A Galinha Degolada

Críticas   |       |    1 de outubro de 2010    |    0 comentários

Obs.: Entre os dias 02 e 12 de setembro de 2010, Paulo V. Bio Toledo participou do 25º Festivale, em São José dos Campos, como crítico convidado pelo festival. O texto a seguir foi originalmente publicado na página do 25º Festivale (veja aqui)

Perspectivas da uma Família

Foto: Cristiano Prim

Os grupos de Florianópolis Persona Teatro e Teatro em Trâmite juntaram-se para montar o espetáculo A Galinha Degolada, adaptação de conto homônimo do uruguaio Horácio Quiroga (1879-1937).

O conto narra a história de um casal comum cujos quatro filhos deflagram uma idiotia supostamente congênita (embora no decorrer do conto o autor afirme se tratar de seqüelas causadas por meningite), que os torna criaturas letárgicas imersas em sua bestialidade. A infelicidade toma conta de marido e mulher, que passam a acusar-se mutuamente pela suposta genética maldita culpada pelo ocorrido. Entretanto, vem outra gravidez e agora o resultado é uma filha absolutamente “normal”. Imersos numa alegria ainda “maculada” pela persistência dos quatro “párias” na vida da família, o casal orienta todo seu amor à menina enquanto exclui o quanto pode suas crias anteriores. Certa ocasião, a empregada da família prepara uma galinha: o quarteto assiste a degola na cozinha com ávido interesse até ser tocado para fora. Mais tarde, como imitação natural da cena que presenciaram, eles reproduzem a degola usando agora sua irmã “perfeita” como vítima.

A narrativa possui incisão cirúrgica e ironia violenta: emergem temas como o determinismo (que aparece na sua forma hereditária, mas também, sarcasticamente, na ação assassina dos quatro irmãos) e a necessidade burguesa ocidental de perseverar seu ideal imaculado de vida familiar em sociedade – em outros termos: a hipocrisia da retórica moral que determina o “seio familiar” como base do convívio social.

Fotos: Cristiano Prim

A encenação, dirigida por Jefferson Bittencourt, cria fotografias no palco e, de repente, espasmos cênicos muito belos ao narrar o conto. A composição cênica amplia a percepção da história e ressalta justamente o aspecto metafórico da narrativa – e o faz porque não privilegia o indivíduo, mas sim a composição total do conto. Facilmente uma encenação teatral incorreria no “erro” de tornar a história um drama familiar particularizado, que restringiria o assunto a uma trágica situação específica de determinada família: porém o Persona Teatro e o Teatro em Trâmite escapam deste reducionismo e a dimensão metafórica (e social) fica evidente no trato épico que o grupo dá ao conto.

No entanto, a encenação elege um ponto de vista sobre a história contada: a narradora post-mortem é a menina assassinada. Porém, sua caracterização no espetáculo dá a impressão de que ela é algum signo de pureza e isenção, que pagou o preço da perfídia exclusiva dos pais: é uma moça linda, de vestido branco e que parece contar sua própria morte com uma compreensão SANTA dos fatos. Ou seja, ela, a “normal”, a “perfeita” que teve todo o amor do mundo resultou numa pequena santa inocente pagando o preço da exclusão premeditada dos pais. Assim, a encenação dá margens para o mesmo tipo de determinismo ironizado acidamente pelo autor no conto: a menina amada virou santa enquanto os idiotas excluídos da família tornaram-se monstros. De modo que a ênfase no espetáculo sublinha o amor familiar, ou a falta dele, como motor dos acontecimentos narrados (no site do Teatro Persona há na sinopse da peça, por exemplo, a seguinte sentença: “Passado certo tempo, nasce uma menina, que não é acometida pela mesma doença, mas que acaba revelando o verdadeiro sentido da falta de cuidado e amor do casal”)

E assim, a encenação sublinha justamente aquilo que Quiroga ironiza: a família. Um paradoxo. Pois se a culpa do ocorrido é a fria exclusão e o amor seletivo dos pais conclui-se, pela peça, que deveriam então fortalecer os laços familiares de maneira irrestrita, fomentar o amor na família etc. Posso estar completamente enganado, mas ao ler o conto de Quiroga penso que essa interpretação oferecida pela montagem teatral é justamente o oposto do que é debatido, e cirurgicamente ironizado, ali.

(Há uma tradução aqui: http://www.revistabula.com/posts/traducao/horacio-quiroga-a-galinha-degolada)

Foto: Éneas Lopes

Foto: Cristiano Prim

O espetáculo foi assistido gratuitamente dia 11 de setembro às 21h no Teatro Municipal de São José dos Campos como parte da programação do 25º Festivale

1917 é data de publicação original do conto

O que você acha?

A Bacante é Creative Commons. Alguns direitos reservados. Movida a Wordpress.