Diciembre e Neva
Fotos: Divulgação POA Em Cena
“Atrás dele a rebentação do passado despeja cascalho sobre asas e ombros, com um barulho de tambores enterrados, enquanto diante dele o futuro está represado, esmagando seus olhos, dinamitando os glóbulos como uma estrela, torcendo a palavra como uma mordaça, asfixiando sua respiração. […] Então aquele instante fecha-se sobre ele […]â€
(O Anjo sem Sorte. Heiner Müller)
O grupo chileno Teatro en el Blanco está rodando o Brasil. Já participou de quatro mostras (Mostra latino Americana; FIT São José do Rio Preto; Mostra de Teatro Chileno do SESC; POA em Cena) só nesse ano. E por onde passa, deixa um rastro de angústia, crises e questionamentos. Em Porto Alegre o grupo apresentou suas duas montagens, Diciembre e Neva, nessa ordem, embora a criação das mesmas pelo grupo tenha sido em ordem inversa.
Ambas as peças apresentam uma situação de cena objetiva e definida. Em Diciembre, “o mês de festas tristesâ€, a famÃlia (duas irmãs e o irmão) comemora o Natal. Jorge, o irmão, foi dispensado do front de batalha da fictÃcia guerra territorial entre Chile e Peru, para o encontro familiar. Estamos no futuro, no ano de 2014. Já em Neva é passado, 1905 – São Petersburgo. Uma companhia de teatro ensaia uma peça, da qual faz parte Olga Knipper, esposa de Anton Tchecov. Lá fora o ar é vermelho. Operários são massacrados pelas tropas czaristas: o domingo sangrento. Há o prelúdio da revolução.
Seja em Neva, seja em Diciembre, a situação apresentada é uma só por todo o espetáculo. A mesa do Natal em Diciembre e o palco de ensaios de Neva são a base de todo o desenvolvimento cênico em cada uma das peças. No entanto, em ambas há uma força externa imensa que asfixia as personagens aos poucos. Uma claustrofobia gradativa que carrega consigo todo o público. A guerra. A revolução. Quase ouvimos as botas marchando, a tensão da morte, os tiros na janela. Mas nada acontece. A situação mantém-se, pouco a pouco tensionada, mas sem qualquer interrupção do mundo externo no universo particular representado.
A estrutura dos espetáculos é dramática: com personagens definidas e relação intersubjetiva. No entanto há passado, a peça inicia dentro de um processo histórico em andamento (real ou fictÃcio), e o meio externo já impregna toda a situação desde o inÃcio. Há no ar algo maior.
Nesse vai-vem beirando o limite, de repente as membranas da relação social se rompem. Explodem. A curva é a mesma tanto em Neva como em Diciembre. De uma latência desconfiada no inÃcio para um gradual esgotamento do espaço, como se ele literalmente diminuÃsse com o tempo – as paredes do teatro esmagando a representação; como se, pouco a pouco, esquentasse e o calor fosse fazendo-se insuportável. Enfim, explodem. Mas nada vem de fora (nem mesmo a luz ou o som, que são operados de dentro da cena pelos atores). A guerra não chega ao Natal familiar; a revolução não marcha sobre o teatro. O caminho que se espera, de fora para dentro, é invertido. O externo chega como um tornado, um vulcão que destrói tudo a sua frente, mas vem de dentro. Tanto em Neva como em Diciembre. E o final é um manifesto de cada personagem. Um vômito idealista, humano, contraditório, dialético… Tanto em Neva como em Diciembre.
No entanto, em Neva estamos no passado, na Rússia pré-revolucionária tal qual a obra de Tchecov (referência constante no espetáculo). 1905 é um sÃmbolo da iminência da Revolução de Outubro. Há revivida essa iminência, esse estado limite, essa pseudo-calmaria estúpida que antecede as tempestades (toda a obra de Anton Tchecov capta exemplarmente esse momento na Rússia), o futuro incerto e imprevisÃvel. E no futuro de Diciembre tudo já se escancarou; a guerra já está em curso, bem como a revolução (dos Ãndios Mapuches, a volta da guerrilha do Sendero Luminoso). Assim, vistas em conjunto as peças nos espremem entre o passado e o futuro. Esmagam-nos entre a iminência e os mortos na calçada. Se o presente de Neva remete-se inegavelmente a uma circunstância histórica, faz também a analogia direta ao nosso presente. Ou seja, conjuga nosso tempo nesse estado de iminência. Ao mesmo tempo em que Diciembre aponta a previsÃvel catástrofe. Explosão das “ilhas de desordemâ€.
angelus novus, Paul Klee 1932
Assim, o teatro do Teatro en el Blanco grita nosso tempo. Esfrega na nossa cara a mediocridade anestésica que a arte tem se tornado. E nos avisa que o “instante petrificado†já chegou … E que não dura. A estúpida calmaria (do belo subjetivo) é onde a arte cega se deleita. Como os personagens de Tchecov, patéticos e ignorantes de sua situação histórica – sobreviventes de uma construção social que em instantes deixará de existir. Em imprevisÃvel explosão.
14 (de 2014) menos 5 (de 1905) dá 9 (de 2009)
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