar. O projeto da semana anterior já contaminava a semana posterior. Ainda assim muito diferentes. Depois a gente teve um tempo para que cada diretor misturasse aquilo tudo e dirigisse os outros misturando aquelas referências todas. E que propusesse um roteiro. O Rômulo foi o primeiro a apresentar um primeiro roteiro de dramaturgia. Então não tem como ficar separando. A gente é que tenta separar, só pra gente entender agora e tentar sistematizar o que aconteceu. Mas aí o diretor, na verdade, vira dramaturgo, porque teve que propor um primeiro roteiro de dramaturgia pra que os outros atores improvisem, aquele canno vatio de ações. A gente fez um dia e no segundo dia, quando o Claudio propôs, a gente se olhou e disse “Tá, já”… as eleições estavam muito próximas. A gente podia marcar uma reunião e, em vez de ficar burocraticamente passando, cada diretor ter o seu dia de improvisação de seu roteiro – porque os roteiros já estavam muito parecidos.

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J.W.A.: No sentido de que os temas que iam ficando impregnantes e permanentes ao longo de cada etapa, já que tinha essa possibilidade de você capturar da etapa anterior alguns elementos. Então isso foi criando um certo caldo e dali as coisas iam precipitando, iam se tornando permanentes. Elas geraram um material.

O.E: Em imagens mesmo, em imagens que surgiam das improvisações dessas semanas de direção. Porque em momento nenhum a gente trabalhou com uma direção no sentido “quero marcar uma oficina”, não era isso. Eram direções no sentido de gerar questões, estímulos, pra provocar. Pra que os atores improvisassem. Mas o diretor do dia também era ator. Ele tinha que provocar, mas ele também estava dentro do jogo, então não podia sair pra ver.

Fabrício: (A José Walter Albinati) Então no início você também estava atuando?

J.W.A.: Como ator, isso. Numa primeira etapa…

Juliene: Eram cinco…

O.E.: Eram quatro, depois o Zé decidiu não ficar em cena e a gente convidou o Rômulo. O Rômulo entrou já em agosto. Na primeira etapa de maio a junho, o Rômulo ainda não estava. Aliás, ele é a primeira pessoa que entra pro grupo depois da formação em 2001.

Juliene: Eles pagaram caro ou foi baratinho?

O.E.: Ah, a gente tirou ele na loteria…

Juliene: Como vocês se conheceram?

O.E.: A gente já se conhecia, né? Já éramos amigos. Já tínhamos algum contato. Mas nunca tínhamos trabalhado juntos.

Fabrício: Quanto tempo ao todo de processo?

O.E.: Contando o início em maio, estreou em novembro. Mas, que a gente focou mesmo. A primeira semana de direção foi a primeira semana de agosto. Então foi agosto, setembro, outubro e um pouco mais da metade de novembro.

Juliene: 3 meses e meio…

O.E.: 3 meses e meio, mas na verdade começou em maio. Já a escolha do texto, a prática do contato, as ações verbais já trabalhando com aquele texto. Mas o processo de direção mesmo foi assim. O que é maluco é: depois que a gente sentou e decidiu o roteiro, o canno vatio de dramaturgia, por onde o espetáculo vai passar – isso era a segunda quinzena de setembro – a gente já abriu o ensaio para o público. A gente anotava na parede assim: Entrada, aquecimento, repartição, festa casa Solange, narração, casa Raul/Saul, pesadelo, morte da mãe, demissão. A gente anotava na parede pra saber por onde tinha que passar. E a gente improvisava, improvisava já com a presença do público. O que a gente chama de um observatório nosso, observatório de criação.

Juliene: Quantos encontros?

O.E.: Quantos que a gente teve?

J.W.A.: A gente teve sete ou oito encontros.

O.E.: Ou mais, né, talvez? Porque depois intensificou.

Rômulo Braga: A gente fazia praticamente toda semana.

O.E.: Toda sexta ou de quinze em quinze dias a gente abria o ensaio.

Fabrício: Haja amigo, hein?

O.E.: Mas é que sempre teve interesse, né? Porque aí saia uma notinha no jornal ou então tem gente que tem curiosidade pelo tipo de trabalho e processo do grupo. Então, as pessoas podiam ver como é que era a gente trabalhar em estado bruto, enquanto a coisa tá com força. Que ela ainda tá na verdade… uma exposição em que a gente ainda estava trabalhando a dramaturgia.

Juliene: Esses encontros aconteciam onde?

O.E.: Na nossa sede. A gente tem uma sede.

Fabrício: A essa altura, os dois já eram quatro?

O.E.: Sempre, porque como éramos quatro atores na companhia, escolhemos o texto Aqueles Dois, mas os jogos todos, desde o princípio, as improvisações e as ações verbais, eram com quatro atores. Com a saída do Zé, a gente improvisou um pouco com três pessoas e o Zé disse “tem uns jogos interessantes com três”. Mas o Claudio disse “ah, não, gente, com quatro é tão legal, é tão orgânico. Vamos chamar outra pessoa”. Então as eleições foram muito afetivas nesse sentido, entende? Não é assim “tem que ter quatro, porque o desdobramento com quatro…” não, isso aí a gente constrói depois. Foi um processo muito fluido, não tinha um exercício racional pra que as decisões fossem todas prévias. As decisões foram tomadas durante os ensaios, a partir do que a gente estava sentindo, do que a gente estava ouvindo do processo e do que estava acontecendo nas improvisações.

Juliene: E dessa coisa de abrir pro público já desde essa etapa ainda mais crua do processo, vocês ainda fazem questão de ouvir a opinião do público, o que eu acho muito bacana. E mudou já alguma coisa com essa participação?

O.E: Muita coisa. Pra dar um exemplo, que eu lembro com mais nitidez, um amigo meu que acabou se tornando um quinto elemento que joga de stand-in, se precisar de alguma substituição na peça – acabou que ele fez o espetáculo oficialmente uma vez só e uma vez de treino – mas é o stand-in da peça que acompanhou o processo desde o início, que fez o nosso material gráfico. É um ator de BH, amigo nosso também. Ele viu um desses observatórios de criação numa semana e voltou depois de duas semanas. E me disse: “o que aconteceu com a cena da Solange?” E eu digo “que cena da Solange?”. “Aquela hora em que eles estão conversando no café sobre os filmes do Almodóvar, das atrizes do Almodóvar e aí você diz ‘Solange? Não, não tem Solange no Almodóvar’ e aí alguém responde ‘não, a festa na casa da Solange, de aniversário que ela mandou convidar'” eu disse “teve isso?”. Ele disse “teve, você que fez, não era texto?”. Eu disse não Fred, a gente improvisa. É um canno vatio, mas a gente não sabe o que acontece. Todo o dia a gente tá improvisando. Algumas, lógico, a gente improvisava. Tinha a memória também, acabava o ensaio a gente registrava e o Zé tá sempre de fora registrando tudo. Aí acaba o ensaio e ele dá o feedback do que aconteceu de bom. Algumas vezes coincide com o que a gente achou bom e outras vezes acabava o ensaio, e a gente achava tudo muito ruim, e o Zé dizia “hoje foi muito interessante” (Risos). “Não, é que aconteceram coisas ruins porque…”

Juliene: Parece médium, né? Não lembra o que fez direito…

O.E.: Exatamente, porque é diferente. Algumas vezes – não é, Zé? – coincidia, outras vezes, não. Era o olhar de fora, dele, que pontuava e que dizia “não, hoje houve silêncios muito importantes que ainda não tinham aparecido”. E pra gente tinha sido um tédio, porque a gente tinha vindo de um dia anterior de conversa com cafezinho que eram confusas e engraçadas, né? E que tinham outro ritmo. Aí eu vou e transformo isso que o Fred disse da Solange, aí vira texto. Eu vou pro computador e anoto, por quê? Porque alguém da platéia disse “ah! Eu gostava daquilo”, então a platéia interferiu muito diretamente. Tanto que o primeiro ensaio que a gente fez foi só pra mulheres. Porque como eram só homens na montagem, a gente queria ver como é que a mulher recebia aquilo. Se estava ficando um olhar muito masculino. É importante a gente ter feito o primeiro observatório de criação assim pra abrir pra esse olhar feminino.

Maurício: O público que vocês tinham nos ensaios abertos, era um público diversificado? Era um público que já acompanhava o grupo?

J.W.A.: Diversificado, tinha desde amigos próximos, até a vizinhança. A nossa sede não é centralizada na cidade. É um bairro a parte do centro, onde as coisas aconteceriam. Então, a gente ainda acha bacana porque ali funciona uma escola de teatro – o nosso curso livre de iniciação em teatro – então tem a oportunidade também da vizinhança. É uma maneira também de ativar essa ação próxima, da região. Era muito bacana porque de repente vizinhos que não têm muito acesso ao teatro pudessem estar presentes. E entre colegas e parceiros e tal, esse sistema do mailing também, de alguma maneira, algumas vezes a gente aciona e faz a divulgação. E as pessoas que se interessam podem ver também. Então, é muito bacana que a gente tem também pessoas que já viram, que já participaram de alguma demonstração aberta de algum outro espetáculo, que assistiram algum outro espetáculo de repertório e que já têm um olhar… de alguma maneira acompanhando essa evolução do grupo. Quanto os que viram pela primeira vez. E isso dá gramaturas de percepção muito diferenciadas pro material nosso. E isso é muito bacana.

O.E.: De Curitiba pra agora, por exemplo, a gente mudou a luz de uma cena em função de um amigo nosso, que é professor de teatro. Ele assistiu, gostou muito e saiu encantado com a peça. Ele problematizou uma coisa na luz, na cena da morte da mãe. A gente entendeu e a gente – não que tenha aceito a sugestão exata que ele deu, mas entendendo a sugestão dele, a gente entende o problema – e aí a gente modificou a cena.

Juliene: Mesmo depois de pronto…

O.E.: É, isso depois de Curitiba. Se você pega um vídeo de Curitiba e um daqui, sabe? Ali tem uma cena que está diferente. Eu acho que são sutilezas. Mas essas sutilezas e detalhes fazem toda a diferença.

Fabrício: Vocês estão falando de um diálogo aberto permanente com o público e eu queria saber em que medida esse diálogo também se dá com alguma crítica que vocês tenham recebido. Porque você falou da luz e, em específico, hoje saiu a crítica do [Alexandre] Mate e ele coloca a questão da luz como algo moralista na cena do nu. Algumas críticas também alteraram os rumos do que vocês estavam criando?

O.E.: A gente entende o jornalista e o crítico como um parceiro também. A crítica é a obra do jornalista, mas ela não é a peça. Ela é uma visão subjetiva daquilo, que é óbvio, com todo o parâmetro que ele vai ter. Então ele é mais um parceiro nesse sentido. Ele não é uma ameaça. E é lógico que em algumas coisas a gente não tem como mexer, porque tem uma base. Se alguém desconstrói tudo e derruba tudo, a gente vai entender que ele não gostou mesmo. Radicalmente. Porque quando é uma questão de detalhe é uma coisa, mas se ele diz “a peça é toda um equívoco, tudo é uma merda, o texto é uma merda, vocês são uma merda…”.

Juliene: “Talvez fosse o caso de mudar os quatro atores…”

O.E.: É, “tinha que mudar o nome da companhia, os atores…”, bem, aí a gente não tem como falar nada. A gente entende que essa pessoa não gosta da gente e vamos trabalhar pra outras, porque o mundo é diverso. Né? Mas hoje, no café eu conversei com ele [Alexandre Mate], fui lá agradecer, porque eu achei o texto dele lindo. Um texto lindo, a crítica que saiu hoje. É lindo o que ele escreveu. E especialmente naquele momento da luz a gente vai sentar e conversar. Por que a luz é assim? Porque no meu desejo ela seria no escuro. Mas no escuro pro iluminador – iluminador você sabe, né? Eles acham que um blackout é uma coisa antiga. Então eu digo “não, é um blackout dramatúrgico!”. Mas a gente já tem um no espetáculo, que é justo, no momento em que a festa acaba, fica no escuro, e os personagens conversam: “você viu Raul e Saul?”, “ah, foram embora”, “embora juntos?” “foram juntos, é?”. Porque a gente não quer que apareçam outros personagens da peça.

J.W.A.: Agora, por exemplo, um dado objetivo que gera essa luz, que é bacana de entender também. Dentro do galpão em que a gente trabalha, ao longo do processo, a opção era a utilização de tudo que estava no entorno, que estavam ali acessíveis. Coisas utilitárias nossas. Então são as nossas luminárias mesmo que eles manipulam em cena. Isso tudo ia fazendo a iluminação dessa cena. Nas dinâmicas dos vários períodos de direção, isso foi sendo utilizado de improviso pelos atores. Acontecia de ter jogos em que havia quatro ou cinco luminárias acesas. Eventualmente duas. Havia alguns jogos de foco, um de buscar foco com a luminária para alguma ação minúscula que estivesse fazendo ali próxima e idéia da intimidade. Então muita coisa da luminária viabilizar o foco. E coincidentemente na dinâmica em que essa circunstância do nu, da cena em que os dois dormem nus, porém separados no espaço, percebendo a brasa do cigarro um do outro – deu-se num momento em que as luzes todas estavam apagadas. Mas tinha uma luz âmbar que vinha do poste da rua, que vazava e mesclava o lugar onde a gente estava com uma luz muito próxima. Então ela entrou nesse lugar e os iluminadores, tendo flagrado isso, ele quiseram capturar esse momento. Até brincamos, porque essa janela já teria participado de outros espetáculos. Coincidentemente, como a gente sempre faz a preparação desses espetáculos de repertório já dentro da nossa sede, então em alguns outros momentos isso já tinha acontecido. Inclusive com iluminadores diferentes. Essa luz foi de alguma maneira apropriada e a gente brinca agora que é como se ela fosse um ícone.

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Juliene: Não pode reformar o espaço nunca mais…

J.W.A.: Não é uma dramaturgia de espaço, mas esse espaço acaba efetivamente invadindo e sendo capturado.

Fabrício: Até porque não tem como não ter uma dramaturgia do espaço. De alguma maneira o espaço sempre vai alterar…

J.W.A.: Exato, até porque o percurso é outro, mas a gente leva isso.

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Maurício: Quer dizer, tem como, mas você estará fazendo uma outra linguagem. Você deixa praticamente de comunicar com o espaço pra não adaptar a dramaturgia…

Juliene: É muito difícil…

O.E.: E aí a gente entende como muita tranqüilidade isso que ele escreve. Porque talvez o que ele achou moralista tenha sido o ritmo com que a luz muda. Porque na verdade aquela cena acontece já de madrugada, na hora em que eles estão indo dormir.

Juliene: E ele só se sabem pela brasa, né? A idéia do texto é essa…

O.E.: A imagem mais importante de enxergar, em qualquer luz, naquele momento é cigarro. Mas, por exemplo, por que pode dar a sensação de moralismo? Porque talvez tenha mudado a luz no instante em que a gente se despe. Ai fala “ah, baixou a luz porque está se despindo…”. Entende?

Juliene: “Tadinhos, tão com vergonha”, né?

O.E.: Então isso pode dar essa sensação, porque a leitura é essa…

Fabrício: Mas assim, eu usei esse exemplo em específico…

O.E.: Não, mas a gente discute…

J.W.A.: Um crítico ponderou sobre uma coisa muito sutil: num determinado diálogo, a impressão que a gente passava comentando sobre um disco do Benito de Paula, soava de uma certa maneira hostil e que destoava talvez. Ele ponderou isso numa conversa informal assim…

O.E.: E publicou…

J.W.A.: Conversou conosco e chegou a publicar. Quer dizer, então isso acaba entrando, quando você formula a pergunta, entra nesse aspecto do observatório também. A gente escuta e acabou que com um ajuste de frases desse diálogo, de alguma maneira a gente brinca com essa circunstância que nos interessava: A provocação de uma situação. A nova formulação vem de uma provocação dele.

O.E.: E foi alterado.

Juliene: E não é necessariamente porque a outra pessoa quer. O cara está criticando pra você mudar e fazer exatamente como ele quer….

J.W.A.: Tem um princípio que acho que é bacana de colocar…

O.E.: Gera na gente, na verdade, uma reflexão. E a gente está aberto a essa reflexão.

J.W.A.: Acho que um exercício que foi muito bacana entre nós cinco é que a gente acabou percebendo que tinha uma qualidade de escuta interna, que acho que veio inclusive da dissonância de outros treinamentos aonde essa escuta talvez não estivesse tão apurada e pra isso acho que vale o amadurecimento de ter passado por um processo colaborativo, com a coordenação do Tó Araújo; de ter feito um espetáculo anterior que foi o Não desperdice sua única vida com direção de Cida Falabella, que também tinha uma construção coletivizada muito grande. E nessa ocasião acho que a gente já despertou. E até pelo encanto pelo próprio conto, acho que ele foi muito agregador nesse sentido: a poética do conto nos colocou numa estase de sensibilidade um com o outro muito grande. Então o princípio básico era escutar e experimentar. E se aquilo se estabelecesse – eu brinco assim, isso até é uma piada minha – que são três “Es”: o experimentar, o estabelecer e o escutar. Que isso perpassasse. Então aquele exercício era legitimado. A gente não perdia muito tempo discutindo idéias, cada um com seu período de estímulo no exercício de direção, ele não antecipava o que seria o projeto. Era uma supresa pra nós todos. A gente se afetava durante o processo. Então eu acho que esse exercício de escuta faz com que inclusive esses papéis do cadastro que a gente solicita no final do espetáculo que as pessoas preencham, ou as pessoas que participam das demonstrações abertas, um crítico… quer dizer, se esse canal da escuta estiver aberto, a gente pode experimentar se aquilo se estabelece e se justifica, ele ganha uma autoridade e ele pede pra entrar na cena, e aí ele entra pra nossa dramaturgia.

O.E.: Agora, por exemplo, a gente teve um crítico que escreveu… uma crítica que foi ruim, que ele escreveu que a peça não tinha coragem de levantar a bandeira gay. Mas assim, a gente achou interessante e agente conversou com ele amigavelmente, a gente falou “não, bacana que você está dizendo isso”. Mas aí isso tá falando mais da necessidade dele.

J.W.A.: Até porque o editorial dele…

O.E.: Porque na verdade ali pra gente, importa pouco… acho que importa pouco até a questão do preconceito, entende? Acho que importa muito mais – o que é uma coisa rara hoje em dia, num mundo cada vez mais solitário e a gente cada vez mais se relacionando via MSN – importa que num ambiente muito árido – que inclusive podia ser um elenco de teatro, um hospital – porque você tem instituições burocráticas, que vão fazer teatro com uma má-vontade do cão… Mas que num ambiente muito árido há alguma possibilidade de encontro e no encontro alguma transformação pode acontecer. Isso pra mim, por exemplo, é o que mais pega, entende? Pra mim a peça fala disso dessa sensibilidade.

Juliene: Por que é mais que o encontro romântico, é isso que é a questão, eu acho. Pode ser… Se a pessoa quiser interpretar como romântico, acho que bacana, mas não acho que também precisa não ser. Pode ser, na boa. Mas é que é mais…

O.E.: É porque pra gente eles podem ser gays? Podem. Eles podem ser hetero? Podem. Um pode ser gay e o outro pode ser hetero? Podem. E que importa? Eles podiam ser duas mulheres? Podem. Podia ser um homem e uma mulher? Podem. A idéia que na verdade…

Juliene: A idéia é mais o deserto de onde eles saem, eu acho…

O.E.: Eu acho que eles poderiam ser dois pingüins.

J.W.A.: Numa altura do campeonato, o Rômulo, ele se interando do processo todo ele traz uma história de dois pingüins. Nos presenteia, nos acarinha com essa história pra dizer que importa menos os gêneros e as análises combinatórias do que, acho que o que pega, essa possibilidade de afetos construídos. E que eu acho que assim a despeito de que o foco não seja pensar “ah, vamos levantar a bandeira do preconceito”, de qualquer forma a intolerância é uma coisa que é impressionante no conto e que a gente, acho que de alguma maneira, consegue traduzir nesse espetáculo. A despeito do que fosse qualquer coisa pro subjetivo dos dois, a repartição, a instituição decide. E não só decide como determina um destino pra eles, no sentido da demissão. Eu acho que isso é muito interessante.

Juliene: E ao mesmo tempo não determinam, eles não saem dali com um destino determinado…

J.W.A.: Supõe que destine.

Juliene: Exatamente.

J.W.A.: Então eu acho que isso é muito bacana. Como as pessoas se arvoram a supor e a partir da suposição tentar fazer encaminhamentos dessa ordem, eu acho que isso é muito bonito no conto de ver, realmente como que as pessoas acabam sendo envenenadas pelo tal deserto de almas…

Fabrício: Seja bem vindo

(Chega Cláudio Dias)

Juliene: Essa coisa toda de mídia e você ficar favorável ou não favorável… é muito legal vocês terem tocado nesse assunto. De que essa foi a única mais desfavorável até pra saber como é que vocês estão lidando com isso. Porque pra gente a impressão é de que o espetáculo foi abraçado pela crítica, pela mídia, de um jeito muito efusivo. Como é que é isso também, né? Porque na crítica negativa as pessoas têm uma reação que a gente já mais ou menos conhece, de tentar explicar, de sentar como vocês fizeram, ou de brigar. Mas essa sensação assim, de estar sendo abraçado mesmo pela crítica…

Fabrício: É, e eu queria complexificar com uma questão de um grupo que vocês devem conhecer bem de lá, o Espanca!, que eles estrearam, eles mostraram o primeiro trabalho deles em Curitiba e teve uma repercussão nacional muito grande e eles estrearam o segundo trabalho lá, depois reformularam tudo, pelo que me consta. Eu só vi os dois espetáculos depois deles já reformulados. Então em que medida essa exposição consegue ser catalisada e/ou atrapalha pros próximos trabalhos? Porque a gente viu que em Curitiba teve uma grande… bem a gente não fez um clipping de vocês, mas a gente sabe que a recepção foi ótima. E a gente queria saber em que medida isso entra de alguma maneira no espetáculo e o quanto que isso altera a próxima.

O.E.: Na verdade, a primeira peça do grupo, que foi Perdoa-me por me traíres, nossa peça de formatura. Ela ganhou todos os prêmios em Minas. E aí foi uma loucura porque no dia seguinte ao prêmio, muita gente apareceu no teatro com uma cara assim “quero ver quem são esses meninos”. E o espetáculo foi responsável pela fundação da companhia em 2001. Era um espetáculo também muito bem recebido pela crítica em Belo Horizonte. A gente viajou bastante. Fizemos temporada no Sesc Belenzinho, fizemos várias capitais… Quando a gente fez um espetáculo depois desse, as pessoas foram pra ver Perdoa-me por me traíres. E era um espetáculo muito delicado que foi o Nessa data querida, construído num processo colaborativo do Projeto Cine Orto, que inaugurava pra gente um outro entendimento de uma dramaturgia contemporânea – só que é lógico, a gente só tem consciência disso depois. Onde começa toda a discussão da autoralidade radical do ator, da presença autoral do ator. Então era um salto pra companhia e as pessoas ficavam desapontadas por não estarem vendo Perdoa-me por me traíres de novo. Então sabe quando que o espetáculo foi bem recebido em Belo Horizonte? Três anos depois da estréia. Foi quando as pessoas deram conta de assistir. Porque já era tempo suficiente pra ter esquecido o Perdoa-me e perceberam que o Nessa data querida tinha características – não é comparando se melhor ou pior – mas que ele era de um processo inclusive evolutivo. Eu não estava no espetáculo, a Bela também não, o Zé também não, o Rômulo ainda não tinha chegado nessa época. Quando a gente assistiu, o Cláudio que faz parte do espetáculo, a gente reconheceu o grupo ali. No entanto, era totalmente diferente do Perdoa-me.

J.W.A.: : Importante dizer também que nessa etapa, o primeiro produto do Cena 3X4 – que tem até esse nome em função dos que assinam, que o processo colaborativo seria feito dessa triangulação entre diretor, dramaturgo e atores vindos de quatro grupos diferentes – quer dizer, tinha essa coisa de um formato menor porque a idéia era a de formatar uma cena de 20 minutos. O primeiro produto, que foi essa cena de 20 minutos, trouxe um arrebatamento e um encantamento instantâneos. Inclusive pessoas da platéia diziam que nessas cirscunstências, já se percebia alguma identidade que nós nem estávamos ainda nos dando conta dela. Perdoa-me foi entregue e ficou três anos em carreira, sendo que nós não tivéssemos condições, em função de pauta, participação em festivais internacionais, riocenacontemporanea, a gente foi pro Rio, pro Chile. Enfim, a gente falou que a gente se conheceria nesse segundo trabalho. E essa cena de 20 minutos trouxe esse lugar desse encantamento. Tratar dela pro desdobramento da cena pra formatá-la como um espetáculo, a gente trouxe esse desafio em que a gente foi e voltou pra sala de trabalho, pelos mesmos princípios que geraram o processo colaborativo pra tentar fazer o desdobramento. Então eu acho que a gente lidou com a coisa enquanto trabalho. É disso que o Odilon falou que traz algum estranhamento: as pessoas vão em busca de um “vamor ver, após o Perdoa-me por me traíres que espetáculo é esse?” e é bacana, porque, ainda que não tivéssemos formatado o nosso observatório de criação ao modo do que a gente veio fazer mais recentemente com o Aqueles Dois, esse princípio já estava presente, porque a cada feedback, além dos comentários em que as pessoas iam nos devolver, e da própria leitura interna que o grupo fazia; essas reformulações elas se dão organicamente, não no sentido de atender a uma expectativa de outrem. É por uma incomodação e exercício de trabalho nosso, né? Porque se a base é um grupo de atores, que eventualmente convida diretores pra estar com a companhia, no sentido de uma troca possível pra gente manter uma formação continuada; todos os diretores que trabalharam anteriormente conosco disseram, vocês têm já uma gana de improviso ou, na simples formulação de uma cena, já trazer uma autoralidade muito grande – vocês se auto-dirigem. Alguma hora vocês vão ter que dar conta disso. Já havia o embrião dessa provocação anterior. Então é muito bacana pensar nisso como um processo. Como num improviso ele tem momentos potenciais e ele tem lacunas, né, até que a coisa se estabeleça, acho que a gente entende também os nossos espetáculos, fazendo aqui um recorte, talvez fossem uma grande possibilidade disso. Então nós não temos um compromisso com uma estréia de sucesso. A gente tem um compromisso com, tendo finalizado uma etapa do processo, colocá-lo à prova – e à prova nesse sentido de deixá-lo ser degustado pela gente e pela platéia – e ver o que gera, o que é possível capturar daquilo pra ir formalizando uma possível finalização desse espetáculo.

(Continua. Por enquanto, você pode ouvir a última parte da entrevista abaixo)

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'6 comentários para “Entrevista com a Cia. Luna Lunera”'
  1. Ronaldo disse:

    Toda vez que eu entro aqui nessa bacante, eu sorrio!

  2. Gostei da entrevista. O Odilon me deu aula de teatro no Colégio Arnaldo, em BH e desde aquela época a gente já percebia que ele iria brilhar! Parabéns pela revista, é muito bem feita! Tenho trabalhado para que o Opperaa também chegue a este nível.

  3. vanessa disse:

    Hey, massa a entrevista. Conhevo Zé Walter em Recife, na van do festival, indo para o aeroporto!heheheh. Bela peça, bons signos. Vida longa a ” Aqueles dois.”

  4. […] se Hollywood fizer um filme da história do Michael Jackson, precisam chamar o Odilon Esteves do Luna Lunera pra interpretar o cantor na fase branca. Cara de um, focinho (sim, o focinho) de […]

  5. Thayse Nunes disse:

    Eu já li as críticas feitas ao espetáculo Aqueles Dois, e assisti o espetáculo aqui em Pelotas. Realmente, um espetáculo muito bem trabalhado, parabéns pela crítica.

  6. Fernanda disse:

    Eu sou completamente apaixonada pelo Luna, Odilon… uma grande pessoa em minha vida. saudades.

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