Another Oak Tree
por FabrÃcio Muriana
Foto: Divulgação
Qual é sentido da vida? De onde viemos? Para onde vamos? Eram os deuses astronautas? Qual é o sentido da metalinguagem? O que faz um autor expor as tripas da sua obra em lugar de mostrar a superfÃcie, a pele? Parto dessas duas últimas perguntas – porque as anteriores são complexas demais pra se comentar sem cerveja – pra dialogar com a obra de Tim Crouch. O Oi futuro (bizarro esse nome, não? “Oi, futuro, como vai?” “Tudo ok, e vc, presente?” “Mais ou menos, minha relação com o passado tá meio distante…”) foi palco das duas apresentações de An Oak Tree no riocenacontemporanea. Eu fui só em uma, que na outra eu tava tomando um sol em Copacabana.
Eu estaria te enganando, querido leitor da Bacante, se dissesse que minha análise partiu só de uma relação de platéia. Meio que por acaso fui parar na oficina do cara e, ainda, vejam só!, reli o texto com calma depois do espetáculo (ai, as férias e a falta do que fazer!). É desta posição privilegiada de platéia-crÃtico-oficineiro, que vos conto que An Oak Tree é uma dramaturgia que foi escrita em 2005, mas cuja idéia é muito anterior e remete à obra homônima de Michael Craig-Martin. Esta primeira obra, de onde veio tudo, merece uma descrição. Imagine você entrar numa galeria de arte e encontrar a singela imagem que você vê aqui ao lado – para os mÃopes, daltônicos, deficientes visuais e chatos, eu conto: um copo cheio d’água, sobre uma prateleira de vidro e um texto.
An Oak Tree, traduzindo literalmente, quer dizer Uma Ãrvore de Carvalho, e aqui vamos fingir que é só carvalho. Abaixo, o texto ao lado do copo, que complementa a obra (exercite sua paciência e chegue até o fim!):
Pergunta: Para começar, você poderia descrever este trabalho?
Resposta: Sim, claro. O que fiz foi transformar um copo d´água em uma árvore de carvalho adulto, sem alterar as caracterÃsticas [aqui o autor usa a palavra “accidents” no original, e traduzi por caracterÃsticas acidentais, reduzindo para caracterÃsitcas] do copo d´água.
P: CaracterÃsticas?
R: Sim. A cor, sensação, peso, tamanho…
P: Você quer dizer que o copo d´água é um sÃmbolo de um carvalho?
R: Não. Não é um sÃmbolo. Eu transformei a substância fÃsica do copo d´água na de um carvalho.
P: Parece com um copo d´água.
R: Claro que parece. Eu não mudei sua aparência. Mas não é um copo d´água, é um carvalho.
P: Você pode provar o que você afirma ter feito?
R: Bem… Sim e não. Eu afirmo ter mantido a forma fÃsica do copo d´água, e como você pode ver, eu mantive. No entanto, quando alguém procura por evidências da mudança fÃsica em termos de uma forma alterada, não existe prova para isso.
P: Não teria você simplesmente chamado o copo d´água de carvalho?
R: Claro que não. Já não é mais um copo d´água. Eu transformei sua substância atual. Chamar isso de um copo d´água já não é mais correto. Qualquer um pode chamá-lo do que bem entender, mas isso não alteraria o fato de que é carvalho.
P: Isto não é igual a história da nova roupa do imperador?
R: Não. Na história da nova roupa do imperador, as pessoas afirmavam ver algo que não existia porque elas achavam que podiam. Eu ficaria muito surpreso se alguém me dissesse que viu um carvalho.
P: Foi difÃcil fazer a transformação?
R: Não, trabalho nenhum. Mas custou anos de trabalho antes de perceber que poderia fazê-lo.
P: Quando exatamente o copo d´água se tornou um carvalho?
R: Quando eu coloquei a água no copo.
P: Isso acontece sempre que você enche um copo d´água?
R: Não, claro que não. Apenas quando eu tenho a intenção de transformá-lo em um carvalho.
P: Então a intenção causa a transformação?
R: Eu diria que faz parte da transformação.
P: Você não sabe como fazer?
R: Isso contradiz o que acho que sei sobre causa e efeito.
P: Parece-me que você afirma ter feito um milagre. É isso mesmo?
R: Estou lisonjeado que você pense assim.
P: Mas, você é a única pessoa que pode fazer algo assim?
R: Como eu poderia saber?
P: Você poderia ensinar outras pessoas pessoas a fazer isso?
R: Não, não é algo que alguém possa ensinar.
P: Você considera que a transformação do copo d´água em um carvalho constitui uma obra de arte?
R: Sim
P: O que exatamente é a obra de arte? O copo d´água?
R: Não existe mais um copo d´água.
P: O processo de transformação?
R: Não existe nenhum processo envolvido na transformação.
P: O carvalho?
R: Sim, o carvalho.
P: Mas o carvalho só existe na imaginação.
R: Não. Na verdade o carvalho está fisicamente presente, mas na forma do copo d’água. Assim como o copo d’água era um copo d’água em particular, o carvalho também é um carvalho em particular. Conceber a categoria “carvalho” ou imaginar um carvalho em especial, não serve para compreender o que parece ser um copo d´água como um carvalho. Além de ser impossÃvel de perceber e inconcebÃvel.
P: Este carvalho em especial existiu de verdade em algum lugar antes de se transformar em copo d´água?
R: Não. Este carvalho em especial nunca existiu antes. Também devo afirmar que ele nunca teve nem nunca terá outra forma além do copo d´água.
P: Por quanto tempo isto continuará sendo um carvalho?
R: Até que eu o transforme.
Ok, a esta altura você deve estar querendo trucidar quem inventou a Internet! É professoral e chato lembrar, mas agora que tá inventada, a internet é terra de ninguém e aqui o espaço é livre de limites de caracteres. Não bastasse essa premissa, você ainda entrou na Bacante… e, olha, critério aqui é o que não tem mesmo! Já que você não tem opção mesmo – a não ser fechar a tela, então eu escolhi te aproximar, querido leitor, do referencial que tive para analisar a obra. Calma, foi pro seu bem. E escrever isso tudo doeu mais em mim do que deve ter doÃdo em você pra ler.
Na oficina, Tim Crouch lia cada trecho do texto como quem tem uma iluminação divina. E não faltaram momentos em que ele falou de metafÃsica, explicando que seu teatro é feito basicamente das coisas que não podemos ver. Aà você me pergunta: “então você vai analisar o quê?” e eu te respondo: “tá vendo como a vida de crÃtico não é nada fácil?” Continuando na história do que não pode ser visto, conclui-se que o trabalho de preparação corporal, todos os objetos realistas, a trilha, ou seja, toda a construção que tenda a um realismo é invalidada e substituÃda pela sugestão da palavra e pela reação do ator no momento em que conhece o texto. É isso mesmo: é parte do jogo colocar um coitado que não conheça a peça pra subir ao palco e fazer o papel de “segundo ator” (como o próprio Tim chama). Na noite em que assisti, Rodrigo Nogueira, autor e ator de Tempo.Depois, participante do projeto Super Night Shot no Brasil e “ator oficial” das pirações do riocenacontemporanea, foi quem subiu ao palco pra encarar essa.
Tim Crouch afirma que sua peça só se completa com as percepções do público. Para exemplificar, ele utiliza a idéia de um cÃrculo que só será fechado a partir da compreensão criativa de quem assiste. No entanto, constrói uma obra extremamente autoral, ao colocar-se ao mesmo tempo como autor, diretor e “primeiro ator” do seu espetáculo (ele só não pegou os ingressos na porta porque não queria imitar a Ariane Mnouchkine). Não bastasse toda essa centralização, ele ainda dirige ao longo das cenas, ou seja, passa as marcações ao vivo para o “segundo ator”, expondo o personagem do diretor como parte do que se apresenta. Seguindo a tradição de contador de histórias, Tim criou a história relativamente simples de um pai (Rodrigo) que perde a filha num acidente causado involuntariamente por um homem que vive de fazer shows de hipnose (Tim). A trama toda acontece numa das apresentações deste show, em que o pai chega como parte do público e encontra o homem que matou sua filha.
A hipnose surge como metáfora da relação do pai com o apresentador e da relação da platéia com o espetáculo. Tudo é “meta” (não o imperativo, tonto!). Tudo é incompleto de alguma forma. Sem exagero nenhum, tudo que é atuado, “performed”, tem um sentido menor neste espetáculo. O que vale é o vazio deixado em diversos momentos. Um vazio vivo, que ajuda mesmo a construir a obra. Tim sabe que está jogando o tempo todo com o que o público espera ver no palco e, por isso, é desnecessário mostrar. Num dado momento, interpretando a mãe da menina morta e esposa do segundo ator, Tim aponta para a platéia e a chama de “estrada”, aponta para Rodrigo e diz que é seu “marido” e aponta pra uma cadeira, afirmando que é uma “menina”. E este é o personagem da esposa o mais “realista” do espetáculo.
Ao mesmo tempo que institui um controle absurdo da peça através de uma dramaturgia muito bem resolvida, sem espaço para improvisos e com direção exacerbada, o autor coloca toda a carga de descontrole neste ator, que sobe ao palco despreparado e, por isso, incompleto essencialmente. Ao público cabe completar o trabalho deste ator.
Questionado se neste espetáculo ele havia testado gente da platéia, gente comum, não-atores para o papel do “segundo ator”, Tim é evasivo e diz que não há uma certa abertura entre essas pessoas e uma experiência prática de que seu espetáculo necessita. Para aprofundar o caminho pelo qual transita, colocando a platéia como co-autora na medida em que apresenta uma obra pra ser construÃda, definitivamente Tim Crouch terá de procurar meios pra que a platéia participe ainda mais, pra que com isso, essa pele, essa fronteira entre a(u)tor e público se dissolva definitivamente. Ele inclusive pode falar com o Zé Celso sobre isso.
Essa foto foi tirada no segundo dia, em que Guilherme Leme,
astro nos tempos da novela Vamp, fez o segundo ator.
5 sugestões impossÃveis proferidas pelo diretor ao longo do espetáculo
Lembro desse copinho com água e o texto do lado numa exposição que teve na oca em 2003, acho q era “A Bigger Splash”. Entre Bacon, Hockney, Hamilton, um copo com água com um texto enorme, e uma multidão de 10 pessoas em volta do texto, lendo a doidura do copo que representava outra coisa! tão besta! tão profundo! e ainda bem q vc colocou o texto inteiro hj, pq no dia q eu vi, na imaturidade juvenil, não cheguei nem no meio do texto, pra poder correr e babar no Bacon.
Cara e a reapropriação do nome feita pelo Tim Crouch, achei ainda mais sensacional.
Sensaçñao de continuidade mesmo saca? Como se as duas obras fossem um continuum.
Valeu pelo comentário, Emiliano.
Se fizer temporada, por aqui ou aÃ, não perca essa peça.
Abraço