Imperador e Galileu

Críticas   |       |    26 de agosto de 2008    |    16 comentários

Quando a realidade suplanta a ficção

Foto: Melagrião

Toca o terceiro sinal no Sesc Santana, os atores entram no palco e é iniciado o espetáculo Imperador e Galileu, dirigido por Sérgio Ferrara a partir do texto de Henrik Ibsen.

Assim que os atores entram em cena, um senhor começa a tossir fortemente na terceira fila. Uma outra tosse, alta e seca, vem da fila J, umas duas fileiras atrás de onde estou sentado.

No canto esquerdo do teatro ouve-se uma tosse tímida. Novas tosses são ouvidas nas primeiras fileiras do teatro. Depois no meio. Por fim, as tosses chegam às cadeiras mais afastadas. O movimento recomeça: nas primeiras fileiras, nas fileiras do meio e depois nas fileiras próximas à entrada do teatro. Seria tão mais fácil se as pessoas levantassem as mãos enquanto tossissem… assim o efeito da ola poderia ser melhor aproveitado…

À minha esquerda, um senhor balança freneticamente um molho de chaves.
Um zíper de bolsa de mulher é aberto.
Alguns segundos depois o zíper é fechado.
Muitas e muitas cadeiras rangem.
Uma risada. Somente uma. De somente uma pessoa. Uma risada completamente solitária.
Uma fungada forte vem de algum lugar à minha direita.
Tosses de tenores ecoam pela sala.
As sopranos tossem em seguida.
Os barítonos tossem e enchem a sala.
As contraltos, as sopranos e os tenores tossem juntos.

Tenho ímpeto de levantar da minha cadeira e reger a sinfonia. Infelizmente não estou trajado como um verdadeiro maestro, e a responsabilidade de reger tantas tosses seria enorme. Permaneço sentado e deixo o ímpeto passar.

Num arroubo de criatividade sonora um celular começa a tocar. As tosses milagrosamente param. O celular não. O celular continua a tocar, e a tocar, e a tocar. Todos olham freneticamente de um lado pro outro tentando identificar de onde vem aquele som. Alguém grita “Desliga o celular!”. Outro grita “Que falta de educação!”. O dono se finge de morto e não dá sinais de que vai fazer com que o celular pare de tocar e assim se identificar perante a platéia. Uma moça da produção (não sei se da peça ou do teatro) corre freneticamente na direção do som e pára perto do local onde o som está sendo gerado, tentando identificar qual é o espectador culpado. No palco, Caco Ciocler diz “Espere um minuto!” e Nelson Peres interrompe o seu texto. A platéia aplaude freneticamente enquanto diversos impropérios são ditos. A moça da produção finalmente identifica a dona do celular, pega a bolsa da fulana, tira o celular de dentro e desliga o aparelho. Caco Ciocler encerra então o episódio dizendo a Nelson Peres: “Agora sim! Fale, Gregório!”

Tosses da esquerda. Tosses da direita. Tosses da frente e tosses de trás.

A moça da produção corre de um lado para outro com copos d´água. Ela tenta identificar na platéia os torcedores roxos, ops, tossedores roxos, e lhes oferece a água na tentativa de que eles não morram asfixiados.

A água não é suficiente e as tosses recomeçam. Da esquerda. Da direita. Da frente. De trás.
Eu fico com vontade de tossir. Percebo que é psicológico. Talvez seja alguma necessidade de aceitação entre meus pares que me leva a querer tossir. Respiro profunda e silenciosamente e a vontade passa.
As tosses surgem de todos os lados. Se elas fossem acompanhadas de algum efeito luminoso eu tenho certeza que teríamos um belo show de luzes.

Para não deixar as tosses dominarem sozinhas os teatros, as cadeiras voltam a ranger. Mas a competição é desleal e as tosses vencem facilmente.

Alguém grita “Como tem tosse essa gente!” É a deixa pra surgirem dois novos tipos de tosse: a tosse fingida e a tosse de provocação. Algumas tosses passam a ser mais tímidas, mas, infelizmente, não por muito tempo.

Ouço um barulho de caneta correndo contra o papel. Presto mais atenção e descubro que este barulho é de minha responsabilidade. Tento ser mais silencioso pra não provocar as tosses.

No palco alguém comenta que a personagem do Imperador Constantino morreu engasgada. Tenho certeza absoluta que deve ter sido porque engoliu a tosse… Alguém fala algo sobre a religião ser o ópio do povo. Eu não consigo deixar de pensar que o povo precisa mesmo é de xarope.

Vai aí?

Em algum lugar à minha esquerda um senhor começa a comentar a peça como se ele estivesse em casa assistindo às Olimpíadas. Quando algum ator fala algo sobre tremores de terra, o senhor completa: “É Poltergeist”. Repete algumas palavras de final de frase, criando um eco ao texto dito pelos atores. Aqui e ali perde um pedaço do texto e não se faz de rogado: “Contemplando o quê?”, ele pergunta alto. Não ouço a resposta, que deve ter sido baixinha, ouço somente a voz dele em seguida: “Contemplando os escombros! Ah! Entendi!” O eco, entretanto, tem sua intensidade aumentada e ele passa a repetir mais e mais palavras conforme o espetáculo progride. O eco também assume características onomatopéicas. Quando uma personagem bate um cajado no chão, o senhor completa “Tum!”. Em outro momento ele discute a estrutura narrativa: “Já estamos perto do fim!”. Para o meu espanto, ele não tosse uma única vez… um deslocado!

A peça termina. Caco Ciocler agradece em nome de todos. Informa que a apresentação de hoje é a última da temporada desta peça. As pessoas aplaudem de pé. Muitos gritam “Bravo! Bravo!”. Subitamente, o Caco Ciocler se contorce e tosse fortemente, a ponto de quase se engasgar. Bem… talvez esta última tosse tenha sido somente parte da minha imaginação.

1 platéia que emudeceu Ibsen

'16 comentários para “Imperador e Galileu”'
  1. Haroldo disse:

    E sobre a peça…??? A crítica da platéia foi perfeita. Agora, gostaria de ler uma sobre a peça.
    Obrigado!

  2. n’ssinhora…
    só aconteceu isso comigo uma vez,
    peça Gota d’Água, com Georgete.
    Eu quase morri de tossir
    e de vergonha.
    Abração

  3. Fabrício disse:

    Olha, Haroldo
    Eu posso estar enganado, mas o que eu mais vi aqui foi a crítica da peça.
    Só o Marco mesmo pra responder.
    Abraço

  4. Lívia disse:

    que inferno!
    Mas antes de dar xarope ao povo, podiam verificar o ar condicionado.
    Não, eu não estava lá. Mas sei que às vezes a gente é obrigado a congelar em algumas platéias…

  5. Marco Albuquerque disse:

    Haroldo,
    Tenho que confessar que, enquanto assistia o espetáculo, minha cabeça foi invadida por uma enormidade de vozes e de barulhos (e aqui não existe nenhuma referência à esquizofrenia, vamos deixar isso pra crítica do Maurício: http://www.bacante.org/revista/critica/algumas-vozes), que fizeram com que a minha atenção fosse desviada para o que acontecia na platéia, em detrimento do que acontecia no palco.
    Desta forma, acho que fico impossibilitado de fazer um diálogo inteligente com a peça (apesar, é claro, de ter opiniões muito pessoais sobre o que assisti, mas que carecem de maior fundamentação…).
    Por outro lado, pude perceber que eu não era o único que prestava atenção ao que acontecia na platéia. Na realidade, grande parte do público parecia estar muito mais concentrado no que acontecia ao seu redor. Sabe quando você tem a impressão que todos estão tentando adivinhar quem vai tossir a seguir? Quem está mais irritado com as tosses? Quem vai ganhar o próximo copo d´água? Como está se sentindo a dona do celular?
    Acho que isso tudo termina dizendo bastante sobre o espetáculo…

  6. Marco Albuquerque disse:

    Lívia,
    Você tem razão, o ar condicionado estava bem forte. Apesar disso, tenho minhas dúvidas se ele pode ser apontado como o “vilão da história”.
    Astier,
    A partir de agora eu vou andar com um kit de emergências sempre que eu for ao teatro. Vou levar um xaropinho, umas balinhas, uma lanterninha e uma revistinha de palavras cruzadas. Assim eu me garanto durante qualquer espetáculo.
    Abração!

  7. Thalita disse:

    Marco, parabéns! Nunca ri tanto lendo uma crítica! rsrsrs
    Fiquei tão envolvida que até comecei a tossir… rsrs

  8. Haroldo disse:

    Eu suspeitei que existia uma crítica sobre a peça nesta “crítica sobre a platéia”… só queria ter certeza de ter lido corretamente nas entrelinhas!!

    Abraços!

  9. helio disse:

    Tossi uma vez num espetáculo do Marcel Marceau. Tava super-gripado, mas apenas gripado. Logo que começou a apresentação deu vontade de tossir, mas segurei, maior desespero. Segurei uns 20 minutos, até que, no momento mais silencioso da peça do mímico não aguentei mais e foi aquele estrondo. O pior é que depois começou o coro e ninguém mais parava de tossir. Que vergonha !
    PS: Sempre levo alguma bala, dessas de vitamina C, para o teatro. É melhor prevenir…

  10. Orias Elias disse:

    Cara, Sua critica é cruel, mas confesso que rí feito um maluco. É de uma criatividade ímpar. Só espero que você nunca assista nenhuma peça na qual eu trabalhe. Se algum a divulgador desavisado te enviar convite, desconsidere… (rsrs)

  11. Marco Albuquerque disse:

    Orias,
    Que engraçado!! Já vi um trabalho seu!!
    Talvez tenha visto até mais do que um trabalho mas, neste momento, me lembro de um… Faz um tempinho (ou melhor.. um tempão). Era uma montagem de A Megera Domada.
    Será que posso fazer uma crítica depois de tanto tempo? rsrs
    Grande abraço

  12. Marco Albuquerque disse:

    Ops…
    Não era a Megera Domada.. era o Mercador de Veneza!
    Acho que estou com o Ornitorrinco na cabeça e troquei os Shakespeares…
    Abraço

  13. Orias Elias disse:

    Você é terrível! que memória! Eu aqui crente que era um anônimo pra ti…
    É verdade, já faz algum tempo. Eu fazia o papel do judeu Shylock e curtia muito. Mas eu estou sempre na área. Agora é “Nos 80…”, onde eu interpreto um bostão, um cara que tal a Carolina do Chico, não viu o tempo passar na janela.
    valeu! curto muito as coisas que vocês escrevem, principalmente porque não é comigo (rsrs). É por conta disso que eu fiz o apelo na mensagem anterior (rsrs)

  14. Coito disse:

    A que ponto chegamos!
    Um crítico que não se sabe de onde saiu, que prefere piadas de mal gosto, ao invés de educar com uma crítica coerente. Pra esse tipo de público a tv inventou programas como Panico e BBB. Agora a internet está infestada desses pseudo intelectuais que vivem a sombra do trabalho dos outros. Mas trabalho que é bom…

  15. Marco Albuquerque disse:

    Pô, Coito, você entendeu tudo errado…

    Vamos lá:

    1 – É bem relativa a questão sobre uma piada ser de bom ou de mal gosto, não é mesmo? Muita gente gostou das piadas mas, mesmo assim, fico chateado que elas não te agradaram. Será que você pode me ajudar e me falar um pouquinho sobre as piadas de sua preferência? De quais você gosta mais? Piadas de pontinho? Piadas de papagaio? De português? Dá umas dicas que, numa próxima vez, eu tentarei fazer algo que possa te agradar.

    2 – Pôxa! Você está reclamando que eu deveria educar o povo? Tem certeza que você está falando com a pessoa certa? Minha crítica não tinha essa pretensão toda não… Mas se você quer reclamar sobre os problemas de educação da população brasileira, manda tua crítica pra esse lugar aqui: http://www.mec.gov.br/
    Te desejo boa sorte!!

    3 – Não assisto o Pânico e o BBB. Também não tenho certeza se sei exatamente como é o perfil do público destes programas. Se você tiver algum tipo de pesquisa (tipo GALLUP, saca?) que descreva esse público, você me manda? Prometo que dou uma olhada e tento entender o que você quis dizer.

    4 – Fico contente que a internet está infestada de “pseudo intelectuais”. Eles são muito mais divertidos que os intelectuais! Você pode, por favor, me mandar os contatos de alguns deles? Gostaria muito de juntar parte desta galera numa mesa de bar. Tenho certeza que a diversão estará garantida!

    5 – O que fez você concluir que eu vivo à sombra do trabalho dos outros? Não ganho dinheiro nenhum escrevendo aqui na Bacante. Faço isso por diversão e para poder dialogar com pessoas bacanas como você. Ganho meu dinheiro em outros lugares e ele depende do meu trabalho e do trabalho de outros. Já ouviu falar naquele papo de trabalho de equipe? Pois é…
    De qualquer forma, a não ser que você seja um fiscal da Receita Federal, eu não preciso discutir com você a procedência dos meus rendimentos, não é mesmo?

    Caro Coito Interrompido, pra terminar, eu queria te dar um conselho:

    Vejo muita mágoa no seu coração. Isso não deve estar fazendo bem pra você… Como já disse aquela nossa sábia política loira: “Relaxa e Goza!” Acredite! Seus dias serão melhores e sem tanto rancor!

  16. Blog Jario disse:

    As Horas Planetárias…

    A manifestação das horas planetárias se dá na ordem de Saturno seguindo numa espiral passando por Júpiter, Marte, Sol, Vênus, Mercúrio e Lua…….

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