La Douleur e Le Grand Inquisiteur

Críticas   |       |    15 de setembro de 2009    |    0 comentários

Palavras abertas

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Foto: R. Ribas/Divulgação POA Em Cena

Estamos no Ano da França no Brasil, evento que consolida uma política de cooperação mútua entre Brasil e França: compra de jatos militares, de tecnologia nuclear e, fechando a tríade, o aprofundamento da “relação bilateral no âmbito da cultura entre os dois países”. O diretor Patrice Chéreau traz duas peças ao Brasil como parte do evento, que integraram também a programação do 16º Porto Alegre em Cena – apresentadas no tradicional Theatro (com Th mesmo) São Pedro.

La Douleur é um texto autobiográfico da escritora francesa Marguerite Duras que aguarda angustiada a volta de seu marido, prisioneiro dos nazistas no final da Guerra. Aqui a encenação nos apresenta um monólogo da atriz Dominique Blanc (no release do espetáculo: “atriz fetiche do diretor”). O cenário são cadeiras de madeira e uma grande mesa. Dominique faz o papel de Marguerite, rememora o passado através de anotações, diários; rememora a angústia da espera.

Le Grand Inquisiteur é um capítulo de Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski, que relata a história da volta de Jesus à Espanha no séc. XVI atraindo milhares de seguidores. Porém, o grande inquisidor da cidade manda prendê-lo e lhe passa um sermão sobre o quanto sua volta perturbaria a vida na terra. Aqui não se trata de uma encenação, propriamente dita, mas sim de uma leitura dramática/monólogo do próprio diretor Patrice Chéreau. O cenário de Le Grand Inquisiteur contém as mesmas cadeira e mesa de La Douleur, mas configuradas de maneira diversa…

Ambos os espetáculos apresentam muitos índices em comum. O primeiro é uma característica que relativiza a mimese teatral, ou seja, uma operação que apenas narra, comenta, descreve uma determinada situação, mas não a é; não a representa. Por exemplo, cenas intensas como a volta de Robert L., marido de Marguerite Duras, são pormenorizadamente descritas, cada detalhe, odor, sensação, as roupas, os sons… E, a despeito das múltiplas cadeiras no cenário, ninguém entra. Quando a esposa vai buscar informações nos órgãos burocráticos do exército francês a atriz descreve o oficial, descreve a espera, descreve o cansaço, a insistência… Narra, descreve, comenta… Mas não representa os fatos.

Em Le Grand Inquisiteur grande parte do texto lido relata o diálogo entre o inquisidor e Jesus. No entanto Patrice Chéreau não representa nenhum, nem outro. Escolhe narrar o olhar imóvel de Jesus enquanto o inquisidor esbraveja. Narra o silêncio. Descreve a angulação da cela, o archote que carrega o velho.

Obviamente, nos dois casos estamos tratando de imitação, de mimese. Pois Dominique Blanc representa Marguerite Duras rememorando o passado e Patrice Chéreau quando “narra” as falas do inquisidor as diz se passando por ele (como quando narramos uma situação a alguém e representamos a maneira como nos falaram aquela determinada frase). No entanto, a mimese é outra. Não é a mesma imitação que caracterizaria o teatro para Aristóteles em sua Poética. Há mistura de gêneros clássicos: do épico, do lírico e do dramático.

O grande paradoxo dessa operação (que certamente não é nenhuma inovação poética da contemporaneidade), característica, ao que parece, do teatro de Patrice Chéreau, é que a amplitude das cenas descritas é imensa, eterna. Transtorna, inquieta. Ainda me assombra a descrição de Robert L. estilhaçado pelo Tifo, pesando 37 kg, sem voz, moribundo. Eu o vi, eu vejo-o. No palco nada. No imaginário, nas nossas cabeças é que se constroem as imagens que queimam nossas retinas, as cenas, as cores – a ausência delas…

Conta-se que o escritor português José Saramago sempre reluta muito em ceder os direitos de adaptação de seus livros para o cinema ou para o teatro. Sua justificativa é a de que ao adaptar um livro rouba-se do leitor o espaço da imaginação. Ou seja, ao escolher essa ou aquela imagem de representação das linhas escritas estaríamos impondo uma determinada visão totalitária sobre a leitura. Exemplos não faltam. Para não fugir ao universo de Saramago lembremo-nos do filme de Fernando Meirelles. O diretor representa o mundo de Ensaio sobre a cegueira num país de Primeiro Mundo cuja língua é o inglês (fato justificado pelo diretor como elemento essencial para maior circulação) – o que evidencia o mundo representado; impõe como uma rocha uma determinada leitura (de classe, diga-se de passagem) do pré-texto original: personagens principais são de classe média alta, com carros do ano, o sistema político do país “indefinido” é asséptico e espelhado nos filmes hollywodianos etc. No entanto quando eu li o livro enxergava tudo num lugar como o Brasil, como São Paulo, repleto de eternos conjuntos habitacionais, favelas, pessoas iguais, política burocrática, amontoados de papéis. Porém o filme afirma uma “verdade” sobre o assunto; a imagem definida engole qualquer possibilidade de fantasia sobre o texto, cria um elo não mais dissociável entre representação e texto literário: uma prisão da literatura nas grades da imagem. (clique aqui para desconstruir esse parágrafo)

Patrice Chéreau é cineasta e diretor de teatro. Sua atividade é a representação a priori. No entanto, opta, no teatro ao menos, por ampliar esses espaços da imaginação. Para isso, uma chuva de palavras, intermitentes, ininterruptas – os olhos se desdobram para ler as legendas e assistir a atriz/o ator. A palavra está em evidência, mas a possibilidade de interpretação e imaginação é infinita. Tanto em La Douleur quanto em Le Grand Inquisiteur o ator inicia como acaba: sem conclusão, apenas sai. Há uma reviravolta repentina e tudo acaba. Nada mais. Deixando-nos órfãos de um mundo de repente.

A segunda convergência entra as duas peças diz respeito ao discurso. Em La Douleur fala-se da Guerra, mas num sentido ampliado do horror. Não se narra o horror nazista como crime pontual na história, como fruto da perversidade de alguns alemães, da patologia psicótica de um “guia”, mas como o apodrecimento da humanidade, como índice de um mundo inteiro. Ela diz algo como: “a lembrança do fato só é suportável se entendida coletivamente, se entendida como responsabilidade de todos”; ou ainda: “buscávamos, desesperadamente, algo na história que se equivalesse a isso e nada. Não encontrávamos nada.”

O texto de Le Grand Inquisiteur se faz inteiro numa retórica discursiva em que o velho inquisidor prova, por A mais B, quão desagregador para a humanidade seria a volta Dele, de Jesus à Terra. A ironia é intensa, sobre todos os valores ocidentais construídos sobre o cristianismo, sobre a opressão de séculos justificada pelos mitos – intensa, pois se baseia numa lógica impecável do inquisidor, um mestre da retórica.

Assim, ambas as peças falam sobre uma universalidade humana, ou melhor, sobre uma ocidentalidade universal. Dialogam com objetos míticos que formam as bases dos valores contemporâneos: religião (cristã) e guerra (nazismo). Reivindicam a esses valores uma característica ampla de base formativa. Paradigmas do imaginário ocidental.

Há, nas duas peças, então, um aparente excesso da razão (o que costumeiramente definimos pelo neologismo textocentrismo). Mas, na verdade, a encenação possibilita uma multiplicidade de leituras, cria espaços para a imaginação e problematiza, sem síntese, paradigmas da civilização ocidental. Patrice Chéreau faz das palavras dúvida.

O último ponto em comum entre as montagens é a esperança. O final que, num átimo, afirma uma imensa possibilidade de esperança. Na espécie? Na civilização? Não se sabe… Uma esperança em estado bruto.

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