A Vinda da Família Real

Críticas   |       |    2 de maio de 2010    |    5 comentários

A Família Real e o Jardim Primavera

fotos: Ademir Pereira

Ao me deslocar da estação da CPTM Hebraica-Rebouças até a estação Primavera-Interlagos assisti ao espetáculo da transformação de paisagens na cidade de São Paulo. Os shoppings, a sempre ética Daslu, os bancos e prédios luxuosos de escritórios vão se rareando rapidamente à medida que uma contradição de cimento passa a se apresentar numa mistura abrupta e concreta do famélico e da opulência: a eterna “transição” materializada nas paisagens periféricas; o novo trem asséptico com sua “ciclovia ecológica” e os barracos ininterruptos, eternos, idênticos e alagados das favelas escondidas nas margens da rica São Paulo.

O destino é um bairro que para um estrangeiro-ignorante como eu parece habitado por mais uma parcela da multidão da “classe média baixa” paulistana.

Eu jamais havia estado tão ao sul da minha própria cidade. Tal qual a família real portuguesa que jamais havia pisado em sua própria colônia – pobre e periférica – antes de 1808.

Em 2009 a Cia. Humbalada de Teatro foi contemplada pela Lei de Fomento da cidade de São Paulo. O grupo é oriundo do Teatro Vocacional da Prefeitura de São Paulo e desde o início definiram como espaço de atuação a região periférica do Grajaú e do bairro Jardim Primavera, na região sul. O projeto do grupo consistiu na pesquisa sobre um fato emblemático na história brasileira: a vinda (ou a fuga) da família real portuguesa para o Brasil em 1808.

Napoleão Bonaparte e seu ímpeto expansionista batiam às portas de Lisboa quando a corte portuguesa e seu séquito de 15.000 (!) pessoas já regozijavam com sua “esperteza” a bordo das naus que os levariam, sãos e salvos, à insalubre colônia (que conste que este fato é o único de que se tem registro na história da humanidade de uma corte que abandona sua própria pátria, ou seja, de um corpo político abandonar a única coisa que lhe dá sustento material: a terra e o povo). O episódio é frequentemente relatado de modo sarcástico (não à toa!), pois contém a contradição irônica que fez o Brasil ganhar possibilidades de autonomia, crescimento industrial, cultural e importância política, apenas devido a uma fuga patética (que alguns dizem “estratégica”) das elites lusitanas. (como exemplo de tais relatos, podemos citar o filme de Carla Camurati, Carlota Joaquina, Princesa do Brazil)

E assim também o faz a Cia Humbalada. Com uma representação popular de teatro de rua, o grupo conta o fato ressaltando as características farsescas das personagens históricas, a pomposa rainha D. Maria I (que diz: “não corram!, vão pensar que estamos a fugir”); o estúpido, balofo e medroso D. João VI, sempre faminto; sua passional esposa D. Carlota Joaquina e o imbecil infante D. Pedro, que ficará no Brasil após a volta da corte e proclamará nossa “heróica” independência em 1822. O dado histórico então passa a ser o mote para uma série de bufonarias entre cenas cômicas e farsescas. Munidos de uma carroça multifuncional (que é barco, trono, palanque etc.), os quatro atores chegam cantando à praça e anunciam o que irão representar. Passam então a contar a história desde a partida da corte portuguesa até o retorno de D. João e D. Carlota Joaquina, deixando D. Pedro como regente.

Ao final da função, os atores recolhem tudo de volta à carroça e, já despidos de seus figurinos “de época”, conclamam como despedida: “somos resultado do que fazemos com o passado e não do que o passado faz conosco”… Saem então da maneira como chegaram. No entanto, esta bela exaltação do olhar crítico e ativo sobre a história que encerra o espetáculo não parece se concretizar realmente na peça. Isso porque o momento histórico é discorrido ao longo da representação, parte por parte, sem ponto de vista crítico definido, ou seja, contam-se os fatos sem ter claro qual a perspectiva do olhar sobre os mesmos – o grupo descreve o passado, com um ou outro comentário crítico, ao invés de “articular” (como gostaria Walter Benjamin) radicalmente a história. De modo que nada além da usual, automática e repetida ironia sobressai, e assim o que fica em evidência é unicamente a boa disposição popular e cômica dos atores, que representam sempre em relação viva com o entorno e com as circunstâncias imprevisíveis da rua (como por exemplo, os estrondosos fogos de artifício que comemoravam a vitória do Santos transformaram-se na artilharia de Napoleão e, portanto, botavam em pânico o intrépido D. João).

Trocando em miúdos, o olhar crítico pretendido com a assertiva final não acontece porque o tratamento do material histórico não ultrapassa o óbvio (o patético do fato) e não desdobra no presente a reminiscência do passado. Mesmo a relação concreta apontada no início da peça, a saber, a associação entre a colônia, para onde veio a família real, e as periferias de São Paulo (o que está em consonância com a atuação do grupo na Zona Sul de São Paulo), não se aprofunda e fica apenas como uma referência. Os porquês da escolha desse fato preciso da história brasileira e lusitana fica relativo e abstrato. Por outro lado, a peça também não atinge um caráter didático que seria positivo no tocante à democratização da arte e da história (se a intenção fosse essa), assim, para aqueles que não conhecem bem o tema tudo aquilo deve parecer bastante confuso e desconexo e apenas engraçado; enquanto para aqueles que conhecem, tudo aquilo fica óbvio e simplista: mais da mesma ironia sobre D. João VI e Carlota Joaquina. De modo que não se atua nem como real instrumento de democratização nem tampouco como olhar crítico e ativo sobre a história (e consequentemente sobre o presente).

Não se entende no decorrer do espetáculo qual a intenção do grupo: se é apresentar didaticamente um fato “formador” de nossa história ou se é articular o passado de forma a questionar composições sociais do presente. Na verdade, parece que a Cia. fica no meio do caminho e não se resolve nem por um nem por outro lado. Essa “indecisão” não permite ao grupo fazer escolhas precisas acerca do material. Ficando sempre num movimento pendular entre “explicar um pouco”/ “fazer uma referência crítica ou irônica”… E, tal qual a sina do indeciso (que fica sem as duas mulheres!), não faz uma coisa nem outra.

Porém, a escolha objetiva não acarretaria perda nenhuma, pois é possível abordar criticamente um fato histórico sem redundar no hermetismo e, ao mesmo tempo, é justo e louvável democratizar a história e possibilitar a interpretação dos fatos pelo próprio público – e isso não implica em “redução” nenhuma da “obra de arte”; pois a escolha do momento histórico abordado, a atuação na periferia e a possibilidade de “dar os instrumentos” ao público para tomar suas próprias conclusões (pois iguala o artista ao espectador) é um ato político e artístico de suma importância, a despeito de ser constantemente menosprezado pelas categorias hegemônicas do pensamento contemporâneo.

De qualquer maneira, as premissas de onde parte a Cia Humbalada para atuar com seu teatro de rua parecem bastante potentes e merecem ser comemoradas: o trabalho localizado na periferia, o olhar sobre a história e a disposição em evidenciar contradições entre ontem e hoje são características que diferem positivamente o grupo da grande maioria das cias. teatrais na cidade de São Paulo (embora todas estas características no grupo pudessem ser radicalizadas). O dinheiro público investido no Cia por meio da Lei de Fomento parece encontrar aqui um real processo de construção e atuação cultural e social para além dos egos e das pesquisas formais individuais festejadas no metiê rooseveltiano ou do mainstream da cultura de massas. Aqui o incentivo público parece funcionar como deveria, ou seja, dando instrumentos de produção à população ao invés de levar “cultura pronta” à periferia.

1h30 de viagem do “centro” a “periferia”.

A peça foi assistida domingo dia 25 de abril de 2010 às 17h na Praça João Beiçola da Silva, no bairro do Jardim Primavera. O espetáculo foi gratuito.

'5 comentários para “A Vinda da Família Real”'
  1. Tatiana Monte disse:

    Olá Paulo!
    Sou atriz da Cia Humbalada!
    É engraçado como o processo é revelado na peça, essa transição de uma grupo, amadurecimento do trabalho.
    Aprender a fazer teatro todos os dias, lutar por valores e crenças e mais do que tudo querer fazer teatro em um lugar onde as pessoas querem centros profissionalizante ou um hospital… ou qualquer coisa que não fazemos!
    Mas ainda bater o pé e fazer mesmo assim, resulta em um grupo em fase de amadurecimento, em fase de aprender…de ter sede de teatro….Somos jovens em nossas ideias revolucionárias mas somos velhos em saber que a nossa escolha é o teatro como lavanca de transformação.
    Estamos semeiando sementes, não sabemos ao certo que fruto isso tudo vai dar….mas estamos plantando cada dia!!!
    Obrigada pelos escritos, acho muito justo, não só eu a Cia inteira!!!

    Merda pra gente!!
    E até uma próxima

  2. Olá Tatiana,

    valeu pelo comentário.
    Posso imaginar a dificuldade da atuação de vocês aí e acho muito importante (e bela) a persistência de atuação contra tudo e contra todos.
    Acho que a escolha de vocês em trabalharem no bairro é uma baita decisão política cada vez mais rara em nosso meio, por isso muita sorte, merda e que não falte disposição pra luta

    Espero ainda assistir muitos outros trabalhos de vocês aí na Zona Sul

    Abraços,
    Paulo

  3. carlos disse:

    “De modo que não se atua nem como real instrumento de democratização nem tampouco como olhar crítico e ativo sobre a história (e consequentemente sobre o presente).”
    Como não?
    O simples fato de estarem lá e de haver platéia já vai produzir um resultado, tanto de democratização quanto de olhar sobre a história, que não precisa ser crítico, basta ser olhar. O resto vai acabar acontecendo com o tempo. Se não preenche a proposta intelectual do articulista, é outra coisa. Afinal, nem todos os espectadores possuem sua formação.

  4. Paulo Bio Toledo disse:

    Será Carlos?
    se formos abstratos e relativos você tem razão, mas eu acho que as relações são um pouco mais concretas. Por isso creio que devemos “colocar em crise” algumas dessas verdades sublimes sobre “arte”. (como, por exemplo, “o simples fato de estarem lá e de haver platéia já vai produzir um resultado” – realmente não creio que isso seja verdade – acho que devemos “descer” a arte do olimpo e olhá-la historicamente e nas relações reais que ela enseja na sociedade)

    e eu não sou “articulista”, tampouco tenho uma “proposta intelectual” – demarco justamente duas possibilidades que, acredito eu, não foram radicalmente exploradas por ter-se ficado entre elas.
    A despeito de acreditar que o grupo realiza um trabalho muito legal ali.

    vc viu a peça?

    abraços

  5. rachel disse:

    Minha filha gosta muito da peça,e sempre quando tem apresentação na praça,marcamos presença.Quero agradecer por nos permitir participar ao ar livre de uma linda história real…..Além de ser uma peça educativa pois sabemos que faz parte da história!!!também nos faz rir muito.Parabéns a todos e que Deus os abençoe para um futuro próximo todos colham bons frutos e sejam reconhecido mundialmente, por que não! temos que sonhar grande é só assim que as coisas se realizam….

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