Inveja dos Anjos

Críticas   |       |    28 de julho de 2009    |    11 comentários

Não me deixe pra baixo

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Fotos: Leca Perrechil

Ao meu melhor antigo melhor amigo,

Vi uma peça em Rio Preto e lembrei de você.

Estranho isso, né? Você nunca me viu em cena, nunca leu uma crítica minha (aliás, acho que nem sabe que brinco de crítico), nunca quis me acompanhar ao teatro, e muito menos teve saco de me ouvir falar sobre isso. São apenas pormenores e não temos mais tempo pra eles. Nos encontramos só umas duas vezes ao ano e se falarmos de profissão é melhor estabelecermos que você é funcionário de uma multinacional, eu um arquiteto, trabalhamos muito, ganhamos mal e isso basta pra começarmos a fa lar do passado entre uma cerveja e outra. Quem sabe o dia que eu ganhar um prêmio você me manda um e-mail, mas duvido que vai me assistir.

Na verdade só lembrei de você no final da peça, quando toca Don’t let me down. Extremamente clichê né. Lembra quando me mostrou um disco dos Beatles? Nosso inglês era péssimo (o meu ainda continua), e tentávamos traduzir as letras. Lá na peça, quando a caixa de som gritava bem alto “Don’t let me down” também tinha um clima meio piegas. Igualzinho quando a gente conversava na calçada pra falar das meninas. Você escrevia umas cartas e eu ia entregar. Você ligava pra uma menina pra passar os meus recados. Éramos tímidos e não conseguíamos faze r as coisas sozinhos. Não queríamos ficar pra baixo e achávamos que elas poderiam nos fazer bem.

Também achei que uma peça cheia de esperanças poderia me fazer bem. Congresso Internacional do Medo me fez bem. Fiquei pensando que posso fazer minha parte nessa coisa injusta, produzir menos lixo, sorrir mais pras pessoas. Ao contrário, Inveja dos Anjos não me deixou pra cima. Minha garganta fechou e até agora não sei se gostei. Podem ter me passado pra trás querendo que me emocionasse. Mexeram com coisas que tenho medo de encarar. Não sou uma garotinha de 9 anos que tem a vida pela frente, muito menos um mágico quarentão que volta pra casa com a crença que tudo esteja como antes. Só tenho 25 anos, mas parece que as coisas ainda não estão como a gente sonhava entre um e outro guaraná Mineiro. Não tenho o carro do ano. Não uso uma aliança no dedo. Não fui pra Disney. Não fiz um mochilão pela Europa. Não li tudo o que devia. Não tenho um projeto de vida. A fonte da nossa cidade não existe mais. O dono da lanchonete que fazia vitamina de abacate morreu. Os doidos que xingávamos não jogam mais pedra. E não dá pra dizer se tenho inveja de alguma coisa, visto que quando volto pro bairro onde cresci, como um mágico que rouba ilusões, mostrando pra todo mundo que não sou mais o mesmo, as pessoas preferem o menino tímido de antes.

Poderia escrever no papel todo o meu lado podre, como sugere o dono do sebo às suas amigas, mas isso não ia adiantar de nada. Fazia muito isso, tive diários e quando mudei minha mãe jogou no lixo. Só me contou depois que leu tudo (e descobriu coisas horríveis que falei dela). Podia ter me dito antes, pra eu queimar, ia ser mais cênico, e não ia ferir ninguém.

Tem coisas que acontecem com a gente que não faz muito sentido pros outros.

Até então achava que era tudo corriqueiro e não fazia sentido dizer que fiquei magoado quando você mudou de cidade, quando começamos a ter outros melhores amigos, quando eu preferi ir ao cinema com uma garota do que levar nossos cachorros pra fazer xixi na praça. Mas faz né?

Não tínhamos os trilhos do trem, só o clube que ficava longe da cidade. Sentávamos embaixo das palmeiras e, vendo a linha do horizonte contornar as casinhas, batizávamos nossos Comandos em Ação com nossos nomes e cometíamos suicídios gloriosos. As atrizes também chamavam as bonecas pelos nomes da vida real. Será que como nós que matávamos as desilusões infantis, elas morrem um pouco a cada sessão?

Não vou me estender muito, senão vou cair em conceitos psicanalíticos e filosóficos que não te interessam e o espetáculo não tem a pretensão de estimular.

Quem sabe um dia seu e-mail caia no mailing do Armazém e você resolva ver que diabo de peça é aquela que não param de te mandar um flyer.

Daí vai perceber que os nossos assuntos quando nos encontramos, recheados de lugar comum, carregados de “tomara que as coisas sumam no mapa” não terão tanto sentido. Por mais que pareça chato e duro, o cheiro do busão chegando na rodoviária é inconfundível (se lá tivesse trem seria bem mais poético, mas na falta do cão a gente caça com gato). E pode ter certeza que alguém vai estar lá pra poder nos contar a história. Pena que a gente ainda não sabe quem será essa pessoa.

03 músicas que eu sabia a letra

'11 comentários para “Inveja dos Anjos”'
  1. ronaldo disse:

    ,erda… (para não confundirem com boa sorte) – e sabe-se lá porque merda da sorte para gente como a gente –

    último dia do mês mais chuvoso dos últimos 66 anos ( e não temos em português uma música que tenha esse número para colocar de fundo. a em inglês não combina. não cabe no poema como diria outro ) e

    na brava luta de manter o nível (do mar, do salto, do estampado – o sorriso, porque o vestido estampado é out) (mas tudo bem, eu nem uso vestido – não gosto de vento nas partes) você

    s.

    me aparece com um negócio (nego – cio [nego= não admito] [cio=desejo] ) desses

    ?

    fiquei down.

    mesmo.

    caralho – odeio quando criticas me p(r)egam.

    mentira.

  2. Juli disse:

    Reação típica dessa peça, Ronaldo. E, como vc já é de casa… “encosta sua cabecinha no meu ombro e chora…”

    E lembre-se que depois da tempestade…

  3. Lucianno disse:

    Lindo texto, mais do que uma crítica, uma descrição dos sentimentos que te impregnaram a peça, e a forma que você usou pra fazer isso pegou em cheio!

  4. Ronaldo, a gente às vezes tentar ser bem durão. eu sempre tento, mas tem hora que não dá. Pena que aqui no cerrado não chove em julho.
    Julie, chora me liga!
    Lucianno, às vezes teatro pode ser isso né, sentimentos nos impregnando. nem é revelar coisa novas, mas mostrar pra gente coisas adormecidas (clichê? pode ser né, mas eu sou fraco!)

  5. Veronica disse:

    Achei gostosa e sincera, mais do que uma crítica, uma reflexão sobre o que você sentiu e como a peça refletiu em você. Talvez seja isso, um dia a Clarice (linspector) disse numa carta ao Fernando (Peixoto) algo sobre o gostar ou não gostar de uma obra de arte… não interessa. fico muito feliz que tenha te tocado em tantos lugares 🙂 ….

  6. Verônica (a atriz com mesmo nome da boneca), é tão estanho esse lance das pessoas saírem amando ou odiando do teatro né. Prefiro sair tocado, me amando ou me odiando (um tanto egoísta, mas…).
    Só pra constar, não sei se esse texto é uma crítica. É complicado dizer o limite entre reflexões e análises técnicas… e tô preferindo as reflexões.

  7. vontade de desaparecer num daqueles passes de mágica de mágico ruim, entende? sentir-se down. acabei de ver inveja dos anjos no teatro Oi Futuro, em BH. Vi que o Armazém estaria aqui (já tinha visto e enlouquecido com Alice e Casca de nós) e fui desesperado tentar achar ingresso no último dia. não tinha. esperei. consegui entrar sem pagar, sentei no chão bem pertinho da linha de trem, a ponto de Patrícia me ver chorar quando as luzes se acenderam. entristeci por mim, alegrei por eles, pela beleza daqueles andarilhos levadores de tristeza e ilusão. amo o Armazém, com a força do amor do enfermeiro pelo seu paciente esporádico, mas frequente. nessas horas me sinto como você, com essa sensação estranha, sem nome, cheia de tamanho e incompreensão. gostei de suas palavras. gostei de você. casa comigo?

  8. Isso aqui é uma revista ou o Em Nome do Amor?
    Léo, como eu tenho inveja dos anjos e eles não possuem sexo, no momento estou reavaliando os conceitos de casamento. Foi mal, mas continue tentando, há muitos críticos carentes no mercado!
    (lógico que se a Tia Babi ou a Cléo vier me pedir em casamento aqui na Bacante eu penso duas vezes e quebro minhas asas).

  9. […] A Inveja dos Anjos Elenco: Marcelo Guerra, Patrícia Selonk, Ricardo Martins, Simone Mazzer, Simone Vianna, Thales Coutinho e Verônica Rocha Classificação etária: 12 anos […]

  10. paulinha tavares disse:

    ahhhhhhhhhhhhh (suspiro)
    é piegas? a peça roda um disco furado q repete “se emocione, se emocione, se emocione”? Será q foi a tal mensagem subliminar q me fez encher os olhos d’agua? Ou foi somente uma menina do interior cansada de ver peça de escola se deleitando em um momento raro para ela?
    Importa como se resultou a catarse ou mais importa apenas ela ter chegado até você?

    Me desprendo.

  11. Max Pereira disse:

    Vi a peça ontem, no Recife, num teatro lindo, com amigos que amo e chorei por vários motivos. Fazia tempo que não via algo tão bonito e sério e forte e transcendente ao mesmo tempo…parabens ao Armazem e aos Deuses do teatro que permanecem vivos.

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