Bate-papo com Guillermo Calderón

Bate-Papos   |       |    27 de outubro de 2009    |    2 comentários

Fotos: Divulgação do FIBA; exceto a última, retirada do site da montagem Neva

Foi no FIT de São José do Rio Preto de 2009 que comecei a me interessar pela obra do dramaturgo e diretor chileno Guillermo Calderón. A peça Neva, extremamente crítica ao próprio fazer artístico e, por outro lado, aparentemente cínica ao manter-se ligada à mesma lógica de produção que questiona, teve quatro apresentações na cidade de São José do Rio Preto, depois de já ter passado pela capital paulista na mostra Teatro Chileno em Evidência, do Sesc, e na III Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo de 2008, promovida pela Cooperativa Paulista de Teatro. Além disso, até a presente data, as obras de Guilhermo Calderón, Neva e Diciembre, ambas encenadas pelo grupo Teatro en El Blanco, provavelmente só perdem para a brasileira Rainhas (que está caindo até em concurso público) em circulação por festivais no Brasil. Inclusive, deverá estrear em breve uma versão brasileira de Neva, autorizada pelo autor, produzida por Celso Cury e com Débora Duboc no elenco.

Frente do Harrods

Já no Festival Internacional de Teatro de Buenos Aires (FIBA) 2009, estavam em cartaz Neva, Diciembre e Clase, esta última inédita no Brasil e realizada pela companhia Agrupación la Reina de Conchalí. Provocados pelas três obras do dramaturgo e diretor, eu e Fabrício Muriana conversamos com Calderón no chiquérrimo-bacanérrimo-hypadérrimo café do FIBA, em plena Calle Florida, local onde aconteciam as baladas e apresentações musicais do Festival, além de exposições e seções de cinema. Ali também era a sede da assessoria de imprensa mais inacessível do mundo.

Cafe cult BA 4

Neste bate-papo, o dramaturgo e diretor que afirma e comprova em sua obra que “a emoção é política”, deixa claro por que, por enquanto, prefere provocar fissuras no sistema por meio de suas críticas ácidas a buscar o rompimento com estas estruturas arcaicas do teatro que ele próprio questiona.

“Triologia”

diciembre 1

Neva, Clase e Diciembre não são propositalmente uma triologia, nem resumem toda a obra de Calderón. No entanto, depois de assistir às três peças, é impossível não reparar que alguns elementos da estrutura se repetem. Um deles é a construção da dramaturgia que, conforme nos contou Calderón, foi criada especificamente para aqueles atores e com contribuições deles. “Eu levava para a sala de ensaio 4 ou 5 páginas, ensaiávamos, alterávamos, no outro dia levava mais 4 páginas e assim por diante”, conta. Outro elemento estrutural que se repete é o fato de as encenações contarem, ao mesmo tempo, um drama individual e um drama coletivo. E, finalmente, está muito clara a relação temporal colocada neste conjunto: Neva se passa em 1905, Clase em 2006 e Diciembre em 2014 (esta última repensando fatos históricos que ocorreram de 1879 a 1884, mas que o autor chileno supõe, nesta obra de ficção que voltarão a ocorrer em um novo contexto).

FIBA_Neva_03

Sobre essa questão temporal, Calderón explica que em Diciembre e Neva está colocando em prática a mesma técnica brechtiana de deslocar a ação para um tempo e/ou espaço distantes para falar com ainda mais contundência sobre o aqui e agora (não, não é o do Gil Gomes). Já em Clase, escrita em 2008, o autor faz uso do que define como outra potencialidade do teatro: abordar o que é urgente. Ele conta que, quando escrevia Clase, dois anos depois da Marcha de los Pinguinos (não o documentário, a manifestação) que inspira a obra, os participantes da marcha estavam decepcionados com suas próprias conquistas, pois as alterações conseguidas na lei na ocasião da marcha não tinham sido suficientes para transformar de fato a educação no país. Assim, já havia novas manifestações sobre o mesmo tema.

Aqui cabe incluir a peculiaridade do sistema educacional estadunidense… ups… chileno que está quase completamente privatizado. Para não dizer completamente, é preciso ressaltar que o governo paga, por meio dos chamados “vouchers educacionais”, um valor às famílias, e com este dinheiro elas podem decidir qual escola pagar para seus filhos. Ou seja, o governo paga para que existam escolas particulares. (Pesquisando sobre isso, encontrei esse artigo aqui que ajuda a entender a origem histórica dessa prática chamada genericamente de “subsídio à demanda”) Também não podemos desconsiderar que não há só universidades privadas no Chile! Há universidade do Estado também… o único detalhe é que é preciso pagar para estudar inclusive nas federais. Mas, ufa!, há bolsas

Contradições

Fechando os parênteses da educação, voltamos à conversa com Calderón, regada a café fraco argentino (Há que se dizer que o que faz mais falta na Argentina é café brasileiro). Uma das questões mais fundamentais em todas as peças do diretor é a contradição entre as críticas que as montagens expõem e o formato delas aliado ao meio em que circulam. Questionado sobre isso, Calderón contou dados interessantes sobre sua forma de trabalho e demonstrou consciência de uma série de contradições próprias do fazer artístico.

Em primeiro lugar, com relação ao modo de produção das peças, ele contou que há no Chile duas possibilidades de financiamento da arte, sendo uma delas um fundo nacional mantido por empresas privadas via isenção fiscal, semelhante à nossa Lei Rouanet, mas gerido pelo governo via editais e, a outra, o patrocínio sem isenção fiscal que, segundo ele, as empresas nunca destinam ao teatro. “Preferem restauração de Igreja ou eventos com grandes artistas plásticos internacionais, não colocam o dinheiro no teatro porque o teatro é político”. Calderón optou por não acessar nenhum dos dois tipos de financiamento e trabalha em esquema de auto-produção, ou seja, investe na montagem e o dinheiro é recuperado com bilheteria e venda da peça para eventos, festivais, instituições como o Sesc, etc. “Está bem que exista essa possibilidade de financiamento, mas a posição do grupo [Teatro en el Blanco] é a de não estar vinculada ao Estado. Queremos estar independentes”, afirma. Também por isso, os elementos cênicos são sempre contidos e os custos de montagem de cada uma de suas peças, não passa, segundo ele, de 2 ou 3 mil dólares (= 3.429,80 reais e 7.648,80 pesos na cotação do dia 26/10/2009).

Neva 1

Por outro viés, ele conta que, em Neva, houve muitos tipos de reação, entre elas de pessoas que faziam elogios à atuação e ao cenário, ignorando o forte conteúdo ideológico. “Pela resposta que a pessoa te dá você já sabe qual é o tipo de público”. No entanto, para ele, executar a peça em um palco tradicional e sem romper com suas estruturas espacias ou com a estética do drama é essencial para que se produza um efeito específico de Neva que é a crítica ao próprio público de teatro também. “Marsha diz ‘eu odeio o público que vem ao teatro para sentir’… você convida o público para um lugar conhecido para insultá-lo”, explica. Calderón confessa, no entanto, que há uma espécie de recepção padronizada, ou seja, que as pessoas que vão ao teatro “político” vão para ver suas idéias reafirmadas, não vão para transformarem-se. Um bom exemplo do êxtase do bem-fazer foi a presença de dois ministros da ditadura de Pinochet que aplaudiram a apresentação com muito entusiasmo.

Diciembre 3

Foi a partir desta reflexão que Calderón decidiu radicalizar em Diciembre, tocando um tema ainda mais delicado para além do universo artístico: o patriotismo/ nacionalismo, capaz de incomodar inclusive os ditos “progressistas”. Na obra, ele questiona a idéia mesma de fronteiras e de identidade nacional, identificando-a como motriz da maior parte das guerras, crítica radicalizada na fala: “a nação é a religião do capital”.

Clase em baixa

Finalmente, no caso de Clase, ele menciona que houve muitas reações de estudantes e professores à peça, mas que seria ainda mais interessante poder apresentá-la especificamente para o público que vive a realidade mostrada na obra, realizando por exemplo, apresentações em universidades. No entanto, ainda não foi possível. Por outro lado, ao pensar sobre o fato de a sua peça custar 40 pesos no Festival e o quanto isso influencia o acesso, Calderón concorda que se trata de uma barreira e que, talvez, o próximo passo fosse ir para as ruas, fazer teatro na rua em contato direto com as pessoas, mas afirma que ainda não tem competência técnica/ estética para isso.

Com relação à obra de arte de maneira mais geral, ele vê três perigos para o poder revolucionário da arte. Um deles é o patrocinador que, por vezes, só de estar vinculado à obra faz com que a força da crítica se perca. Outro, o mercado publicitário, que a transforma em produto. E o terceiro é o mercado de arte, capaz de convertê-la em obra “importante”, “séria”, “reconhecida”, tornando-se um novo fetiche. Este último perigo é o que parece ameaçar mais as obras do diretor.

Neva serio

Uma visão sobre a crítica

Questionado sobre os caminhos da crítica chilena, Calderón afirma que há alguma expressão na Academia, mas que não está em diálogo com o público de teatro. Além disso, ainda há crítica nos jornais diários, mas que aos poucos perde seu espaço – “eles têm um pedaço do papel do tamanho deste gravador para escrever sobre a obra” [O gravador em questao media 15cm X 3cm].

Para ele, espera-se que o crítico se aprofunde na discussão dos sentidos trazidos pela peça, no entanto, o mais comum é que a crítica de jornal siga uma conhecida fórmula: um parágrafo para o resumo da peça, um ou dois parágrafos para julgar os elementos cênicos e a atuação e um parágrafo final para dizer “vá” ou “não vá”.

“Repórteres costumam se aprofundar mais do que os críticos porque têm a chance de conversar com o grupo, mas, mesmo assim, a reflexão que acontece nessa conversa normalmente não é reverberada no texto a ser publicado”.

Para terminar, conta o caso do crítico Javier Ibacache que trabalhou como crítico de jornal por anos e hoje está migrando para a Internet, com o site Corpus Critic. “Es uma lucha perdida”, teria dito ele ao desistir do espaço no jornal. (Mantive essas aspas na língua original porque essa coisa de luta, ainda mais quando “perdida”, fica bem mais dramática em espanhol).

'2 comentários para “Bate-papo com Guillermo Calderón”'
  1. Liz Nátali disse:

    Nossa, o que será essa versão brasileira de Neva com a Deby Duboc, hem?
    será uma montagem brasileira do texto ou uma remontagem em versão brasileira? [ui!]

    legal esse bate-papo, juli [fiquei bem assustada com a parte da educação]
    e a nova bacante está muito empolgante!

    e que lindas as fotos que o maurício tirou do amargo santo!

    beijo

  2. Juli =) disse:

    Oi, Liz!

    Tenho muito medo – tanto da educação no Chile quanto da montagem de Neva no Brasil! rs Me parece que vai sofrer pouca ou nenhuma alteração importante…

    Quanto à Bacante e quanto às fotos: Maurício é o cara! rs Mas a peça ajuda pra caramba, né?

    A “nova” Bacante vai dar muito trabalho ainda pra fazer todas as adaptações… mas tá valendo muito desde já. Estávamos ansiosos.

    Bjo.

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