A Casa dos Budas Ditosos

Críticas   |       |    1 de abril de 2007    |    4 comentários

Pornô antes da pizza


Em uma noite qualquer de janeiro, ao final dos merecidos aplausos pelo espetáculo O Avarento, Paulo Autran pedia um segundo a mais da atenção da platéia para recomendar A Casa dos Budas Ditosos, monólogo interpretado por Fernanda Torres e que dividia o mesmo palco do Teatro Cultura Artística com seu espetáculo.

Muito mais do que política de boa vizinhança, o ator indicava uma das obras mais libertárias dos últimos tempos. Adaptada do livro homônimo de João Ubaldo Ribeiro, a peça conta a vida sexual de uma mulher de 68 anos que viveu sua vida inteira em função do prazer, sem pudor algum.

Ao sair da sala, ouvi um casal saindo e comentando sobre este espetáculo: “Fulano assistiu essa peça que ele indicou, e disse que é pornô.”

Imediatamente comecei a rir. Como pode um espetáculo ser “pornô” se a protagonista fica as duas horas da peça sozinha, sentada em uma cadeira, mostrando apenas as pernas do joelho para baixo? Intrigado, pesquisei a definição para pornográfico no Houaiss e concluí: se for no sentido de “explorar o sexo tratado de maneira chula“, definitivamente a peça não tem nada de pornô. Agora, se interpretarmos como uma peça “que demonstra, descreve ou evoca luxúria ou libidinagem“, aí sim, é deliciosamente pornográfica, no sentido menos pejorativo possível da palavra.

Considerando que o texto é considerado bastante avançado até mesmo para pessoas que se acham com mente mais aberta, fiquei imaginando o quanto os relatos daquela senhora baiana não soariam como um escândalo agressivo aos ouvidos da classe média-alta paulistana que vai ao Cultura Artística para pagar dez reais numa taça de espumante nacional.

Suas histórias seriam suficientes para que muita gente se levantasse da poltrona logo nos primeiros vinte minutos, mas não é exatamente isso o que acontece, ou esta terceira temporada na cidade não teria sido prorrogada até agora. E jamais estaria naquele palco elitista. O fato é que Fernanda Torres se entrega de uma forma tão intensa à personagem, conferindo-lhe um senso de humor e uma presença de palco tão impressionantes, que a platéia fica cativada do início ao fim, hipnotizada pelo relato daquela libertina fantástica.

A primeira vez que assisti a esta peça foi em sua primeira temporada, no pequeno e intimista teatro do Centro Cultural Banco do Brasil (onde paguei menos de dez reais pelo ingresso, vale frisar). Já no teatrão chique de mais de mil lugares no meio dos puteiros da Nestor Pestana, o espetáculo continua excelente e a transposição do relato para o formato de uma palestra funciona ainda melhor.

Assistindo pela segunda vez nesta temporada, percebi que aconteciam dois espetáculos em paralelo, um de frente para o outro: a atriz e seu monólogo, e do outro lado as reações de uma verdadeira horda de velhinhas chiques e cintilantes, ostentando jóias aparentes, todas maquiadas e perfumadas como se fossem a um baile. Em meio a elas, vários casais de classe média em geral mais velhos, todos igualmente bem-vestidos e reagiam da mesma maneira, apesar da ausência dos paetês, lantejoulas e maquiagens pesadas.

Com certeza muitos estavam ali por ser um sucesso de bilheteria com uma atriz da Rede Globo em cartaz. E isso não basta quando o espetáculo não é comédia, mas felizmente a peça em questão preenche todos os requisitos básicos do grande público de teatro comercial.

Ingressos destacados, poltronas aquecidas com as respectivas bundas, e entra a personagem no palco. Todos começam a se deliciar com as histórias extremanente bem-humoradas de sua primeira relação sexual, seu desvirginamento e as dezenas de peripécias que aprendeu com sua melhor amiga Norma Lúcia (que by the way será interpretada por Hebe Camargo na versão do texto para o cinema, e isso é sempre importante ressaltar).

As rea̵̤es ṣo positivas e aparentemente liberais, at̩ que ela come̤a a falar de incesto. Primeiro vem o tio e a plat̩ia estranha, apesar de ainda se divertir Рchegando a aplaudir em cena aberta a verṣo sacana que ela cantarola para Eine Kleine Nachtmusik de Mozart. E enṭo v̻m as rela̵̤es sexuais com o irṃo e o teatro mergulha no mais absoluto sil̻ncio que paira por aproximadamente uns dez minutos. Se as luzes se acendessem, como acontecia na temporada do CCBB, a atriz se divertiria com uma plat̩ia de mil pessoas ruborizadas.

Como toda tortura tem seu fim, o momento tenso passa e ela volta a assuntos mais amenos, trazendo todos de volta para suas zonas de conforto. Entre uma gargalhada e outra, ela solta alguma como “(…) porque toda mulher já deu o cu (…)“, e a platéia pudica reage com silêncios ou risadinhas abafadas e incômodas.

Essas alfinetadas são constantes, e são feitas com a rara sensibilidade de provocar (e muito!) sem necessariamente agredir as pessoas que, queiram ou não, são forçadas a encarar diversos tabus extremamente fortes em nossa sociedade, como monogamia, heterossexualidade, castidade, incesto…

Depois de tanto libertarismo, depois dos aplausos e no caminho até a saída do teatro, fica a cargo de cada pessoa se questionará seus próprios bloqueios ou se vai simplesmente engavetar aquela peça junto com todas as outras porcarias que viu, inclusive ali naquele mesmo palco, e partir para a pizzaria mais próxima logo em seguida. Mas independente desta escolha, a arte já terá cumprido o seu papel com grande sucesso: provocar. Neste caso, de forma primorosa, com humor e muita elegância.

5 orgasmos

'4 comentários para “A Casa dos Budas Ditosos”'
  1. amo a fernanda… adoraria ter visto essa peça. quem sabe um dia ainda veja. mas, outra coisa do botox: onde estão as datas em que foram publicadas as críticas? ou será que é minha vista?… beijos2.

  2. […] não li o livro, mas já me disseram que é realmente bom. Fernanda Torres até protagonizou uma peça de teatro sobre essa história. Faz parte da coleção Plenos Pecados, que reuniu escritores bambas para […]

  3. João Batista Zanin disse:

    Eu fui assistir e me arrependi profundamente! Que baixo nível total e completo. A peça é porno no sentido literal da palavra e pra ser pornô não precisa ter duas pessoas no palco né malandro?? Basta que seja extremamente de mau gosto…e o que é mau gosto? É Fernanda Torres num palco podendo falar o que lhe vem à mente. Lamentavelmente essa moça nem parece que nasceu de uma atriz tão elegante como Fernanda Montenegro. O que esta última tem de classe a filha tem de desbocada e de baixarias mil. PERCAM!!

  4. Rejane Albuquerque disse:

    Pornográfico?? É muito melhor que pornografia rsrs Excita muito mais rsrs É Pra provocar mesmo, pra mexer com o que pensamos e fazemos (ou deixamos de fazer) quando o assunto é sexo… Texto muito bem escrito, delicioso de acompanhar… honesto e direto… e a Fernanda é perfeita para o papel! Admito quem tem a coragem e pode dizer o que pensa. Eu super recomendo a peça, uma reflexão sobre o assunto e o texto acima também. Concordo com o que foi dito sobre a peça e tb percebi o silêncio na plateia qdo o tema era incesto…

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