Carta à Celina – Braços entrelaçados com bonecos de Olinda

Críticas   |       |    23 de junho de 2016    |    5 comentários

Querida amiga Celina,

Primeiramente, #foratemer.

o avesso do claustro3

Hoje, dia 3 de junho de 2016, com nosso país sob golpe que já dura mais de 30 dias, queria que você estivesse aqui ao meu lado, no Galpão do Sesc Pompeia, pra ver que o Dom virou um lindíssimo boneco gigante de Olinda e deu a mão a meus amigos atores, poetas e militantes para cantar em samba: “Eu acredito que o mundo será melhor, quando o menor que padece acreditar no menor”.

 

* obs 1. Sim, esse é um texto escrito para uma amiga sobre uma peça criada por amigos. Não acreditem, pois, na minha imparcialidade ou neutralidade. Opa. Não acreditem na imparcialidade ou neutralidade de ninguém. Como ensina o Face, “neutro, só sabonete”.

* obs 2. Quando a pessoa procura por essa linda frase de Dom Helder no Google, antes de qualquer menção ao Dom, ainda que seu nome tenha sido digitado na busca, o que aparece primeirão, lá no topo, são notícias de violência, envolvendo menores infratores, sempre com abordagem sensacionalista. Oremos. Digo, pensemos.

 

Celina, eu queria que você visse que, enquanto a Cia do Tijolo transformava em cena algumas das histórias engraçadas e maravilhosas do Dom que ouvi de você na madrugada de Paudalho (onde ri e me emocionei e me formei e entendi o poder de contar histórias), uma atriz, a Karen, cozinhava uma sopa cheirosa em cena e o Dom-personagem a ajudava a cortar os temperos.

 

* obs 3. Madrugada de Paudalho é um modo de dizer onze e meia da noite.

 

Bem, você veria também que a sopa não deu pra todo mundo! E não tô falando isso só porque eu não comi. Eu realmente não comi! E eu tava morrendo de fome, porque a peça durou três horas e eu, pra variar, cheguei atrasada e não deu tempo de comer aquele incrível lanchinho de carne seca do Sesc. Mas juro! Juro que não é por isso. É pela coerência mesmo. Parece bobagem, mas falando do Dom, da partilha, do desejo do “pra todos” em lugar dos privilégios disfarçados de direitos, fica meio esquisito distribuir comida só pra alguns. Tenho certeza de que podemos encontrar um modo de encenar a partilha também nessa cena–não-cena. Tem um pessoal lá no Dolores fazendo isso num fogão à lenha, numa peça chamada Narrativas na cozinha. Mas isso é assunto pra outro texto.

 

* obs 4. Só pra enfatizar aqui: a peça é às 20h, não às 21h. Não façam como eu. Cheguem mais cedo e comam um lanchinho de carne seca e façam xixi. E lavem as mãos.

 

Assunto pra esse texto é que eu queria que você tivesse visto a Karen e as outras mulheres em cena imaginando como seria a santa ceia, a história, o mundo, se nós mulheres tivéssemos escrito mais essa história. Claro que, na vida vida vida mesmo, na vida-chão, nós escrevemos cada linha, cada vírgula. Agora, naquela história que fica registrada, muitas vezes nós não aparecemos. Mas, veja a beleza das manifestações de mulheres em todo o país! Sei, com todas elas, com todas nós, que nós escreveremos e contaremos cada vez mais as histórias!

 

O_Avesso_do_Claustro_-_Alecio_Cezar_4

 

Também queria que você visse o esforço de uma das atrizes, a Lilian, em trazer pra peça as questões mais profundas que preocuparam o Dom em vida, atualizadas para nossa vida hoje e para a São Paulo desigual que nos massacra todo dia. Ela trouxe tudo: quitinete sem janela, trem lotado, criança vivendo na rua coberta com saco de lixo, crianças e adolescentes abusadas pelo machismo, tudo. E com nomes e números. Um turbilhão. Porque a luta do Dom começou antes dele e seguirá até conseguirmos construir novos jeitos de viver juntos. Até conseguimos superar esse sistema (no programa, o Dom explica numa entrevista por que não vê no capitalismo nenhuma esperança de solução para a humanidade! É de uma clareza!).

Eu queria que você visse o discurso forte, imenso, indescritível do Rodrigo, representando os integralistas (com quem o Dom paquerou, mas de quem logo se livrou). Um discurso que começa calmo, atraente, quase doce, e termina no puro ódio – atualizado para os canalhas que fragilizaram nosso processo democrático (já tão capenga, tadinho), no triste dia da votação (sic) do golpe da Câmara dos Deputados. E o fizeram, aliás, como a cena deixa claro, declaradamente e descaradamente, em nome de seus herdeiros, de uma ideia de povo como boiada, ou de belezas falsas de seus currais eleitorais. Rodrigo nos deu a ver tudo isso. E eu chorei!

Rá. Mas não foi só nessa hora que eu chorei! Não foram poucos choros. Acho que eu tava meio maria-mole. Eu chorei metade da peça! Eu queria que você estivesse assistindo ao meu lado pra ver quantos tipos de choro são possíveis numa peça.

Eu chorei de uma emoção de pura boniteza na cena fofa em que Dom Helder faz a lavagem dos pés das prostitutas. O Dinho lavou os pés de uma boa parte do público. E lavou os pés do querido Ilo Krugli, um grande imenso artista brasileiro, cujo fazer teatral e olhar educador foram a origem da maior parte do elenco dessa peça. O Ilo caminhou de bengala até a bacia para lavrem seu pé. E aproveitou pra lavar também a bengala! É um homem de chorar de boniteza.

Eu chorei de vergonha e de dor mesmo, mas também de orgulho, na homenagem que fizeram ao Padre Henrique, quando contam aquele momento terrível da passeata dos 10 mil, em que o milico disse ao Dom que se houvesse qualquer discurso, dispersaria a multidão a bala. O Dom, então, malemolente apesar do abatimento, consegue dizer ao povo que a melhor homenagem ao Padre Henrique – massacrado e morto sob tortura pela ditadura aos 28 anos – seria o silêncio. O silêncio! O arcebispo poeta! O arcebispo que denunciou na França a tortura que acontecia no Brasil (quaisquer que fossem as consequências!)! Esse homem criou talvez o silêncio mais cheio da nossa história. Eu ia perguntar se você se lembra dessa história do Padre Henrique! Claro que você se lembra! Foi você quem me contou! Pois então. Eu queria que você visse como, com o rosto de 28 anos do Padre Henrique projetado no fundo de um carrinho de mão, vivemos esse silêncio em cena. Atores e público. Por longos segundos. Um silêncio cheio, escuro, necessário, desses que entram na gente.

Mas, olhe, eu também ri, visse! Queria sua gargalhada junto da minha nessas horas. Celina, você tinha que ver o Rodrigo zuando o processo de beatificação e santificação. Impagável! “Daí, o santo tem um prazo! Um prazo! Pra fazer um novo milagre! Um prazo!!! Pro Padre Cícero, foi fácil, que era artilheiro em milagres! Fez milagre até pra quem nunca acreditou nele! Eu mesmo nem pedi e recebi dois!”

Finalmente, minha amiga, eu queria que você visse o Dinho, cultivado pela nossa Maria Emília, em Tacaimbó – esse fruto lindo, maduro e saboroso das Comunidades Eclesiais de Base (e, claro, de suas próprias outras tantas vivências e andanças) – enfim, esse moço interpretando o Dom, com aquele vestidão (batina, né), dizendo, com outras palavras, que Deus não criou a pobreza, nem gosta dela… que a pobreza é problema nosso! E que um cineasta marxista como Pasolini entendeu mais de Cristo do que muito padre. Queria que você visse o filme do Pasolini projetado nos tijolos do fundo da cena, enquanto o Dom o comenta.

 

* obs 5. Cuidado ao procurar o filme do Pasolini no Youtube. Tá cheio de filme evangélico dublado com Jesus loirinho e zóiazur

 

Celina, minha amiga. Terminando essa carta pública, lembro das cartas que o Professor Paulo Freire escreveu a você, chamando-a de “irmã de mesmo” naquele lindo livro de cartas. Queria eu chamá-la de mestra. Mestra de mesmo.

Celina, minha mestra, referência e companheira dessa vida, queria tanto que você pudesse ver… depois de tantos anos de luta… um país com problemas novos, com horizontes novos.

Mas, por enquanto, o que tem pra ver (e enfrentar) é isso que está aí. De um lado, golpes de todos os tipos, vindos dos mesmos poderosos de sempre. De outro lado, luta, resistência, amor, arte. No meio nós todos e nossa complexidade colocada pra tentar conviver. “Nossos braços continuam erguidos”. E entrelaçados.

Cotação: 77.777.777.777.777 rostos de Dom Helder projetados sobre o Costa e Silva

'5 comentários para “Carta à Celina – Braços entrelaçados com bonecos de Olinda”'
  1. Daisy disse:

    ser afetada é um troço poderoso mesmo.

    remexe os adentros nossos e daqueles que nos-tocam-e-tocamos.

    e o que nos revira aparece na palavra, esse outro poder de afeto.

  2. Marcos Lúcio disse:

    Faço minhas as suas emocionadas e bem traçadas linhas. Vi hoje, aqui no Rio, e fiquei encantado, tocado , sensibilizado, maravilhado. Espetáculo imperdível e obrigatório para quem possui um mínimo de humanidade e dignidade e senso de oportunidade histórica..

  3. Barryhulge disse:

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