O Animal do Tempo

Críticas   |       |    30 de julho de 2007    |    1 comentários

O Animal do Tempo

Fotos: Dalton Valerio

Estamos sentados numa sala de projeção – acima de nossas cabeças há um projetor e a sala tem as paredes pintadas de preto – e, diante de nós, nenhuma tela real, nem parede; vemos um espaço de transição: um degrau de elevação forma uma espécie de pequeno tablado, menor que a sala da platéia, afunilado por paredes laterais e um teto rebaixado, dando uma impressão interessante de perspectiva (que se inverte) porque, depois deste espaço mais estreito, abre-se uma sala bem maior, com o longo chão coberto de páginas arrancadas de livros e, no fundo, a atriz num banquinho, lá longe.

O texto é o protagonista mesmo neste caso. Nem sempre é, naturalmente, apesar de ouvirmos muito que determinado trabalho como direção, cenografia, etc., serve – bem ou mal – ao texto. Há muito tempo as coisas não são mais assim… Mas continuam sendo. Embora o teatro tenha embaralhado suas hierarquias internas ao longo tempo, a crítica em geral insiste em avaliar peças de acordo com regras fixas – como a visão textocêntrica que há muito já perdeu sua soberania – até quando o espetáculo em questão propõe outras formas de organização da cena.

Mesmo sendo o texto o diferencial da peça O animal do tempo, isto não significa que as coisas devem servir a esta entidade suprema. Pelo contrário, o próprio texto, com sua linguagem própria, parece reivindicar uma outra cena para o teatro, proporcionar uma atitude diversa, mexer na estrutura das formas. Ele tenta.

Ele propõe, entre outras coisas, um novo lugar para a cena: a boca (oi, Beckett), que se abre para o interior da caixa craniana, com sua língua produtora de linguagem, tudo em parceria com o cérebro. A língua e o cérebro resolvem se debruçar um sobre o outro. A boca é o lugar do pensamento. O pensamento come a língua, mastiga as palavras. Se o nosso aparelho fonador não serve exclusivamente para a fala e a função mais “importante” da boca é comer, o texto de Novarina abre mão de uma fala de teatro convencional para devorar a cena. Ele devora partes como personagem e ação, engolindo-as ao priorizar a linguagem.

O mais que centenário fluxo de consciência está fazendo o quê em cena desta vez? (Convenhamos que não é a primeira e não será a última.) Pois é. Acho que ele tem muito que fazer \nem cena. Mas nesta montagem não faz tanto, embora proponha vários elementos, entre eles: uma dose de abstração, certa comicidade, um ritmo próprio, um esvaziamento, um tempo diferente e a demanda de um espaço diferente. No primeiro momento da peça, um grande prazer: um espaço diferente.

Achei muito interessante a distância inicial. Logo pensei que seria um ótimo desafio fazer a peça assim, sem que o espectador conseguisse discernir com precisão o olhar da atriz, afinal, o olho no olho entre ator/espectador é o clichê preferido do monólogo. Não deu outra. Pouquíssimos minutos de peça e ela já tinha deixado a distância para trás e estava aqui, na beirada do pequeno palco, falando olho no olho com a platéia. E assim vai, a peça toda. O próprio texto já tem um vetor: da boca do ator ao ouvido da platéia. Não vejo encanto em sublinhar isso com olhos e gestos. E não se trata de “quarta parede”, já está dado que não tem parede, mas tem algo de anacrônico na forma escolhida: o conteúdo desconstrói a linguagem, mas a forma tenta reparar isto o tempo todo.

No texto, um eu que é diverso, que brinca de existir e não existir, que joga com a sua definição, manipula palavras como se estas fossem objetos virtuais. No corpo, uma postura declamatória, um gestual explicativo para o que não tem explicação, uma dicção que sublinha e parece tentar salvar a desconstrução da língua. Eu sabia que ia ouvir um jogo diferente do comum, mas esperava ver isso também. Tem discurso demais para um (não)discurso, tem rosto demais para um (não)personagem. Passei a peça toda tentando ver de outro modo, tentando catar uma consonância com a minha expectativa. Achei algumas, naturalmente.

A música é sempre um dado de abstração. O instrumento musical é um objeto que fala uma língua que nem dos objetos é. Achei bonito que o interlocutor dela pudesse ser um objeto que não fala a mesma língua. Ele não chega a ser um interlocutor, é quase só um eco, quase também uma bengala. Mas quando ela apenas fecha o acordeom, sem que este faça música, ele emite um sopro, um vazio sonoro cheio de significados possíveis. O apoio para partitura (não sei o nome) – também vazio – é ótimo. No entanto, o vazio ganharia mais força se ela olhasse para ele, permitindo que esta ausência apresentasse a sua presença. Por falar em eco, é interessante quando ela faz a voz de um eco e o som vai sumindo enquanto o movimento continua. Fiquei esperando mais brincadeiras destas com o som, o vazio, a embocadura. A comicidade também acontece, geralmente quando o texto vira letra de música, talvez porque, nestes momentos, a montagem abre mão de tentar cavar uma narrativa quando ela não existe. O jogo aparece nestas horas. (No dia em que eu assisti, tinha uma atriz-amiga-da-atriz rindo muito alto na platéia, o que tirou um pouco a graça da coisa toda.) Quanto ao ritmo e um possível tempo diferente, achei estranho. Achei que o tempo de tudo era um tempo muito normal, um tempo de contar uma história, de modo que a cadência do espetáculo nega um pouco o fluxo do texto. Mas pode ser só impressão. Eu veria de novo, com prazer.

De qualquer modo, é bem raro poder presenciar no teatro carioca alguém que se arrisque com um texto contemporâneo, com leituras contemporâneas ou com a própria cena contemporânea. Pena que não haja muita convergência entre estas três coisas. A gente fica sempre com um pé (às vezes dois até) em algum lugar do passado. Normal, eu acho.

3 animais do tempo escutam causos do Sérgio Britto na fila da platéia

'1 comentário para “O Animal do Tempo”'
  1. Taciana Barros disse:

    Genial!!!
    Parabéns pela crítica, bem escrito, peça bem descrita!!! Parabéns!!!

O que você acha?

A Bacante é Creative Commons. Alguns direitos reservados. Movida a Wordpress.