Camaradagem

Críticas   |       |    11 de março de 2008    |    0 comentários

Proibido para daltônicos

Em homenagem ao debate sobre os direitos femininos e a relação entre homens e mulheres, esta crítica será a mais democrática possível: uma parte feita por uma menina (em rosinha), outra parte por um menino (em azulzinho). Foi escrita em esquema de camaradagem, pra mostrar que isso é possível. É?

Coincidência ou não, foi em 8 de março, dia internacional da mulher (é, o aniversário do dia em que as operárias foram assassinadas, lembra da aula de história?) que reestreou o espetáculo Camaradagem, do Grupo Tapa, lá no Teatro Imprensa (aquele que faz parte do Centro Cultural Sílvio Santos). Não teve distribuição de rosas vermelhas na porta para as mulheres que ostentavam, no foyer, suas chapinhas e cabelos ultra-produzidos para a ocasião. Aliás, fica comprovado que a região da Brigadeiro Luís Antônio é um grande pólo de resistência da tradição de ir ao teatro emperiquetado, como se uma peça teatral fosse um baile de gala. Todo mundo muito fashion, essa é a regra. Se puder, você que é mulher, passe no cabeleireiro. E rapazes, por favor, reservem suas calças xadrez (visual descolado) ou suas camisas sociais (esporte-chique). Nada além disso está na norma do Teatro Imprensa.

De todos os movimentos sociais que lutam por seu devido respeito nessa nossa sociedade doida e injusta, a questão feminista sempre teve um ar um tanto diferente: sua luta se baseia na igualdade entre homens e mulheres – e nunca ressaltando a todo custo diferenças que precisam ser relevadas. Aliás, essa é uma implicância minha: se são diferenças que precisam ser relevadas, por quê a maioria dos movimentos religiosos, homossexuais e étnicos, por exemplo, insistem em ressaltar diferenças supérfluas em vez de se basearem em argumentos que comprovam que, afinal, somos todos iguais?

Esta minha impressão com relação a movimentos feministas mudou um pouco após assistir este espetáculo. É contradizendo esta lógica que a protagonista Bertha (ironicamente interpretada, vejam só, por Patrícia Pinchamone, que foi eleita por uma revista masculina um dos motivos para se ir ao teatro em São Paulo) e sua amiga Abel, ao militarem contra a coisificação da mulher, optam por se vestirem como homens – com isso, ao mesmo tempo em que protestam, acabam legitimando um pensamento machista de que apenas as pessoas com aspecto e atitudes masculinas têm seu lugar na sociedade.

Impressiona como algumas lutas sociais não envelhecem. Talvez percam um pouco o poder de tocar as pessoas ao se tornarem, digamos, figurinhas fáceis e, portanto, repetidas. O que quero dizer é que, como mulher, e pensando nos direitos que a sociedade me dá, a questão não me tocou profundamente, apesar de reconhecer que há ainda diferenças gritantes no tratamento dependendo do sexo, e de respeitar muito as mulheres que lutaram em épocas ainda mais complicadas, como é o caso da personagem principal desta peça.

É por seu “lugar na sociedade”, ou melhor, por uma vaga no Salão de Paris, que Bertha decide se aliar ao também pintor Axel, em um casamento diferente: os dois estabelecem um trato de que viverão sob o mesmo teto como camaradas (ou seja, nada de brincar de papai e mamãe). Durante todo este período, os conflitos entre as supostas diferenças entre ele, homem, e ela, mulher, se tornam mais fortes – impulsionados pela competição entre dois pintores que desejam ser escalados para uma mesma exposição.

Outra questão, porém, evidenciada pelo grupo, me chamou mais atenção do que a luta feminista em si. Talvez por se tratar do “outro”: no caso, o homem. No momento em que o movimento feminista começa a se inflamar e as opiniões são radicalizadas, como deve um homem reagir? O grupo Tapa nos mostra reações diversas, desde o personagem gay – estereotipado como sempre, engraçado como poucos – até o general machista, passando pelo pobre Axel, que deu o azar de se apaixonar por sua camarada, a feminista-mór. O bom-moço carrega consigo a missão quixotesca de estar entre homens e mulheres e tentar ser justo e respeitoso em meio a tantas pessoas intransigentes. Por boa parte da peça, Axel é o marido idiota e submisso, e a relação padrão homem-mulher da época se inverte. Mas não pense que depois que reage e passa a ser “malvado”, Axel encontra a receita da felicidade e do relacionamento tranqüilo e feliz. Está dado o paradoxo: o homem é quem fica mais perdido nesta grande luta pelos direitos feministas.

E no meio desses dois mundos, fica Willmer, o personagem gay que a Juli comentou no parágrafo anterior. Logo no início do espetáculo, a platéia se segura para não gargalhar para as primeiras falas e gestos do afeminado amigo de Bertha. Rapidamente a platéia, espertinha, percebe que a afetação do personagem de Zé Henrique de Paula é muito mais do que saídas baratas para provocar o riso fácil – é parte de um minucioso e sofisticado repertório de gestos e cacos que o elenco inteiro realiza ao longo de todo o espetáculo.

Tal repertório, exagerado, somado a vozes empostadas, dá o tom da linguagem assumida: uma mistura daquele naturalismo que tem a cômoda da vovó no cenário, mas com elementos que permitem ao espectador que apreenda mais do que aquilo que ele vê. Como pano de fundo, quadros, molduras, o unvierso das artes e, claro, da ambição e da corrupção. O cenário que parece previsível, é freqüentemente movido pelos atores e conta com uma maluquicezinha aqui e outra ali para surpreender a agregar sentido. O mesmo se pode dizer das interpretações, quase sempre lineares, mas muitas vezes apoiadas em cacos inteligentes e divertidos, que depõem sobre os personagens muito mais do que os diálogos dariam conta.

Neste Dia Internacional da Mulher, o grupo deixa como tarefa de casa para o público a de pensar de maneira mais complexa as relações homem-mulher e, a partir delas, as relações humanas. Sem fechar sentidos, sem colocar vilões e mocinhos em cena, nem levantar bandeira, o Tapa expõe a constatação de que a maioria das relações se baseia no jogo de poder – fique claro, portanto, que qualquer luta por igualdade não pode se constituir numa luta pela simples inversão de um poder injusto. Serão possíveis relações em que ninguém precise estar por cima? (pára de pensar besteira, isso é sério!)

4 páginas da VIP

PS.: Reconhecemos que, por mais democrática que busque ser, esta crítica desfavorece os daltônicos. Sentimos ainda não dispor de tecnologia para corrigir o problema. A pesquisar.

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