Fernanda Vidigal – Coordenadora geral do Festival Mundial de Circo

Bate-Papos   |       |    16 de julho de 2009    |    0 comentários

Entrevista com Fernanda Vidigal

Coordenadora geral do Festival Mundial de Circo

O que, na sua visão, aproxima o circo das outras artes? Isso é um processo atual?

Na verdade, eu escuto falar disso da renovação do circo e de que, nessa renovação, o circo incorporou elementos de outras áreas artísticas, como teatro, dança, música, plásticas. Na verdade o circo sempre fez isso, né? A gente tem, por exemplo, no Brasil o circo-teatro que deu origem a nossa novela e artistas como Dercy Gonçalves, Grande Otelo, Oscarito saíram do circo. Na verdade o circo sempre bebeu dessas fontes, do teatro da dança, da música, atualmente mais do vídeo, das novas tecnologias. Eu acho o espetáculo circense hoje quase que um espetáculo artístico que engloba todas as áreas, sabe? Estamos discutindo muito qual é a formação de um artista circense, e o CNAC (Centro Nacional das Artes do Circo – Escola Superior de Circo da França -) bate muito na tecla de que eles não formam um artista circense somente para realizar seu número. O que importa ao CNAC é formar artistas críticos e que consigam ampliar a visão de mundo e da arte. Então, só técnica não adianta. É preciso estudar teatro, dança, filosofia, história da arte. Eu acho que cada vez mais o artista circense tem essa necessidade de romper barreira. Se não, se for só pela técnica, então é melhor fazer ginástica olímpica, né? Faz um esporte. Arte não é isso.

Existe uma postura contra a extrema especialização para valorizar um artista que conheça todo o processo?

Não falo que a técnica não seja importante. O primeiro número de hoje [o número Morosof 2 ½ apresentado nos dias 24 e 25/7], por exemplo, é um número extremamente técnico e é de uma beleza inacreditável. E isso é um poder do circo, né? Ver uma técnica perfeita, uma acrobacia perfeita, um triplo mortal no ar… é o que nos prende também. Então eu não nego a técnica, só acho que ela não é por si só arte. Geralmente, um artista circense ele não sabe somente o seu número, principalmente nas áreas que envolvem risco, ele precisa saber de segurança, da aparelhagem, montagem do aparelho, ele precisa entender um pouco de físico. Ontem, em uma das palestras, foi citado que muitas modalidades circenses vêm do conhecimento científico. O malabares é matemática pura, o equilibrismo, a história de a pista ser redonda, é simplesmente uma questão de física, uma força centrípeta que ajudava a se equilibrar em cima do cavalo.

A idéia do encontro está muito presente como conceito na programação. Isso é de fato uma intenção clara do Festival?

Acho que o circo precisa e estimula isso, porque é uma arte coletiva. E acho que nós brasileiros precisamos também trocar experiências com outros países, por exemplo, a gente está aí com praticamente todos os diretores de escolas da América Latina, esse encontro é tão rico e a gente se fala tão pouco… o Festival está tendo a oportunidade de proporcionar a criação de uma rede de informação e de troca de experiências entre as escolas da América Latina, isso é inédito.

E isso vai se efetivar? Porque a gente vê muitos encontros que são sempre transformadores de alguma forma, mas que acabam não gerando resultados concretos posteriormente. Nesse caso dos diretores há uma oportunidade clara disso.

Eu acho que vai se efetivar – eu que vivi estes três dias com eles – porque isso é uma necessidade verdadeira. Se fosse uma coisa “proforme”, ah, vamos lá encontrar no Festival, eu vou ver você, ver seu espetáculo e pronto, talvez não, mas nesse caso existe uma necessidade verdadeira de trocar informações sobre financiamento, que todos na América Latina têm muito problema, conversar sobre metodologias, sobre regulamentação, porque o ensino de circo não é regulamentado por nenhum Ministério da Educação de nenhum país da América Latina. Então, esse tipo de coisa, ou eles se unem pra mudar essa realidade – porque eles perceberam, sim, que a união faz a força, mesmo. A gente escreveu uma carta, mas a gente escreveu um documento com prazos: “nós vamos formar essa rede até o dia tal, na Internet até o dia tal, vamos pensar em como manter a rede trocando propostas por email até o dia tal”. Inclusive, pra que isso realmente se efetive o Festival contratou um especialista em gestão e administração de coletivos como esse justamente pra coisa não ficar na conversa, escrever uma carta de Belo Horizonte e pronto. Mas eu acho que, na verdade, o que mais motiva é a necessidade mesmo dessa troca, desse encontro.

Eu gostaria que você comentasse uma questão. Há um detalhe na fala do representante do Ministério da Cultura e da Comunicação da França, Jean-Michel Guy, observando que talvez a crise, por deixar os artistas com medo, prejudique a inventividade. Ao mesmo tempo em que isso pode ser real porque a produção depende sempre de um mínimo de capital, por outro lado é estímulo pra buscar alternativas, se não ficamos no “desculpismo” da crise financeira, não?

Eu também acho. No caso brasileiro, principalmente. O francês é acostumado com subsídio, o Estado subsidia muito a cultural na França. Ele disse que praticamente todo artista, pelo menos do novo circo, que seja integrante de uma companhia é subsidiado pelo governo. A gente pelo contrário, por não ter esse subsídio, a gente se vira de milhões de formas. E aí com essa crise, por exemplo, esse festival até o fim de fevereiro não ia acontecer. Então a gente teve que rebolar, pensar, criar alternativa… e chegar pro poder público e falar: “e aí? Vocês acham ou não acham esse evento importante pra cidade? Vai acontecer ou não? Eu preciso de você, sim! Mesmo que apenas uma chancela, mas eu preciso”. Então, eu acho que a crise, sim, faz a gente levantar da cadeira e criar alternativas. Para os franceses é mais difícil porque já estão acostumados com esse dinheiro… e, claro, um dinheiro utilizado para muito trabalho… quem dera no Brasil fosse assim! Realmente financiamento por empresa privada acontece pouco.

Até fevereiro o festival não aconteceria. O que foi decisivo?

Na verdade o festival é patrocinado com participação de todas as instâncias governamentais: federal, estadual e municipal. Todas elas criaram uma comissão pra incentivar e colaborar na realização de eventos do Ano da França no Brasil, então também por isso a gente faz parte da programação do Ano da França no Brasil que, nesse ano, foi uma salvação. Acho que se a gente não estivesse nesse ano comemorativo fazendo parte dessa programação seria muito mais difícil. O governo francês, por exemplo, pagou parte dos custos da vinda dos franceses pra cá e isso pra nós está sendo fundamental. E, além disso, tivemos apoio de várias empresas privadas através das leis de incentivo – federal, estadual e municipal – e de recursos vindos, por exemplo, direto da prefeitura, direto do governo do estado, dentro dessas comissões do Ano da França no Brasil. Na verdade, pra nós foi uma feliz coincidência. Eu faço questão de falar que a gente não aproveitou essa história do Ano da França, foram duas coisas que coincidiram: uma que desde 2007 nós estávamos conversando com o CNAC pra trazê-los pra cá porque no Brasil não existe uma escola superior de circo – como eu te disse não existe nem regulamentação de escola técnica de circo – então era muito interessante trazer o CNAC pra mostrar a produção de uma escola superior de circo, pra mostrar, nas oficinas, tecnicamente como é importante ter uma escola como essa, então a gente quando descobriu que em 2009 seria o Ano da França no Brasil, falamos: “que feliz coincidência, vamos juntar uma coisa com a outra”. E porque, de fato, não se pode falar da França contemporânea sem falar do circo, existe na França uma valorização muito grande dos espetáculos, dos artistas circenses, ele está em outro patamar com relação ao Brasil.

Tem um foco no contemporâneo?

Tem. Houve, inclusive, uma declaração polêmica ontem de que eles negaram toda sua tradição e começaram do zero, tanto é que na França se diz “novo circo francês”. É uma posição radical, eu acho que isso é impossível, mesmo porque é uma arte milenar e que tem sua história. Você não começa nada do zero assim. Quem vai ensinar a técnica circense senão quem já aprendeu com o passado? Como você vai propor uma coisa pro futuro negando todo seu passado? Hoje em dia você vê espetáculos franceses, ditos circenses, em que você não vê praticamente o circo, a técnica circense, mas são oriundos da escola de circo. São pessoas que fizeram o CNAC e foram, por exemplo, pra uma companhia de dança ou montaram uma companhia de circo, mas que tecnicamente tem somente uma ou duas modalidades e que mistura o resto com tudo, teatro, dança, circo. É um jeito diferente de fazer as coisas.

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Se quiser saber mais, leia também:

Entrevista com Marcos Teixeira, coordenador de circo da Funarte
Reportagem sobre o 5 Festival Mundial de Circo

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