Conquanto sonho

Críticas   |       |    17 de junho de 2008    |    3 comentários

A arte de resumir bagunçando

Fotos: Beatriz Rodrigues

Um belo dia, um padre-ator e um ator-ator se apaixonam por um texto. Nessa época, ambos cursavam artes cênicas na UEL e, com a ajuda de uma atriz-produtora-amiga, enviaram um projeto para um edital municipal que dá 60 mil para montagens da cidade dispostas a estrear no Filo (ou seja, a se concretizarem em menos de seis meses). Mandaram o projeto, mas não rolou.

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Um ano depois, ainda apaixonados (há pesquisas que dizem que a paixão dura três anos. A Veja até publicou uma vez. Confiável, não? Bem, no caso deles, ainda estava em tempo), eles tentaram novamente. Agora com a ajuda do grupo T.O.U (Teatro Obrigatório Universal), com nove anos de experiência em Londrina foi, digamos, bem mais fácil conseguir a aprovação. Finalmente, com mais um grupo de atores e diretor convidado, os amigos conseguiram montar sua versão para A Vida é Sonho, de Calderón de la Barca.

Graças a Deus, eles não montaram a história na íntegra, caso contrário, a platéia congelaria nas cadeiras dispostas na parte de fora do Museu Histórico de Londrina. Além disso, seria correr um considerável risco do resultado sair muito, muito chato.

Claro que a escolha dos recortes não obedeceram somente ao medo de que o público congelasse ou dormisse. A idéia, desde o princípio, era de trazer para o processo de criação, como uma espécie de provocação, os principais conflitos propostos no texto: a prisão de Segismundo numa torre desde o nascimento (e, com ela, uma série de questões relacionadas à existência e a personalidade numa situação de isolamento); a ida de Rosaura à Polônia para vingar sua honra; e a disputa da coroa entre pai e filho (e, com ela, a discussão da essência da tirania).

Misturados a depoimentos pessoais e a uma prepara̤̣o corporal digna de propaganda de Gatorade, esses conflitos deram origem a, digamos, uma bagun̤a. A desordem era ordenada em tr̻s planos (tipo tr̻s palcos em formato de escadinha mesmo) que ora puxam o olhar de quem assiste para o teto pontiagudo do Museu, ora obrigam o espectador a selecionar Рsozinho Рo que quer assistir entre tantas coisas acontecendo.

Assim, éramos disputados pelos sons do terminal central de Londrina, pelas imagens da rua refletidas no vidro do Museu, pelo cocô de pomba na cadeira da frente (cocô de pomba é muito comum em Londrina), pelo barulho dos beijos do casal de namorados ao lado (durante as cenas!!!), pela trilha sonora que vinha do fundo (às vezes alta demais), pelas vozes dos atores (que em algumas cenas queriam ser ouvidas, em outras não) e pelos estímulos visuais (tanto dos figurinos, quanto de alegorias simples como cavalos de brinquedo para os guardas).

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Essas possibilidades todas de edição do olhar e da própria recepção da peça mostram que há, na montagem, um risco de que os sentidos possíveis sejam tantos que o público não consiga apreender nenhum deles. Por outro lado, correr esse risco é confiar que a edição do espectador o levará a conectar-se justamente com os conflitos que mais o tocam e se relacionam com suas questões pessoais e individuais. Isso tudo num local que não permite perder o contato com o espaço em que a obra se desenvolve – a cada apresentação com novas interferências da rua e cocôs de pomba mais fresquinhos.

4 gotas de orvalho no meu cabelo (pô! Minha chapinha!)

PS: Antes que alguém reclame ou venha defender os responsáveis pela limpeza dos assentos, declaro que não havia cocô de pomba em nenhuma das cadeiras. Foi, apenas e tão somente, uma liberdade poética cheirosa.

PS2: Aguarde entrevista com o ator-padre, o ator-ator e a atriz-produtora.

'3 comentários para “Conquanto sonho”'
  1. Milene Duenha disse:

    Olá, quero agradecer o olhar tão delicado sobre esse trabalho. Confesso que lidar com o “cocô de pombo” foi fichinha, aprendemos a ser também meteorologistas para os intempéries, curandeiros para quaisquer problemas gripisticos, de insônia ou de falta de sonhos, e estaremos agendando as devidas consultas para a próxima temporada que acontece de 31 de julho à 17 de agosto. Como aprendizes ávidos e com a ajuda dos corajosos soldados, tentaremos reaver o trono de Segismundo que solícito declama: – “Manda que eu mando mandar, manda?!” E a honra de Rosaura, a cantar: – “Papai eu quero me casaar… ô minha filha ocê diga com quem…. ”

    Ps: As coisas sérias são apenas o agradecimento e a data da temporada. Para o restante peço licença.
    Abraços
    Milene Duenha

  2. Armando Bagunça disse:

    eu assisti o espetáculo nos dois dias, quis gastar meu tempo para ver se é verdade que a prefeitura liberou 60 mangos para este trabalho.

    Ps: olhar delicado é ironia ou você realmente acredita nessa delicadeza?

    Ps2: paga um churrasco pra nós com o troco!

    abraços fortes por trás
    Armando Bagunça

  3. Juli =) disse:

    Olha que 60 mil é pouco, viu?! E fazer um trabalho de pesquisa em menos de seis meses é quase injusto. Em todo caso, se seu negócio é churrasco, a gente faz uma vaquinha e te paga um rodízio, ok? rs Envie seu email pra mepagaumchurrasco@bacante.com.br que a gente te manda o Vale. Bem-vindo à Bacante, a revista que mata sua fome de arte!

    Milene, pra você, boa sorte na temporada. Quanto às coisas não-sérias, bem, elas tem mais licença aqui na Bacante do que as coisas sérias. Bem-vinda.

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