Chica Boa
Rir ou não rir, eis a questão.
Foto: Bianchi Jr.
O circo, já nos disseram os Clowns de Shakespeare, tá na moda. Aliás, uma moda duradoura (contraditório, não?) e bastante generalizada, que vai de grupos profissionais a oficinas da prefeitura, passando pelo Domingão do Faustão, com apoio do garoto propaganda Tonho da Lua (ops, Marcos Frota). Considero muito compreensÃvel o fascÃnio exercido por um espetáculo capaz de, a um só tempo, misturar com alegria tantas formas de expressão e arte. O que não dá é pra transformar modismo em comodismo e se aproveitar das bases sólidas da arte circense pra fazer um trabalho sem inovações e sem procurar dialogar com seu tempo.
A peça Chica Boa, em cartaz no teatro Ruth Escobar (o teatro mais vermelho de São Paulo), busca referências nas tradições do circo-teatro para a montagem do texto de Paulo Magalhães. Trata-se da história de uma famÃlia que vive sob a tirania de Dona Engrácia, até ser finalmente libertada por Francisca (Chica Boa), filha bastarda do marido de Engrácia – que chega pra organizar a revolução e libertar os submissos parentes. A moça consegue até humanizar Dona Engrácia, que também entra no clima de Carnaval.
As primeiras cenas, acompanhadas pela sutileza do piano – que executa a trilha na hora, sincronizada com os gestos dos atores – fascinam pela perfeição de movimentos simples, porém bem calculados e muito precisos. Méritos de um diretor que além de ser ator e vir de uma famÃlia circense, é também coreógrafo.
O que se segue, no entanto, é algo bem diferente das “circunstâncias hilárias” que povoam os releases e as pseudo-crÃticas, que na verdade são os próprios releases ajeitadinhos. Eu, que – posso jurar – não sou uma pessoa mau humorada, não consigo lembrar de nenhuma cena que tenha me “provocado gargalhadas”. Nada contra utilizar os estereótipos, principalmente se for para radicalizá-los, como faz uma das atrizes, carregando no tom de voz desafinado e incômodo. No entanto, em vez de se basear neles e aprofundá-los, a peça ficou patinando em piadas fáceis, superficiais e preconceituosas de que estamos todos cansados. Ou será que só eu já me cansei de piada com viúva bonita e rica; mulher que manda no marido; machões ensinando a outro macho a arte da conquistar uma mulher; e negas malucas que só fazem sambar e não acrescentam nada à peça?
Essa personagem, aliás, povoou meus pesadelos na noite seguinte ao espetáculo. Completamente desnecessária à história, ela parece entrar apenas para fazer o público rir com sua maquiagem exagerada, seus peitos postiços e sua sambadinha. Não entendo, absolutamente, qual é o papel dela na história, que mensagem traz, que conflito acrescenta, que nuance revela. Mas uma coisa é fato: a tática da nêga maluca funciona e muito para tirar gargalhadas do público – fiquei até constrangida por não estar rindo daquela criatura. Aà está uma questão que me colocou em conflito: se a peça é feita para o público e foi hilária pra todos os que assistiam – menos eu – ela cumpriu sua missão? Se as pessoas riram da montagem como riem do Zorra Total, já tá ok?
1 nêga maluca assustadora
O teatro paulistano, que reúne uma das maiores variedades de expressões artÃsticas do mundo, deve ser acompanhado justamente por esse enfoque! Ou seja, se você se cansou de ver “piada de mulher que manda no marido”, não vá ver as peças que resgatam a tradição do circo-teatro. É muito simples: deixe pra outro crÃtico.
O resgate dessa tradição pressupõe justamente que os espetáculos tenham o mesmo tratamento daquela época: “radicalizar os estereótipos” (o que chamamos de tipologia), “patinar em piadas preconceituosas” (já imaginou que naquela época elas exprimiam uma outra visão sobre a sociedade?), à s vezes sem a pretensão de “trazer uma mensagem, acrescentar um conflito ou revelar uma nuance”, mas com a legÃtima pretensão de “apenas entrar pra fazer o público rir”, como a própria crÃtica falou, de forma pejorativa.
E o preconceito está impresso em toda a crÃtica, baseada simplesmente no fato da autora ter gostado ou não. O fato de toda a platéia ter rido, menos a crÃtica, revela o funcionamento do espetáculo diante da única regra que nossos antepassados circenses seguiam: “Comédia é pra rir; drama é pra chorar”.
E a comparação com o Zorra Total só pode ser falta de preparo pra falar… é mais fácil achincalhar a pesquisa do que admitir que assistiu um espetáculo e não estudou o suficiente pra comentá-lo!
Oi, Alex.
Fui assistir ao espetáculo justamente por conta da “tradição do circo-teatro” a ser resgatada ali, foi o que me interessou – definitivamente, não fui lá pra ver algo que não me agradaria, nem pra achincalhar ninguém.
Deixei claro na crÃtica que nada tenho contra a radicalização dos estereótipos, pelo contrário! Quando ela é feita pra valer, traz muitos significados, muitas reflexões, muitas metáforas bacanas – nessa peça, inclusive, é feita por uma única atriz, que consegue enriquecer as cenas de que participa. O que questiono é que, de resto, a tipologia (se você prefere) se prestou apenas a piadas preconceituosas a respeito dos tais tipos. Não é só isso. Não é só isso hoje e, suponho, não era só isso tradicionalmente.
Acho, sim, um problema se um personagem ou uma peça inteira se prendem a piadas preconceituosas e batidas para resgatar as tradições sem, no entanto, fazer esforço nenhum pra que elas dialoguem com a atualidade. Considero muito o valor do riso pro divertimento, mas acho triste ignorar o potencial do riso que vai além disso e que “nossos antepassados circenses” certamente conheciam muito bem.
Quanto à comparação com o Zorra Total, peço desculpas, mas é o mais conhecido exemplo que temos de uma comédia que é pra rir e só, que ignora ou subutiliza o potencial do riso. E que, no entanto, está lá, legitimada, todos os sábados.
(não vi o espetáculo, mas como tá super na moda o tal do resgate…)
O resgate só pelo resgate é inútil! Vira folclore em cena. Tipo dançar Carimbó numa boite! Coisa pra gente achar bonitinho!
Por que essas pesquisas de resgate não podem considerar que estamos em 2008? Geração youtube, ipod, big-brother …
Não sei se nossos antepassados circenses pensavam que “comédia é pra rir, drama é pra chorar” e acabou! Piolim falava que as pessoas riam de vê-lo se dar mal! Levar cacetadas, apanhar, vestir de mulher, ser traÃdo é uma forma de identificação do público com a cena (e indiretamente ele não está só rindo do outro, mas da vida dura que leva).
É Juli, também não sou uma pessoa mau-humorada, mas vi uma comédia sucesso de público sem dar uma risada no ano passado. Fui pra casa frustado!
Li a critica, e de alguma maneira gostei.
Todos nós temos de estar abertos as criticas; não é nosso merito, criticar as criticas e sim, tentar absorver as coisas que não enxergamos, seja, pela nossa empolgação, pela nossa emoção, pelo nosso envolvimento ou pelo nosso empenho.
Valeu inclusive pela divulgação, pela incerteza do que é;
Li um dia destes uma critica a um filme. Um filme que eu havia assistido na Espanha e que tb esteve em cartaz no Brasil. The Fountain (a fonte da vida), é um filme que me emocionou sobremaneira, um filme que somente entendi quando a última cena foi ao ar, um filme de dificil compreenção, porque se passa em tres periodos da história. Eu como mero espectador, gostaria de gritar para o mundo inteiro que o filme mudou minha vida -acredite-; foi como um destes livros que você abre, não conhece o fim, mas assim que lê a primeira linha, percebe o quão será importante le-lo naquele momento. Eu que não sou critico de arte. Um espectador apenas. O filme atingiu seus objetivos -enquanto filme-. E se formos pensar, em quais são os objetivos de um filme, uma encenação teatral, um romance… abstratamente falando: gerar emoções, trazer a tona sentimentos, criar mundos, … A pessoa que escreveu a critica do filme, provavelmente alguem insensivel e sem nenhuma capacidade para receber e transmitir nada alem do que se vê, nada alem do que é material…
O verdadeiro critico é aquele que sente… e não aquele que vê.
Aceite as criticas, seja elas positivas ou negativas, aceite as criticas seja elas certas ou erradas.
O que fazer com elas é problema seu… mas aceite-as.
Depender da opinião de uma só pessoa elheia, para decidir se será feliz ou infeliz… isso é caso de internação e hospÃcio.
Salve o público, que em muitas ocasiões, aplaudem de pé as emoções e sentimentos descobertos pelos atores e atrizes em cima do palco.
Livros, peças, quadros… são feitos para o público. E não para os criticos.
Decida-se por você, puxe a responsabilidade para si e caminhe sempre adiante. Moça.
Beijos nos Olhos …. Luz para a vida, brilho para os caminhos e brio para os empenhos.
Alias,
Assisti a peça, e gostei.
Sorri.
Gerou emoções, sim.
“CHICA BOA” não é um dos textos mais conhecidos da dramaturgia brasileira e seu autor, Paulo Magalhães, também não é o mais festejado dos nossos dramaturgos. Nascido no Rio de Janeiro e 1900 e falecido em 1972, Paulo Magalhães escrevia um teatro leve, sem maiores conseqüências, voltado para o público burguês que procurava o teatro única e exclusivamente com o intuito de buscar diversão garantida. É o caso de “Chica Boa”, um texto muito célere que, se não é o melhor exemplo de dramaturgia nacional, resulta em um divertido espetáculo de teatro.
Paulo Magalhães foi um dos muitos autores situados entre os anos 40 e 60 que se dedicaram a desenvolver aquilo que convencionou-se chamar de comédia de costumes e que tem em Martins Pena seu mais importante representante, tido, inclusive, como o criador do gênero no Brasil. “A Cigana me enganou” e “As loucuras do Imperador” são outros dois tÃtulos igualmente importantes de Paulo Magalhães, mas foi com “Chica Boa” que o dramaturgo carioca conquistou o reconhecimento da intelectualidade da época. Inspirado em uma marchinha carnavalesca composta em 1942, Paulo Magalhães, 9 anos depois, em 1951, coloca no palco a sua “Chica Boa”.
Há quem garanta que Paulo Magalhães aproveitou uma carona mercadológica por ocasião do lançamento do sorvete Chica Bom, escrevendo a peça que tinha quase o mesmo nome e já fazia parte do referencial popular. A verdade é que “Chica Boa”, de Paulo Magalhães, é um excelente achado teatral; uma dessas peças que sempre dá certo e se não possui as melhores qualidades literárias, temos a certeza de que foi escrita por alguém que conhecia perfeitamente as engrenagens cênicas, desenvolvendo uma trama que não se interrompe um único segundo e vai em direção a um crescendo surpreendente com a grande peripécia que ocorre com toda a famÃlia.
Para os que gostam do jogo intelectual, é fácil identificar em “Chica Boa” alguns ingredientes “aristotélicos” que, certamente, eram do conhecimento do autor. Não é muito difÃcil identificar peripécias, reconhecimentos e transformações radicais que acontecem diante dos olhos do espectador. A idéia de introduzir em um núcleo fechado um elemento estranho que subverte a ordem vigente sempre funciona e é a fórmula do agente desestruturador que é atemporal.
Embora a apresentação estética do Circo-Teatro fosse muito singular na época de seu apogeu, ela não tinha a elaboração formal que só o passar dos anos poderia proporcionar. Hoje, podemos analisar essa manifestação teatral levando-se em conta toda essa bagagem adquirida. O interesse em resgatar essa dramaturgia e esse estilo de teatro é estabelecer uma ligação entre aquela época de expressão tão autêntica e o nosso momento teatral atual.
Em relação à representação, eliminou-se o psicologismo, sendo trabalhado assim o temperamento do ator para se chegar a composição exata do tipo. Maquiagem e figurino completam a composição.
Todo o espetáculo é pontuado e comentado musicalmente, assegurando o ritmo e clima das cenas, tornando homogênea a relação música e teatro. A trilha é mista: músicas que sempre eram tocadas nos espetáculos circenses, tudo ao vivo, executado por um pianista, seguindo a tradição circense de ter músicos a serviço da encenação.
Em relação ao cenário e adereços, o espetáculo utiliza um telão pintado à mão, um sofá, uma cadeira, ribalta e outros elementos menores de efeito decorativo.
A composição de todos os elementos do espetáculo leva em conta a tecnologia e o conhecimento que hoje dispomos, ressaltando assim as particularidades do Circo-Teatro com a maior veracidade e refinamento possÃveis. Esse conjunto transforma, sem dúvida, esse trabalho em algo desafiador e, sobretudo, num grande incentivo à cultura popular como caminho para um teatro de resgate e evolução.
Oi, Juliano. Legal você ter deixado sua opinião sobre a peça. E, sim, é importante aceitar crÃticas. Mas aceitar não é “abrir as pernas” pro crÃtico, não. É apenas tentar compreender de onde ele parte pra criticar e avaliar os argumentos que ele traz. Aceitar não é deixar de contestar, nem de dialogar, né? Quanto ao fato de sentir ser mais importante do que ver, na minha opinião, isso não serve só pra bons crÃticos, mas pra todo mundo, não? E, finalmente, claro que as emoções são muito diferentes pra cada pessoa que assiste uma peça, lê um livro, vive uma experiência qualquer. Impressões, sentimentos, experiências pessoais do crÃtico vão estar presentes sempre nas crÃticas, por mais que muitos insistam na tal da “imparcialidade”. E, levando isso em conta, a opinião expressa pelo crÃtico e suas observações sobre o espetáculo vão ser muito diferentes das de outras pessoas. E viva a Internet, que permite que mais gente conte o que sentiu E o que viu!
Beijos, menino. Obrigada por comentar e enviar luz.
Oi, Paulo.
Agradeço sua atenção em acrescentar todas essas informações à discussão. Muito legal, por exemplo, a história do Chica Bom.
Mas preciso ser muito sincera: seu comentário parece um rilise bem escrito. Afinal, o que você realmente quer dizer sobre este trabalho que não sejam informações técnicas?
Alguns detalhes que eu gostaria de comentar/ questionar:
– posso imaginar que este texto deve ter até “espantado” senhorinhas de famÃlia que assistiram na época, por quebrar moralismos tÃpicos do cotidiano delas. E para o público de HOJE, qual é a provocação? Ou provocar o público não é relevante?
– por que não usar a “fórmula do agente desestruturador” e inserir elementos estranhos também na forma da peça?
– Você diz que o interessante do resgate “é estabelecer uma ligação entre aquela época de expressão tão autêntica e o nosso momento teatral atual”. Isso! Também Acho! Mas onde está a conexão? Por que em vez de lê-la no seu texto, não é possÃvel identificá-la no palco?
achei interessante o comentario de Oseas, porque sou
a filha tempora de Paulo Magalhaes, o autor mais representado no Brasil, em 1958 ganhou medalha de ouro e tem mais de 106 pecas representadas pela SBAT, ele faleceu em 72 e nasceu em 1900. Muito talentoso e inteligente, sim, ele era cabotino e muito
avancado para a epoca, por ser irreverente e corajoso.
tambem eh o autor do hino do flamengo oficial compos em 1935, fanatico pelo flamengo que o homenageou em
seu enterro com banda de musica e bandeira sobre o caixao.
Sou professora de artes no interior de MS e gostaria de receber o texto da peça CHICA BOA para encenar na escola com os alunos do ensino médio.Obrigada.
Racismo. Só vejo racismo. BLACKFACE É RACISMO!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Stephanie (e quem mais entrar aqui por conta da polêmica sobre o blackface),
Convido a ler os comentários, não se atenham apenas à foto ou à crÃtica publicada.
Em geral, os debates mais legais aqui na Bacante aconteciam no campo de comentários (antes das caixas de comentários serem invadidas por trolls).
Acho que contribui um pouco mais com esse debate que tá rolando agora, em 2015.
Abraços,
MaurÃcio