Aquilo de que somos feitos

Críticas   |       |    23 de setembro de 2008    |    4 comentários

Aprendendo a dançar

Foto: Tatian

0h. Início do sexto dia do Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga, quando me desloco para uma casa – o primeiro espaço alternativo de um festival que “sugere” o uso de espaços alternativos, que dialoguem com seu relevo, sua paisagem natural, mas que não efetiva essa “sugestão natural”. Lá estamos todos, sentados em roda no linóleo. Entra Lia Rodrigues, a coreógrafa (sim, é um espetáculo de dança) e levanta o banner que diz “patrocínio” Petrobras. Ela enrola o banner e encobre a palavra patrocínio. Diz que ela assinou um contrato em que se comprometeu a mostrar aquela marca. Pergunta à platéia se todos estão vendo bem, explica que aquilo não é um patrocínio, mas na verdade um financiamento. Diz também que patrocínio é quando uma empresa tira dinheiro do seu caixa pra investir em artistas. A verba destinada à manutenção da Cia é dinheiro público, captado via Lei Rouanet, para um edital em que Lia Rodrigues possivelmente se inscreveu. Está dada a relação crítica inicial da apresentação. Assisto teatro há pelo menos 8 anos e nunca – ressalto, nunca! – vi uma reflexão crítica sobre isso dentro da própria peça. Talvez faltasse ver dança.

Enquanto ainda penso na simplicidade da forma crítica inicial, entra do outro lado do linóleo um homem negro, cabelos à Lenny Kravitz e absolutamente nu. Ele delimita o espaço de apresentação e a platéia corre a se adequar à proposição. Produz uma imagem abstrata com o corpo – não há qualquer música. Levanta-se muy brechtianamente, atravessa a platéia e delimita o novo espaço de apresentação, agora com outro bailarino, também negro e nu. Formas de monstros sem cabeça começam a surgir – isso no meu registro limitado de imagens que estão mais entre dança e artes plásticas, do que para o teatro. O público vai pra lá, volta pra cá e o movimento é a única constante.

Eis que entram os outros seis at(riz)ores-bailarino(a)s. Ao todo são oito, totalmente nus, enfileirados, olhando em nossa direção. Seus movimentos nos levam a um tempo de sensações, de reflexões. Parece que nos estão conduzindo pela mão à “outra realidade” de que fala a Grace Passô, por meio de um personagem em Amores Surdos, só que por um caminho que passa longe de uma forma dramática. Todos vão ao chão e o que se segue são as imagens de maior sugestão de sentidos e sinapses que já vi. Meio como ovos fritando, ou como peixes que estão morrendo, eles começam a se debater, em várias posições. Ali, o referencial mais distante é o humano. Eles se amontoam, formando uma espécie de vulcão em que a lava sobe em vez de descer, montanha instável cheia de terremotos vivos, corpos acumulados de campos de concentração, pedaços de carne que vibram sem organização. Por mais que passasse a tarde toda descrevendo sensações, não seria possível dar conta das sugestões dessa imagem. Nem bem está formada, e logo a desfazem. Agora fica mais fácil associar os corpos com peixes, que vão na direção da platéia como aqueles que procuram voltar pra água. Ninguém sabe como reagir: se segurá-los e interagir com aqueles corpos nus que por sobre nós subiam ou se abrir caminho a esse mar sem água. Juntam-se novamente os corpos numa parede e a sensação geral é um misto de arrebatamento e incômodo.

Por mais que haja, até aí, uma série de sugestões de imagens, ainda está difícil articular pelo menos um possível discurso. É quando entram as roupas e a palavra. O mesmo negão inicial entra novamente, agora vestido, e caminha pela platéia lembrando nas falas o 11 de setembro, palavras jogadas, slogans, frases. É a palavra que agride, que se acumula sem sentido, que nos atinge sem sentirmos. Ele anda pela platéia, agora com o cuidado de encostar o mínimo. Ah, “ok, é um daqueles trabalhos pós-11-de-setembro”, penso para apaziguar. Não, não é datado.

Quatro pedaços de fita crepe delimitam agora um espaço central em que acontecerá as apresentações. Uma música, em ritmo de banda de exército, começa a tocar. A coreografia é dessas sinucas de bico boas demais pra quem escreve: uma marcha, que não pode ser só uma marcha; aliada a algumas falas, quase como gritos de guerra, que não são só gritos de guerra. Esse brave new army chega vestido com roupas que poderíamos definir como cotidianas, as quais aproximam o bailarino de pessoas comuns. Quase como se formássemos, bailarinos e platéia, um grande exército do consumo e do progresso. As falas não dão conta da mesma complexidade das imagens, mas é inegável que existe ali uma dramaturgia de imagem e sons. Aqui terminam minhas impressões sobre o trabalho dos bailarinos.

A ironia da noite fica por conta de Give Peace a Chance, tema final que nos acompanha, depois de ouvirmos clichês como “hay que endurecer pero sin perder la ternura jamás”. Tudo é produto: corpo, fala, apresentação, roupas, dança, festival etc. Tudo é crítica, que não dissocia forma de conteúdo. Tudo é arrebatamento e distanciamento. É dança, mas é teatro também, com alguns dos elementos que mais procuro no teatro.

5 espetáculos de dança em toda a vida

'4 comentários para “Aquilo de que somos feitos”'
  1. Muito bem. Por momentos passa pela minha cabeça o pensamento ingênuo de que, talvez, o idealizador de um espetáculo cênico de dança quisesse saber exatamente o que sente um ´não especialista´ na área, e ler sua crítica. Afinal, ninguém faz arte para especialistas. Ou faz? Beijo.

  2. Fabrício disse:

    Pois é, Maria Clara.
    E tendo visto a Lia Rodrigues pessoalmente, acho que você acertou. É uma pessoa que espera leituras diversas.
    Devo ter viajado em vários pontos, mas escrevi com gosto, como maneira de entrar em diálogo com ela.
    Enfim, legal essa questão que você propõe.
    Abraço

  3. Caio Grattagliano disse:

    Adorei o texto que você escreveu. Eu não assisti à peça mas algumas pessoas me indicaram e então resolvi buscar algum conteúdo na internet. Pronto, juntei o seu texto com os bem-dizeres dos meus amigos sobre a peça e agora estou louco pra ver! Infelizmente eles não vão apresentar mais esse espetáculo em sp né? Minha impressão é de que descobri minha peça favorite sem nem ao menos tê-la visto!rs
    abraços e parabéns pelo texto!

  4. simonny disse:

    eu acho que nos famos feito do barro por varios coisa

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