Chat

Críticas   |       |    31 de agosto de 2010    |    2 comentários

Fotos: Lidia Marques

Em cima do muro pós-dramático

No debate que rolou depois da apresentação de Chat, falamos sobre o fato de o público não ter recebido a peça muito bem. A explicação era que a obra pedia um público mais ativo, disposto a participar da peça, fechando os significados abertos pelas várias historinhas bagunçadas na dramaturgia. Segundo o diretor, no entanto, as pessoas, principalmente a galera mais jovem, não tava muito a fim de assumir essa função, não. Daí, a pergunta que não quer calar: a culpa é desse público ruinzinho, que não sente nada, nem quer saber de nada, nem quer fazer nada? Ou será que quando a gente vai montar uma peça é problema nosso dar um jeito de nos comunicar com essas pessoas e com o nosso tempo, por piorzinhos que eles sejam?

Quem acha que a culpa é do público, em geral, é porque se acha genial e incompreendido, a frente de seu tempo. Mas, por outro lado, comunicar com o público só por comunicar, a novela faz melhor que qualquer peça, né? E não é lá o tipo de comunicação que a gente procura com o teatro.

Muito provavelmente quando escolheram botar seu espetáculo na fronteira híbrida, os realizadores de Chat já estavam considerando essa contradição que faz parte da própria arte. Mas, quando a gente se coloca na fronteira, ou em cima do muro, o risco é não aprofundar nem pra lá, nem pra cá e, assim, construir um Frankstein ou mesmo tornar-se uma obra em que ninguém entende porra nenhuma porque não tinha muito o que entender mesmo.

Como sempre, o doido do Paulo Michelotto se pronunciou no debate – porque nunca podia faltar uma fala dele, nem uma do Jorge, de Manaus, quando alguém disponibilizava a palavra – e apontou que “a peça é toda aí no palco à italiana”… ou seja, em um formato bem propício pro ‘dramático’ e pra construção de ilusões. Além disso, a fragmentação proposta – bem ao “estilo” pós-dramático – não virou linguagem cênica, parou na dramaturgia; Outra questão é que a interpretação nesse caso é ‘demonstrativa’ e não estranhada (como eles disseram que tentaram fazer), ou seja, os atores parecem estar sempre na deles, de fora das situações, como se nada daquilo dissesse respeito a eles, mesmo que no caso eles estejam sendo comidos ou crucificados ou estejam prontos pra “explodir tudo”. Aí, a impressão é que nada acontece na cena, apesar de acontecer muita, muita, muita coisa, e ela fica planificada e também por isso fica tão fácil dormir na platéia; e isso, de novo, em grande parte é porque os atores estão lá como máquinas que tem que cumprir a constrangedora marcação de serem comidos em cena de roupa e nas mais diversas posições, mesmo que o sexo não tenha nada a ver com o que se está falando naquele momento.

Em Chat ṇo tem regra nem ruptura. Tamb̩m ṇo tem radicalismo po̩tico porque talvez nem eles entendam direito as est̩ticas que buscam fraturar, ou melhor, hibridizar Рe isso seria premissa.

Realidade em pedacinhos

O texto do venezuelano Gustavo Ott é um amontoado de referências a situações e comportamentos típicos do nosso tempo, tais como: transformações tecnológicas, desejo louco de subir na vida, migrações inconstantes e dinâmicas, mas mais comumente pra ser empregada-doméstica nos EUA, fundamentalismos religiosos etc. Tudo isso conectado.

Gustavo Ott imobiliza faz tipo uma foto de um pedaço da história, o “agora” dele, mas que deixa fora da foto o desenvolvimento histórico que gerou aquilo. Segundo o Paulo me contou, teóricos como Frédic Jameson ou Ernest Mandel vêem esse “instante contemporâneo” da foto do Ott como mutação das configurações econômicas do capital (e aí que Mandel cria o termo “capitalismo tardio”). Pra eles, o capitalismo contemporâneo “hibridizou” suas forças produtivas e começou uma auto-fragmentação. Em outras palavras, a fragmentação seria característica atual do capital e da sociedade. Tá, e o que isso tem a ver com a peça? Bem, a idéia é que o texto de Gustavo Ott escolhido para essa montagem é justamente a imagem dessa fragmentação que caracteriza o capitalismo atual.

O pós-modernismo (e os outros “pós, pós, pós”: pós-estruturalismo e pós-dramático), por sua vez, quer dizer que a fragmentação política, estética e artística é instrumento de resistência. Mas, pelo ponto de vista de Jameson ou Mandel, a fragmentação é, por definição, característica do que está dado sistemicamente, ou seja, acaba sendo, na verdade, só imitação da realidade. O próprio texto do venezuelano se vale da forma estilhaçada para, justamente, representar o estilhaçamento da realidade. “Olha como nossa realidade é fragmentada”. Ou seja, de novo, só imitando passivamente – como fazia o naturalismo do final do séc. XIX.

Pensando assim, a dita ruptura de hoje só fez criar formas de representar (de maneira realista) a realidade em transformação dinâmica, mas não de pensá-la ativamente, mexer nela de fato. Ou seja, o procedimento volta a ser passivo em relação à realidade (a histórica limitação do naturalismo, por exemplo).

Dito e repetido tudo isso, precisamos voltar à peça e considerar que, felizmente, Chat não consegue atingir a fragmentação na linguagem que daria conta de representar a realidade despedaçada e bagunçada do texto de Gustavo Ott. Felizmente porque é aí que acaba pedindo socorro a linguagens poéticas anteriores e, com isso, revela exatamente a contradição das estéticas contemporâneas: se contentar com só representar a realidade. A escolha do grupo de lidar, nessa peça, com temas da atualidade de maneira bem enfática (apesar de não darem um ponto de vista próprio e, sim, emprestarem o do autor) os obrigou a trabalhar na corda bamba – ali em cima do muro da estética – e denunciou, assim, que a poética pós-moderna não é exatamente um avanço como muitos acreditam, mas, muitas vezes, um retrocesso histórico, pelo menos no sentido de como lidar com a realidade. Pois – insistindo nisso pela décima quinta vez nesse texto porque é importante mesmo – somos passivos em relação a ela.

77 fragmentos imitando a realidade e nenhuma proposta de atuação diante dela

O espetáculo foi assistido no dia 21 de agosto no Teatro Joaquim Cardozo, no Recife. Fez parte da programação do Seminário Internacional de Crítica Teatral do qual a Revista Bacante participou como convidada.


* Achou essa crítica irônica demais, está de mau-humor hoje e/ou acredita que crítica de teatro é coisa séria? Clique aqui – TRANS

* Se estiver querendo uma coisa ainda mais doida, então clique aqui.

'2 comentários para “Chat”'
  1. Entendo que não é essa a “real” “função” da crítica, mas cuidado com a precisão dos conceitos, ao colocar pós-modernismos, o pós-estruturalismo e o pós-dramático no mesmo saco… já que como você mesmo disse tudo se tornou jargão comum e requentado, talvez devessemos não tomar tais conceitos também requentados e ir bebe-los diretamente da fonte.

  2. o Ott escreveu uma porcaria
    o grupo conseguiu serr ainda pior que o autor
    entáo….

    (quando escrevo isso em meu blog me censuram e ai me banem)
    Moral
    a internet [e bem mais feroz que essas brincadeiras de guri melequento

O que você acha?

A Bacante é Creative Commons. Alguns direitos reservados. Movida a Wordpress.