Diálogos com Molly Bloom

Críticas   |       |    6 de agosto de 2007    |    4 comentários

Na cama com Molly Bloom

Foto: Divulgação

Com a colaboração de Anthony Burgess (in memoriam).

Diálogos com Molly Bloom já começa bem: não estreou no Bloom’s Day!

Esta é literalmente uma peça, no sentido de ser uma parte, um pedaço do livro Ulysses – peça-chave na obra de James Joyce. José Sanchis Sinisterra assina a dramaturgia, ou seja, assume a responsabilidade por transpor o texto original da literatura para o teatro. Não sei o que exatamente ele fez quanto à dramaturgia: Cortou? Pontuou? Explicou? Fiquei com a impressão de que ele arrumou o texto do Joyce com fins quase didáticos. Não sei se isso foi trabalho da dramaturgia, da tradução ou da própria interpretação. Talvez, no trajeto entre a página do livro e o palco, o fluxo de consciência tenha saído da organização das palavras escritas, mas voltou de algum modo na organização das palavras faladas, mesmo que com menos ousadia. Por falar em ousadia, aqui chegamos na parte boa do negócio: cinco nomes assinam a direção, juntos: Andréa Beltrão, Christiane Jatahy, Cristina Moura, Gilberto Gawronski e José Sanchis Sinisterra. Cada um participou como diretor em diferentes momentos do processo. Malu Galli, atriz e idealizadora do projeto, explica: “não adiantava tentarmos ser contemporâneos no resultado, se as relações entre os integrantes da equipe, ou o esquema de funcionamento no teatro permanecia o mesmo há séculos.” Contemporâneo não é uma nova roupagem, é um novo corpo. E isso é um bom começo.

O programa da peça oferece grandes vantagens: não apenas cabe em bolsa de mulher, como também cabe em bolso de homem! Ou seja: os homens não vão deixar o programa na cadeira da platéia, nem vão pedir para a mulher guardar na bolsa e nunca mais pegar de volta. E não é só isso. Ele ainda presenteia os leitores do Joyce, que se sentem muuuuuito cultos ao reconhecer uma referência ao livro! A parte que antecede o mollynólogo (monólogo da Molly em joycês moderno) em Ulysses é uma grande seqüência de perguntas e respostas. (A crítica fez o dever de casa e deu uma relida básica nas últimas partes do Ulysses antes de ver a peça.) O tradicional texto do diretor – ou do dono da bola – no programa é substituído por… perguntas e respostas! E aqui entra todo o mundo em campo: atriz, diretores, iluminador, cenógrafa, etc., para jogar com a variação de vozes e pontos de vista e ilustrar a proposta de embaçar o processo do fazer teatral. O próprio título já propõe um desvio, se levarmos em consideração a epidemia de monólogo no teatro carioca. Este, talvez um monólogo por excelência, poderia até mesmo engrossar o caldo do gênero. No entanto, a opção por chamá-lo “diálogos” (e ainda por cima no plural) traz pelo menos dois possíveis direcionamentos. Um deles é a negação: “Isto não é um monólogo”. O outro é a sutileza de trazer o processo para a cena, colocar em jogo os diálogos entre os cinco diretores e a atriz, entre todos e a personagem-título, entre Molly e Poldy, entre Malu e a platéia.

E começa a peça. Em cena: a cama – o móvel metafísico do Thomas Mann. Ela é o centro do universo da cena: o ponto de chegada de Leopold e o ponto de partida de Molly. É o lugar desta personagem, de sua condição de mulher (do marido e do amante). A noite é infinita e horizontal neste espaço de sonho, assim como o fluxo do pensamento, a extensão da fantasia, o alcance da memória. A cama chama tudo para si: Bloom reconta partes do dia antes de dormir (no livro, não na peça), ela reconta partes da vida; ele traz Stephen Dedalus, ela traz Blazes Boylan; ele oculta traições possíveis, ela revela traições confessas; ele evoca a rua, ela recorda Gibraltar; ele traz um recém-filho vivo, ela traz um filho morto. Os universos díspares da vida comum se encontram neste lugar de natureza transitória e intervalar, que me lembrou um filme da minha infância: Se minha cama voasse. Se esta cama voasse, iria de Dublin a Ítaca, passando por Gibraltar, e voltaria – fiel – ao quarto do casal; no caminho, salvaria StephenDedalusderretidasas de sua queda fatal e ainda traria GertyNausícaapunhetamusa, a salvadora da fidelidade.

Mas ela não voa. Em cima dela, veremos Leopold Bloom dormindo e Molly Bloom falando pelos próximos setenta minutos. Em nenhum momento há sinais de que cinco diretores participaram do processo. De todo modo, acho que ninguém esperaria ver territórios demarcados em cena. Ninguém além da Bárbara, que achou ruim porque não conseguiu distinguir a marca (ou coisa que o valha) dos diretores na cena. Se precisar, Bárbara, a gente faz um desenho…

A platéia se divide (apenas de maneira tênue) entre quem leu e quem não leu Ulysses. Não sei como é pra quem não leu, mas imagino que não faça grande diferença. O espetáculo é auto-suficiente, não pede narrativa nem contextualização além daquela que é dada ao longo da peça. Mas pra quem leu, é claro, há um deleite à parte; ou uma decepção para os sabidos ranzinzas. Trata-se de um constante avivar e apagar de memória. Muitas ex-jovens-atrizes um dia já souberam de cor o último trecho da Molly. Pelo menos a partir de “O sol brilha pra você” até o último “sim”. E ela conseguiu me pegar de surpresa a cada frase até que, segundos depois do último “sim”, eu me dei conta de que tinha passado, tinha acabado… Ela deu a volta na minha leitura e simplesmente colocou a dela no meu ouvido; praticamente me fez esquecer o que eu já conhecia e me deu de presente uma nova Molly. Ela dá muitas voltas em torno da cama, passa por cima do homem, cobre e descobre, deita e levanta, numa ansiedade pré-menstrual-pós-adultério, ansiedade da mulher acordada na cama, da artista acordada no mundo. O resultado é um espetáculo simples (no melhor sentido possível) que revela nos detalhes a beleza de um processo muito pessoal.

5 indicações de melhor ator para Afonso Tostes: dormiu a peça toda e não estava na platéia

'4 comentários para “Diálogos com Molly Bloom”'
  1. Daniele Avila disse:

    e com direito a poleposition…

  2. Valmir disse:

    Dani, vc escreve bem pra caralho. Tenho dito.

  3. dudukatz disse:

    Bela crítica. Ainda vou ver a peça, mas essa crítica, assim como a peça, é “auto-suficiente”. Ainda bem, pois não tive tempo de ler Joyce…rss

  4. Paula disse:

    Daní, acabei lendo antes de ver a peça. Realmente a sua resenha é auto-suficiente, muito boa de ler. A brincadeira com a Sra. Bárbara – que se sentiu incomodada por não ver os 5 territórios (para cada um dos 5 diretores) marcados na cena -fez muito sentido.

O que você acha?

A Bacante é Creative Commons. Alguns direitos reservados. Movida a Wordpress.