Ovo

Críticas   |       |    25 de fevereiro de 2008    |    1 comentários

Deuses passam fome

Fotos: Marcelo Dischinger

Enquanto acabo com o meu estômago tomando uma lata de coca-cola na fila do teatro, um moleque vem e me pede a latinha. Beirando a calçada há uma senhora mexendo no lixo, retirando papéis e plásticos e colocando na sua carroça. Ela pára e berra com seu cachorro que late para os carros que passam na rua. Seriam parentes? Dou a lata, e ele corre junto à mulher, e também vai mexer no lixo. Não, como qualquer outro ser humano que além da comida tem diversão e balé, não me comovi profundamente com essa cena (antes uma lata vazia que um real), e continuei a rir de uns amigos que estavam comigo, sem saber o que me esperava dentro do teatro. A fila anda e a noite continua.

ovo 1

Um anão começa a fazer gracejos no palco, cheio de lixo, bebe algo num copo descartável e de súbito engole o copo. Então, um monstro de sacolas plásticas dança Blue Moon num padedê com o anão em farrapos. Onde eu fui parar? Mais dois bizarros homens entram em cena, trazendo mais lixo para o palco. A platéia se pergunta onde estará o tal Ovo que dá nome ao espetáculo? Os pais se perguntam se aquele tal de circo-teatro do Udigrudi (Brasília/DF) era adequado para os filhos. E os três palhaços tocam Luar do Sertão, em instrumentos feitos de lixo, felizes como urubus na carniça. Seria impossível continuar assistindo a peça com minha armadura racional, então esqueço tudo o que sei sobre circo, teatro e música, e relaxo. Não tenho que entender nada, só preciso sentir.

Os palhaços constroem um jogo em que não há distinção clara entre brancos e augustos. Essas classificações variam o tempo inteiro, mostrando que todos mandam e são mandados, conduzem e são conduzidos, amam e odeiam – seres “nietzschianos”, que lutam juntos pela sobrevivência e estão além do bem e mal. Os conceitos de certo e errado se embaralham e passa a prevalecer a necessidade de estar vivo mais um dia (mesmo que para isso tenham que assar o próprio cachorro).

Os três mortos sociais estão com fome! Fome de amizade, de sexo, de poesia, de diversão, de comida! Pela frente, o que não presta mais à classe produtiva. Esse resto se transforma em lagostas, lingüiças, ovo, cachorro, pintos, amigos, dançarinas, música, pesadelos. E apesar da procura por uma chance de viver, toda tentativa é uma forma de perder mais sua dignidade. E quanto mais eles perdem mais o público ganha em poesia.

ovo 2

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A estética da pobreza sempre me deu medo. É muito fácil cair no lugar comum dos enfeites de garrafa descartável ou da imagem bonitinha da criança no meio dos urubus num lixão. Em Ovo, as linguagens circense e musical espantam o risco de cair numa pieguice sem dó. A opção do grupo por levar as ações além do limite permitido transforma as figuras patéticas em humanas (uma lição ao naturalismo perfeitinho e lacrimoso).

A imagem das sacolas voando no palco, que deixaria o saquinho plástico de Beleza Americana com inveja, e o som de Aquarela do Brasil tocada em latas e garrafas me acompanham na saída do teatro. Na porta, o mesmo garoto que tinha me pedido a lata de refrigerante ajudava a mulher a embalar o sustento na carroça. Que coincidência! Deveria eu, após assistir o espetáculo finalmente me comover com a vida real? Difícil tirar poesia de tanta dureza. Espero que não assem o cachorro!

958741254 sacolas de plástico no palco

'1 comentário para “Ovo”'
  1. Favor publicar o crédito das fotos (Fotos: Marcelo Dischinger). Obrigado e sucesso!

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