Próximo Ato 2009 – Terceiro dia: A performance noturna

Blog   |       |    6 de novembro de 2009    |    2 comentários

Como parte da programação do encontro, quarta e quinta, o dia todo, houve uma oficina/vivência de intervenção urbana, performance etc. ministrada pela professora Eleonora Fabião com a participação dos grupos. Quem acompanhou seu desenrolar foi nossa querida Juliene, que, provavelmente, em breve relatará suas desventuras. O que importa é que ontem, quinta-feira, dia 05 de novembro, à meia-noite, no vão livre do MASP aconteceu uma performance/intervenção urbana noturna com os participantes da oficina/vivência. E lá estávamos nós.

Chegamos cedo e tomávamos uma cervejinha quando uma chuva torrencial nos desalojou da linda noite e nos acobertamos no vão livre do MASP. Minutos mais tarde começam a chegar atores, atrizes, diretores, diretoras munidos de todos os tipos de lanterna. Deviam estar ali cerca de 150, 200 pessoas (a Polícia Militar provavelmente diria 90 a 100, e a Folha publicaria de 50 a 80 artistas, no máximo).

Quando soou 00h30 todos se deitaram no chão. Cabeça com cabeça, criando múltiplos organismos. E apontaram suas lanternas para cima. Adiante passaram a falar, falar, falar e o “público” (formado dos “artistas” que não participaram da oficina/vivência) se aproximava para escutar. O ruído geral era a polissemia brasileira de infinitos sotaques e cadências, ritmos e léxicos.

Depois de algum tempo silenciaram. Sentaram-se e emitiram juntos sonoridades imitando o vento.

Fim.

Um antenado vendedor de pamonha e milho verde percebendo a aglomeração estacionou ali seu milho-móvel e provavelmente superou em muito as estatísticas de venda daquela chuvosa noite de quinta-feira. Mais do que isso, proporcionou uma incrível crítica “popular-espontânea”.

Tudo começa quando um cabeludo doido chega perto dele, na hora da imitação de vento, e diz, intrigado: “logo se vê que 60% não sabe assoviar”. Ao que o vendedor de pamonha silencia, cruza os braços, olha rindo praquele monte de gente sentada imitando vento e profere a ironia exata: “Envolvente né? Pô! Tô quase sentando aí!”

E assim acaba a intervenção urbana/performance/vivência pós-dramática. Os artistas levantam-se; alguns abraçam-se e um pequeno grupo canta o hino nacional (!) (Se acham que estou mentindo o Fabrício pode confirmar a informação aí nos comentários, pois foi ele que me alertou para o fato).

Quando tudo terminou encontrava-me bastante intrigado. “Que porra foi isso?”. “Por que não aproveitaram a chance histórica de “intervir” de forma radical na cidade?” “Qual o sentido dessa “performance” só para artistas?” “Com o quê estava-se dialogando; com quem?”; “Hino Nacional !?”… Confesso que uma mistura de raiva e tristeza tomou conta de mim. Só faltava um jornalista do G1 ali pra mandar uma notinha no site: “artistas fazem intervenção contemporânea-nacionalista no MASP” – E eu pensava com meus botões: “mais um ato estéril e anestesiado pela subjetividade”.

Assim, nesse estado de pouca clemência expus minhas angustias à extrovertida Juliene. Pois então ela, que acompanhou a oficina/vivência (e que, como já dito, relatará em breve), narrou-me o contexto de criação da performance. Inicialmente, segundo ela, era óbvia a impossibilidade de uma “bandeira” em comum entre tantos grupos e participantes, sendo assim, não se podia, nesse primeiro momento, fazer um ato de afirmativa política. Segundo, que a ideia era que o ato fosse uma “ação” que simbolizasse o encontro único entre tão singulares grupos de teatro do Brasil. Ou seja, uma “prática” artística que unisse todo mundo num contexto outro que o dos debates e discussões. Quanto a forma em si da intervenção havia uma justificativa também: um organismo vivo de sotaques e formatos tão diversos caracterizadores desse mar heterogêneo Brasil.

Menos inconformado, dormi ainda com a angústia. A velha acepção de que “toda arte é política” martelava minha cabeça. Ou seja, a prerrogativa de “não podemos ter afirmativa política” eximiria a intervenção de uma leitura política? Creio que não. Pelo contrário, o “esvaziamento” de “ponto-de-vista” na ação afirma sim uma visão de mundo (ou existe arte pura?). Acredito, então, que uma “visão de mundo” foi deflagrada ali, embora tenha plena convicção que não seja uma constante entre os participantes; um paradigma da performance enquanto ação desvinculada foi “vendido” pela intervenção (queriam ou não seus participantes). O que significa que estava ali posta uma afirmação política. A forma escolhida transbordava conteúdos políticos, mas somada à afirmativa “não temos bandeira, não podemos ter afirmativa política” criava um vácuo de contradição e paradoxos. O que redundou, a meu ver, numa infantilização acrítica de um momento histórico como esse encontro de grupos, que mais do que ninguém deveriam saber que forma agrega discurso político.

Posso estar exagerando. Afinal foi só uma confraternização inocente e festiva, que celebrava justamente esse momento histórico único. Mas tendo a acreditar que nós, artistas que se afirmam num “contraponto” aos modos de organização e produção das grandes “empresas” teatrais (o teatro de grupo, por si só, representa isso), temos uma responsabilidade muito grande em nossas ações. Desse modo, uma intervenção “inocente” como essa incorre numa diluição de um já dificultoso discurso em comum.

Ora, e se não temos “bandeiras”, que as criemos. Não nos satisfaçamos com as exíguas, e facílimas, afirmações da pluralidade. Não mais. Já basta o mundo inteiro, com suas pseudo-democracias, fazendo isso.

'2 comentários para “Próximo Ato 2009 – Terceiro dia: A performance noturna”'
  1. Fabrício disse:

    Paulo

    Recebi com um pé atrás a fala da Tânia de ontem. Acho a questão da pluralidade mais complexa do que um discurso “pau no cu”, mas entendo o que ela está dizendo.
    São contextos parecidos na internet e nos grupos de teatro. Na internet vemos uma quantidade avassaladora de novos espaços de comunicação, que nos tornam (ou obrigam) que a comunicação seja mais plural. É hilário ligar a TV hj e ver a programação deles correndo atrás de notícias velhas da internet, com uma mega estrutura hipertrofiada. Quem gosta de novela, que me desculpe, mas é muito mais interessante ler uma dezena de páginas do Orkut, do que ver qualquer capítulo de novela. Quero dizer que a internet representa pluralidade, o que é em si um avanço, do ponto de vista da escolha do que lemos, vemos e produzimos. Ampliar essa pluralidade por meio do estabelecimento do acesso a todos (e por todos, quero realmente dizer todos) não é uma bandeira pau-no-cu. Pelo contrário, é uma questão política.
    Acho que existe uma analogia entre esse contexto e o dos grupos. Ao mesmo tempo que vejo um momento de mostrar posições claras e estratégias de ação cultural, mais do que estratégias de manutenção de um grupo, vejo também que muitos grupos e públicos precisam que um teatro mai plural chegue em seus espaços. Senão aquela forma artística nunca será destravadora de reflexões. E o cara terá menos possibilidades críticas (falo de públicos e grupos, aproveitando o gancho do próximo ato). É óbvio que garantir a chegada do teatro não resulta necessariamente nem em transformação social nem em efetividade de representação política por meio da arte. Mas ao dizer que tipo de teatro deve chegar a cada lugar, estamos cortando a diversidade.
    Resumindo, aprendi na trupe que o Benjamin falar do artista como alguém que se apropria dos meios de produção do seu tempo. O capitalismo, a internet e o espaço da mercadoria gera (des)caminhos que podem (repito, podem) ser meios de subversão de si próprios. A leitura que se espera é sempre diversa da que se efetiva e a reapropriação é uma constante. Ou seja, é necessário garantir a pluralidade, por mais que se discorde totalmente do discurso que se apresenta. É o paradoxo da democracia (se não for a motriz dela).

  2. Paulo V. Bio disse:

    Oi Fabrico,

    Eu não me lembro de que fala da Tânia você está falando. (e também não me referi a nenhuma fala específica pra escrever esse relato/crítica)

    Sobre a pluralidade penso que meu texto deu a entender que criticava a pluralidade enquanto tal, enquanto valor ético, filosófico, político. Mas não é isso que quis dizer. O quis criticar foi a pluralidade enquanto discurso “digestivo” típico das “democracias” atuais. Ou seja, seu uso como valor positivo, a priori. Acrítico. O que dilui a luta política num discurso humanista de “agregar as diferenças”.

    Só que dentro de um contexto especifico (proximo ato) esse esforço de “agregação da pluralidade” acaba sendo, a meu ver, uma ação sem força alguma, exígua, e compra o que há de pior no termo:

    A pluralidade pela negação da luta objetiva, e das visões diversas. (busca-se então, como as democracias, um estado amorfo, asséptico, anestesiado, imparcial … e inexistente, diga-se de passagem)

    Quando devia ser pluralidade pelo ACÚMULO de várias visões díspares (como sua conceituação filosófica pede)

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