Pterodátilos

Críticas   |       |    8 de abril de 2011    |    6 comentários

Tapa na cara da sociedade

Foto: Carol Sachs

Sofá e whisky no palco. Durante muito tempo parte do teatro brasileiro se apoiou nesses dois ícones. Comédias de Boulevard do TBC, besteiróis dos anos 80, e Antônio Fagundes sentado num sofá, manipulando um copo com whisky cenográfico conversando com seu público cheiroso da FAAP. Retratos da granfinagem que assiste às peças como se estivessem vendo em espelho, na sua sala de estar. E se o texto de Nicky Silver trata exatamente dessa classe que paga com gosto R$80,00 para ver em cena o ator que ocupa o cargo de ícone da caretice nacional televisiva – Seu Lineu – , nada mais justo que o sofá e o whisky estarem em cena em Pterodátilos, onde, como numa música dos Mutantes, as preocupações mais sólidas da família são nascer e morrer. O resto é luxo, efêmero, egoísta, umbigóide, prazer superficial, um mundo vazio e consumista de Warhol .

E no prólogo, até tentam enganar o público de que o que vem pela frente é apenas uma comédia de costumes, sentados na sala de estar minimalista com chão e parede prata (Factory?) com sofás pretos dignos da Casa Vogue.  Nanini é Ema, uma garotinha rica de 15 anos a fazer declarações de amor com Tom (Felipe Abib), um garçom órfão pé-rapado, afilhado de um padre (hum…). Os virgens soltam pérolas como “Seu cabelo cheira Hershey’s Kisses…” até que a mãe de Ema, Grace (Mariana Lima), entra em cena e mostra ao público a que veio o espetáculo, colocando do avesso o teatrão do sofá e whisky. Pra isso, Nicky Silver utiliza um humor ácido, que dá beijinhos na platéia e depois bate na cara sem dó, pra retratar sem culpa a sociedade que tapa o sol com a peneira para sair sorrindo nas colunas sociais.

O espetáculo desafia o público a rir de assuntos que em sua sala de estar são cobertos com a sombra do politicamente correto. Lugares sujos como incesto, temas delicados como a Aids e assuntos da moda como o bullying, que a sociedade jura que entende(e até se revolta xingando muito no twitter), mas que quando bate à porta passa pelas fases do falso entendimento à histeria, fingindo solucionar os problemas como se fossem anedotas. Enquanto nosso filho é homossexual, o filho da vizinha que dá o cu por aí é um viadinho.

Foto: Carol Sachs

E como essa sociedade que esconde embaixo do tapete a poeira, na casa dessa família o que está sob o tapete, ou melhor, sob o assoalho, é um fóssil de Pterodátilo. Todd (Álamo Facó), o filho aidético, passa o espetáculo a escavar esses ossos, e tirando parte do assoalho da sala, deixa buracos que obrigam os atores a se apropriarem do espaço num constante desequilíbrio, ampliado pela posição da sala, que fora do seu eixo começa a se inclinar para todos os lados, em altos e baixos refletidos dos problemas passados pela família. Se a dramaturgia é tão direta, a encenação, através do uso simbólicoe ao mesmo tempo racional do espaço estimula outros campos de percepção, desafiando os atores e o público. Os primeiros com interpretações quase farsescas, longe da confortabilidade do palco plano, são obrigados a fugir da falsa naturalidade teatral das comédias de costumes e da postura esguia e pontual da tragédia. O segundo é surpreendido a todo instante, com um ritmo frenético que não dá tempo para conclusões precipitadas. E no meio de uma chuva de informações, entre frases de efeitos (“Se ao menos você ficasse doente pra eu poder te doar um rim”) e silêncios (a queda de Ema em um buraco ao ver seu noivo beijando seu irmão) o público é colocado contra a parede para pensar sobre o que essa estética que choca tem a ver com a ética descartável contemporânea.

Foto: Carol Sachs

Ema e a interpretação exaltada de Nanini traduzem o desconforto que a peça provoca. A menina de quinze anos que é renegada pela mãe por ser gorda (“Eu era tão gorda que em Tóquio morariam 2 famílias dentro de mim”), se nega a ver a realidade em sua frente (“Eu agora sou surda”), toma uma garrafa de whiky (“Depois de um tempo o Scotch fica com sabor de pudim”), decide ser lésbica (“Ah… como são lindas as lésbicas…”) e acaba com sua vida (voltando em um monólogo com a luz lavando o palco numa imagem angelical) é o retrato de como as relações ao seu redor acabam virando uma bola de neve e numa hora a avalanche desce. Um desconforto parecido em partes com o que Hirsch provocou em Educação Sentimental do Vampiro, com um palco caótico, sujo e destruído no fim do espetáculo.

Pterodátilos vem provar que os fatores que vão além do palco e seus elementos, como o preço e o local, interferem diretamente no público alvo, são condicionantes ao sentido da existência do espetáculo. Se essa peça fosse apresentada no SESI da Paulista, como o que acontece geralmente com as peças da Sutil, seria como fazer teatro engajado pra público engajado, o palco falando o que a platéia quer ouvir. Observando o público durante a peça (que muitas vezes era mais interessante que o espetáculo, o que consequentemente me fez perder diversas cenas) e suas reações (e também a falta de reações), fico pensando o que será que os adolescentes engomados ou as senhoras de echarpe conversariam na mesa da pizza após a peça. Na pior das hipóteses imitariam o texto reflexivo de Todd que tudo isso é a ordem natural dos fatos. Que seja. Melhor que comentar a quantidade de perucas e figurinos trocados em cena. Tapa na cara da sociedade!

01 copo de whisky para cada frase de efeito

– O espetáculo foi assistido no dia 03 de abril de 2011, no teatro da Fundação Álvares Penteado em São Paulo. Ao custo de R$80,00 (inteira) + R$12,00 de taxa de serviço da compra do ingresso pela internet.

'6 comentários para “Pterodátilos”'
  1. Maria disse:

    Supervalorizada essa peça, né ? Mas concordo com que, sendo apresentada na FAAP, ela pode provocar desconforto na gente fina de Higienópolis.

  2. Paulo V. Bio Toledo disse:

    1. não sei se entendi teu ponto de vista, mas me parece que você valoriza o choque que a peça causa na alta sociedade que frequenta aquele teatro. É interessante. Mas acho que isso pode ser debatido mais a fundo. Isso é um valor em si? Defrontar a elite arcaica com os valores (ou anti-valores) “contemporâneos” (os quais, como vc bem coloca, a elite moderna (que vai no SESI) já tanto aceita como pratica) é potente por que? Há efetividade nessa provocação no contexto brasileiro de hoje?

    Acho que o texto podia tentar se perguntar sobre esse “tapa na cara”. Pois ele é dado num determinada elite “arcaica”, que, dia após dia, é minoria, e vem sendo substituída por uma burguesia liberal que cultua os valores libertários etc.; que não se incomodaria nem um pouco com tais “escândalos”. Ou seja, qual será a real “eficácia” de bater no moralismo medieval da velha elite paulistana? eu não sei mesmo…
    tava vendo essas coisa com o Bolsonaro… e aí todo mundo caiu de pau e o cara é um escroto mesmo. Mas ele é medíocre. Tenta defender um passado quase como um dom quixote às avessas. seu moralismo é de 2 séculos atrás etc.
    No entanto, tudo isso q ele defende ainda existe. Só que de outras formas. De maneira diluída justamente nessa burguesia mais libertária, mais democrática, mais aberta (é só ver a campanha do Serra, por exemplo).
    Então – novamente pra tratar de eficácia – será mesmo o “arcaico” que deve ser combatido?
    Não será mais importante identificar estes mesmos valores travestidos na burguesia moderna, pequena-burguesia, classe média que seja?
    Aí problematizo mais: tal classe, ou categoria, é o berço do grupo e do teatro que ele representa. Por isso, penso: “não será mais daquela mesma história: o burguês moderno acusando o recalque do arcaico?”

    2. Sobre “teatro engajado”:
    A frase “seria como fazer teatro engajado pra público engajado”, embora apenas um exemplo, incorre na velha desqualificação do teatro que deflagra seu caráter político. Ademais, pressupõe que o teatro “engajado” tem por missão “doutrinar/engajar”. O que só é verdade para aqueles que não fazem ideia do que seja a atuação deliberadamente política na cultura.
    Dois dos principais exemplos que poderíamos incluir nesse valor genérico “engajado” são o teatro de agitprop, principalmente o alemão e o soviético, e as peças didáticas do Brecht. Ambos os exemplos tinham como público JUSTAMENTE a parcela mais engajada da sociedade. Eram apresentadas para operários em luta, em mobilização. E era essa justamente a força de seus debates. O discurso político escancarado servia AO DEBATE (e a ampliar as perspectivas do mesmo) e jamais a conversão ideológica. Uma arte alinhada as transformações materiais da sociedade. Mas quem costuma “construir” verdades, impor imaginários e comportamentos, é esse teatro burguês, vazio e abstrato que injeta doses cavalares de ideologia dominante em seu público. Isso sim é doutrina.

    É preciso ter cuidado com as palavras, para não nos tornarmos emissores de “verdades” construídas historicamente pelos vencedores, pela cultura dominante e oficial.

    Eficácia em teatro deliberadamente político não se mede para número de novos adeptos, mas sim pela qualidade dialética do debate exposto. De modo que “teatro engajado para público engajado” normalmente é uma situação extremamente fértil para criação de fundamentais debates e perspectivas em relação ao mundo que nos circunda

  3. Mau Alcântara disse:

    Acho que essa argumentação do Paulo faz total sentido com o contexto da peça.

    Com personagens tão caricatos e distantes de qualquer realismo e diálogos tão hiperbólicos, começo a achar que o maior mérito da peça não é de dar um tapa na cada da burguesia, mas fazer com que ela ria de si mesma quase que sem perceber.

    E sim, é o burguês moderno falando do burguês arcaico. Talvez por isso no Alfa tenha causado polêmica e na FAAP esteja fazendo sucesso. Mariana Lima e Marco Nanini no elenco não deixam mentir. O que não é, necessariamente, um problema – desde que não se espere uma revolução política surgindo dessa montagem. Acho que essa análise do contexto da peça são suficientemente reveladores do espetáculo e seu público…

  4. Emilliano Freitas disse:

    Paulo, a sua leitura é a de que eu valorizo o choque que a peça causa na alta sociedade, mas não é só isso. Não acho que podemos dividir o público do SESI com o da FAAP como “elite moderna” e “elite arcaica”. Há muito mais nisso. Afinal o q é a elite moderna? A classe C q agora tem ensino superior e poder de consumo? Todo mundo sabe que a localização e a programação do SESI acaba selecionando (e às vezes segregando ) o público. Mas muita gente q frequenta o SESI não pagaria 80 conto num ingresso não porque não quer, mas porque não tem mesmo. Nem todo trabalhador ou intelectual que frequenta ali faz parte da burguesia moderna (se falarmos em elite intelectual já é outra coisa). Só pra citar um exemplo, foram inúmeras as vezes que assisti peças ali com centenas de estudantes que vinham de caravanas de escolas públicas. Mas é só um exemplo.
    E a elite arcaica pode até estar e extinção, mas os seus valores não. Tá na moda ser conservador. Tá na moda os serviços e o consumo de luxo.
    A peça não pega apenas em temas que causaria ataques à “burguesia arcaica”. O lance é muito mais complexo. A peça ataca tanto a vovozinha que estava do meu lado, quanto a mim (seria eu uma elite moderna?). Mas a maneira como esse ataque chega nos dois é totalmente diferente. E que bom que temos Pterodátilos na FAAP pra vovozinha ver. Antes Pterodátilo que uma peça de um figurão, com 150 trocas de figurino, onde vão rir de meia dúzia de palavrões e piadas preconceituosas e só.
    E se for o burguês moderno acusando o burguês arcaico, ponto pro burguês moderno que está fazendo o papel de bobo da corte. O que o Maurício fala da peça fazer com que o burguês ria sem perceber é a grande chave. Aí tá o tapa na cara. Não precisa deixar tudo muito claro. Pra quem lê um pingo é letra. Esse pra mim é o maior poder da comédia. São os bobos da corte, fazendo desde o início dos tempos, os reis rirem de si mesmo pra cada um cair na real depois.
    Quanto ao ponto número 2, eu não vou ter cuidado com as palavras. Acho que as pessoas tem que ter cuidado com a leitura. Tudo parece acusação, quando na verdade são só exemplos. Eu poderia ter usado: “fazer palhaçada pra criança em clínicas pediátricas” ou “fazer performance pra público de artistas” que daria na mesma. Fazer um teatro para um público que já legitima o seu discurso tem sentido pra quem? Como você disse que fazer teatro engajado para público engajado “é uma situação extremamente fértil para criação de fundamentais debates e perspectivas em relação ao mundo que nos circunda”. Mas e o mundo que o circunda? Vamos falar só pra nossos umbigos que compactuam com o mesmo pensamento? Não vou falar mais nada, porque qualquer palavra que usar aqui vou ser acusado de pensamento burguês (quando na verdade não estou discutindo isso).
    Mau, não posso afirmar muito coisa sobre a peça fazer sucesso na FAAP e polêmica no Alfa não entra em questão. Mas acredito, que apesar de ser uma remontagem, o enfoque é outro, visto que tudo o que li e ouvi outro tipo de abordagem. E nunca vou esperar revolução política nem dessa, nem de qualquer outra a montagem teatral. É o meu jeitinho.

  5. Leo Santolli disse:

    A melhor frase ‘ É meu jeitinho’

  6. eu adorei a peça. me reconheci o tempo todo. minha família. frases ditas. um horror.

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