A Alma Imoral

Críticas   |       |    3 de novembro de 2008    |    10 comentários

Uma judia budista cheia de histórias


Foto: Divulgação

Pode-se dizer que a Alma Imoral é um fenômeno. A peça está em cartaz desde junho de 2006 e já foi vista por quase 100.000 pessoas. Já passou por Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Paraná, Espírito Santo, Minas Gerais, Pará e Distrito Federal e está em cartaz desde março de 2008 em São Paulo. Apesar de a temporada paulistana ter começado há oito meses, o teatro continua lotando todos os finais de semana, mesmo com os ingressos ao preço de R$ 50,00. Adicionalmente ao sucesso de público, a montagem, um monólogo feminino sem cenário e sem figurinos expressivos (a atriz passa grande parte da peça sem roupa), ainda acumula uma série de prêmios, em especial a versão carioca do Prêmio Shell 2007 de melhor atriz. Tudo isso caracteriza a peça como um fenômeno. E é nesta hora que você tem que começar a ficar com um pé atrás. Será que esta Alma Imoral não poderia guardar semelhanças com aquele outro monólogo feminino que contabiliza dezenas de milhares de espectadores, aquela peça da mulher que ia pra Marte atrás do bofe? O prêmio Shell também termina gerando uma associação que dá medo: basta lembrar que um outro pelado, o Marcelo Faria, está indicado a melhor ator de 2008 no Rio de Janeiro.

Vencidos os receios, é curioso perceber, já no teatro, que o público desta montagem é provavelmente o mais velho de todos os espetáculos a que já assisti. Praticamente não existem adolescentes. Nada de famílias numerosas com os filhos. Este é o típico programa que o vovô e a vovó e que o papai e a mamãe preferem fazer em casalzinho.

A peça é baseada no livro A Alma Imoral, de Nilton Bonder. Clarice Niskier, a atriz, adaptadora e produtora do espetáculo, aparece sozinha em meio a um cenário simples, que contém apenas uma cadeira e uma mesinha com um jarro d´água. O figurino da atriz também é simples: um vestido do qual Clarice se desvencilha na primeira cena do espetáculo e cujo tecido volta a cobrir o corpo da atriz de formas diferentes em outros momentos da montagem.

Clarice nos avisa logo no início da peça que o livro praticamente não possui ação dramática convencional, o que poderia dificultar sua transição para os palcos. Para resolver este problema, a atriz usa de um recurso bem baixo: conquista o público com sua simpatia (e com a qualidade das histórias também, afinal de contas, ela não é tão gracinha como a Hebe). Cativado, o público deixa o senso crítico de lado e se vê completamente entretido por Clarice. Dá vontade de levá-la para um almoço de domingo com a família.

Momentaneamente sem meu senso crítico, eu trato de recuperá-lo logo. Quem me ajuda nesta tarefa é uma senhora da primeira fila, que parece se impressionar com qualquer coisa que ouve. Clarice diz um pensamento interessante sobre as tradições e a senhora completa: “Nooooosssa!!”, Clarice conta uma parábola do Antigo Testamento e a senhora completa: “Nooooosssa!!”, Clarice conta um piada sobre um rabino em seu leito de morte e a senhora completa: “Nooooosssa!!”, Clarice pede aos espectadores que desliguem seus celulares e a senhora completa: “Nooooosssa!!”, Clarice bebe água e a senhora completa: “Nooooosssa!!”. Quando Clarice repete um texto a pedido de um espectador, o “Nooooosssa!!” aparece novamente, no mesmo lugar em que estava da primeira vez em que o texto havia sido dito. Chego a desconfiar que o “Nooooosssa!!” faz parte de uma gravação, mas alguns amigos juram que viram a tal senhora.

Ao longo da peça, as histórias e pensamentos compartilhados com o público são muitos, e a maioria deles permite que você divague longamente sobre o que escutou. Em muitos trechos, eu divago e perco alguma coisa do que foi dito na seqüência. Para evitar este problema, a atriz já avisa, logo no início da peça, que em determinado momento do espetáculo, ela vai beber água e que, neste momento, os espectadores podem pedir que ela repita qualquer texto da peça, simplesmente dizendo uma palavra qualquer do trecho. Eu já começo a imaginar a atriz recitando as pérolas de sabedoria ENQUANTO bebe água mas, para minha decepção, não se trata de um número circense, mas tão somente da repetição de algumas trechos do que já havia sido dito.

Mesmo sem absorver tudo o que foi dito, é possível sair do teatro com muito pra pensar. Algumas idéias e pensamentos repercutem por vários dias. E isso é bem mais do que a maioria das montagens pode proporcionar.

158 historinhas do Velho Testamento e 1 espectador com vontade de levar a atriz para um almoço de domingo com a família

'10 comentários para “A Alma Imoral”'
  1. Astier Basílio disse:

    E aí Marco,
    a vida é ou não é uma
    xícara de chá?

  2. Marco Albuquerque disse:

    Astier,
    É sim…
    Mas cada um decide se vai beber um chá amargo ou adocicado.
    Nooooosssa!!
    rsrs
    Abração

  3. Hudson disse:

    Esperava mais da peça. Apesar do texto aparentemente transgressor, a montagem é bastante convencional, nada transgressora. Sinceramente, esse monólogo está mais uma pregação dominical, recheada de histórias bíblicas e piadas sobre rabinos, do que um texto inteligente sobre a condição humana. E o desempenho da atriz, convenhamos, não justifica o alarde. Enfim, muito barulho por nada!

  4. Ollyvia disse:

    Por esses prêmios eu esperava BEM mais. Pra mim ela só recitou trechos do livro, sendo a Clarice atriz, não havia um personagem. Me senti num bate papo. As performaces corporais que ela fazia no intervalo de cada trecho é lindo de ver mas não achei uma conexão com o texto, parecia q colocou só pra ficar dinâmico. O texto é maravilhoso, sem dúvidas que estou refletindo até agora.

  5. Alexandra disse:

    Fica no texto, e se perde no texto.
    A necessidade da introdução-justicatória já diz muito sobre o trabalho. Não tem ação dramática o texto? Para isso existe a arte transformadora, e se ela mesmo se coloca como “adaptação” eu espera no minímo uma fuga tanto em imagens quanto sonora. Como palestra estava ótimo. Como peça de teatro, faltou chegar na platéia.
    Comprarei o livro, deve ser muito bom. Não indicarei a peça.

  6. Anete disse:

    É simples, fantástica e transformadora!

  7. beto disse:

    Maravilhoso!!! Sou um ser humano com o tempo diferente dos demais

  8. Valéria Baldner disse:

    Assisti a peça e não paro de refletir sobre as questões. Texto maravilhoso. Interpretação a altura. O conteúdo dos textos e o carisma da atriz embalam a platéia de maneira que não conseguimos piscar os olhos de tão centrados. A atriz nua e não-nua em seus diversos “papéis” demonstrou total coerência com as palavras. Instigante. Intenso. Radiante. Parabéns! Indico a peça, a atriz e a reflexão. O livro agora me espera. Valéria Baldner

  9. Raquel disse:

    Compartilho da minha segunda ida a essa peça. A princípio pensei: porque ir a segunda vez sendo que poderia ler o livro? Depois ir acompanhada de algumas amigas, e atraída pelo preço justo (15 reais) e último dia da temporada carioca, eu percebi a que tinha ido ver. Ler o livro não traria nunca a mesma sensação. Forma e conteúdo se fundem, e me parecem indissociáveis. Não que o texto se distinga na peça e livro, mas como Clarice nos apresenta, sua nudez, e até as dinâmicas com o pano preto são imprescindíveis para fazer aquela peça peça!

    80 min passam num piscar de olhos! Para espectadores atentos ou desatentos, como ela mesmo diz, recomendo fortemente.

  10. Lisa disse:

    As pessoas, no geral, gastom de quem diz ne3o ler e team medo dos que leaem. Veja-se os EUA: em 2000, o W Bush ganhou definitivamente a vantagem que o levaria e0 vitf3ria quando afirmou que nunca mais tinha lido um livro desde a faculdade – como toda a gente sabe que passou o tempo de faculdade completamente alcoolizado, tambe9m nessa altura ne3o deve ter lido grande coisa. O best-seller que este senhor escreveu este1 e0 vista de todos.Je1 com a Victoria ex-Spice Beckham algo de semelhante aconteceu: poucos meses depois de dizer que nunca tinha lido um livro em toda a sua vida, anunciou que tencionava escrever um.* Gosto muito deste “Janta”, mas o Se9rgio em dueto com o Caetano ‘amanhecem Lisboa’ tambe9m muito bem.

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