A Missão: Lembrança de uma Revolução

Críticas   |       |    24 de setembro de 2007    |    7 comentários

A Revolução na Terreira

Fotos: Cláudio Etges


Teatro de Vivência é o nome que a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz (lembra deles, de Kassandra in Process?) dá para um teatro em que o espectador é qualquer coisa menos passivo (não, eles num têm nada com a orientação sexual de ninguém, aqui falamos de passividade crítica mesmo). A partir do momento em que colocamos o pé dentro da Terreira da Tribo, a sede do grupo na capital gaúcha, é preciso estar preparado para viver uma experiência sensorial completa. Na verdade “estar preparado” é bastante relativo, porque lá dentro nós nunca saberemos o que nos espera na próxima cena.

Já para o paulistano Teatro da Vertigem, a palavra vivência é usada para denominar um processo de ensaio em que os atores são induzidos a explorar reações (físicas e emocionais) para situações propostas, e a partir da observação destas reações, é possível enriquecer o repertório de cada personagem e até mesmo identificar novos conceitos de encenação. Independente das definições que cada grupo dá para o termo, existem vários pontos em que os grupos dialogam, sobretudo na exploração do espaço e na criação dessa interação com o público.

Mas há várias diferenças também: enquanto o Vertigem trabalha em formato colaborativo, sob a orientação do Tó Araújo, o Ói Nóis desenvolve um trabalho totalmente coletivo, ou seja, o grupo inteiro é responsável pelas atuações, pela encenação, pela cenografia, pela iluminação… E apesar do uso do espaço, também tem uma outra diferença considerável: enquanto o Vertigem se apropria, em geral, de espaços que dialogam com cada uma das montagens em específico, o Ói Nóis sempre utiliza o mesmo espaço, o grande galpão da Terreira, para montar cada uma das peças (exceto, óbvio, quando eles viajam). E a cada produção, o espaço se transforma radicalmente. Isso sem contar toda a postura política do Ói Nóis que está cristalizada em todas suas produções, mas isso a gente deixa prum outro dia, porque agora é hora de falar da peça.

Sobre o que fala A Missão (Lembranças de uma Revolução)? Pois bem, qualquer desavisado que lesse a sinopse da peça acharia que a revolução do título se refere a uma revolta de escravos na Jamaica. Tsc, tsc, tsc. O texto poético do dramaturgo alemão Heiner Müller (ai que boniteza o texto desse menino…) fala de algo muito, mas muito maior do que essa revolta, e muito mais contemporâneo também. Na verdade, a revolta de escravos é uma conseqüência desta revolução maior: a revolução Francesa. Aquela mesmo, que inaugurou a era moderna espalhando por todo o mundo os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. A peça nos apresenta três homens – um nobre, um camponês e um escravo – que pouco tempo após a revolução, são enviados à Jamaica para liderar uma revolta de escravos. Esta missão é um grande fracasso, como já nos indica o prólogo, e mais adiante vemos que cada um destes três personagens é uma brilhante alegoria para os ideais da revolução. Mais que isso, vemos as contradições da revolução já no instante imediatamente após a queda da Bastilha (e de várias cabeças). A Missão é o mesmo texto que o malucão (e também alemão) Frank Castorf enxertou no Anjo Negro, do Nelson Rodrigues, no ano passado. Mas lá, a experiência era um pouco diferente: boa parte dos questionamentos da revolução foram deixados de lado, dando enfoque para o preconceito racial.

Voltando à montagem do Ói Nóis, ao assistir a uma encenação tão intensa e caprichada é possível perceber a importância deste espetáculo para a realidade da América Latina. Para o autor – na voz do personagem Sasportas -, juntamente com a Ásia e a África, a América Latina é a voz da revolução que ainda pode sacudir o mundo ocidentalizado. Meu ceticismo pessimista, no entanto, não me deixa acreditar na possibilidade de uma nova revolução que sacuda o mundo da mesma forma que o axé sacode a Bahia, mas isso é problema meu e não cabe aqui.

O texto traz uma análise ainda mais próxima da realidade de todos quando transporta a cena para um monólogo de um personagem contemporâneo preso em um elevador, um engravatado preocupado em chegar ao andar onde se encontrará com o chefe para receber sua própria missão. Nós, urbanos pós-modernos que nos achamos tão distantes da França de Danton e Robespierre, que não conseguimos enxergar o quão conectados ainda estamos com a realidade insólita e contraditória de uma revolução que aconteceu há tanto tempo e que ainda tem fortes raízes na sociedade contemporânea.

Eu poderia citar várias das imagens inesquecíveis deste espetáculo, mas a única coisa que eu conseguiria é acabar com as surpresas deste labirinto fragmentário em que a Terreira se transforma. De todos os cinco espetáculos gaúchos que vi no período em que estive em Porto Alegre, posso dizer que este é o único que demonstrou extrema maturidade ao encampar um projeto tão grandioso, com escolhas tão acertadas e que proporcionam ao público sensações, ou melhor, vivências tão ricas e ao mesmo tempo incômodas (no melhor dos sentidos). A impressão que tive é que os demais espetáculos ainda se preocupavam demais com o “fazer direitinho” do que com assumir riscos e radicalizar em novas pesquisas de formatos e linguagens, característica que pode ser vista não somente no Sul, mas aqui no Sudeste também. Uma pena, porque o teatro pede cada vez mais revoluções como essa que vemos aqui.

5 espetáculos gaúchos vistos, um inesquecível

'7 comentários para “A Missão: Lembrança de uma Revolução”'
  1. pseudo_anjo disse:

    A MISSÃO (Lembrança de uma Revolução), criação coletiva da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, recebeu o Prêmio Braskem de Melhor Espetáculo no 14° Porto Alegre em cena.

    Na cerimônia de entrega do Prêmio Braskem, a atuadora Marta Haas, representando a Tribo, ressaltou os motivos que levam o Ói Nóis a encenar este texto do autor Heiner Müller:
    “Encenar A MISSÃO, num tempo em que cada vez mais se acirra o individualismo, o cinismo, a descrença nos valores humanistas, é para a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz a possibilidade de ser grupo, a oportunidade de estar junto com as outras pessoas para construir a felicidade guerreira, é olhar atentamente para a História, para não cometer os mesmos equívocos, como uma possibilidade de construir um caminho novo; de refletir o dilema de Debuisson, somos muitos “Debuissons”, a classe bem informada que tem a possibilidade da escolha, que pode optar pelo novo e não pelo velho – sociedade de hoje, organizada sobre as injustiças sociais; é a possibilidade de ser Sasportas, como a maior parte da população brasileira, sem acesso a nada, que ao mesmo tempo traz a revolta e a esperança. Estar ao lado dos oprimidos do mundo todo contra o capitalismo, as corporações, o Estado, as relações de poder senhor-escravo, que obriga a humanidade viver somente em função da repressão, da guerra e da violência. Ser a realização da utopia possível. Aceitar o grande desafio do nosso tempo, organizar a vida com liberdade e solidariedade!”

  2. Maurício Alcântara disse:

    “Pseudo Anjo”, ótima notícia! Fiquei bastante contente de saber que A MISSÃO ganhou o prêmio Braskem. Foi, de longe, o espetáculo de que mais gostei no Em Cena, e nem sabia que estava concorrendo.

    Pra falar a verdade, toda vez que eu entrava em uma peça e tinha aqueles promotores de óculos amarelo divulgando o prêmio, com aquela TV de plasma mostrando os depoimentos gravados no São Pedro eu pensava: “Ixe, qual será o espetáculo que vai ganhar isso???”.

    Merecido.

    Abraços.

  3. Ronaldo Ventura disse:

    Conheci o trabalho do Ói Nóis… com o espetáculo de rua que falava sobre Canudos. Diga-se que foi o melhor cortejo quejá vi na vida! E olha que acompanho cortejos faz algum tempo… E o trabalho deles com bonecões também é fora de série, me lembrou muito o Bread & Puppet.

    E é um grupo antigo! Como São Paulo é uma ilha, né?

  4. Juli =) disse:

    Sim, sim, uma ilhota. Nós conhecemos os caras em Rio Preto, no FIT. Felizmente. É, sim, um trabalho antigo e muito verdadeiro. Isso é legal de ver. Ouvi muito sobre essa peça de Canudos. Dizem ser a melhor de todas…

    Beijos,
    Juli =)

  5. Anonymous disse:

    O trabalho da Tribo de Atuadores é antigo, verdadeiro e tudo + que vocês falaram, porém ,cabe lembrar que é árduo…por ser contestador, feito pra tirar as pessoas da inércia. E envolto numa constante luta por espaço!!
    beijos
    Gaúcha de POA

  6. Maurício Alcântara disse:

    É, “Gaúcha de POA”, como sempre né? Mas por outro lado, essa resistência ajuda a tornar esses grupos ainda mais heróicos…

    Se bem que eu também gostaria que houvesse menos heroísmo e mais condições favoráveis…

  7. Ronaldo Ventura disse:

    Concordo com o Maurício.

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