Aos Que Virão Depois de Nós – Kassandra in Process

Críticas   |       |    13 de agosto de 2007    |    5 comentários

Eles são peludos, mas não são fedidos

Foto: Divulgação

A Tribo de Atuadores Oi Nóis Aqui Traveiz completa, no ano que vem, trinta anos de existência sem nunca ter pisado num palco italiano. A proposta é outra, a linguagem é outra. Entre as características mais fortes estão o engajamento político-social, o envolvimento do público, tornando-o mais ativo e o trabalho autoral do ator. Aos Que Virão Depois de Nós – Kassandra in Process, por exemplo, é resultado de processo coletivo baseado em 13 autores diferentes, mas sem dramaturgo. (Fiquei curiosa pra saber o que o Bortolotto pensa sobre o tal “trabalho autoral do ator”, já que no blog ele desse a lenha em algumas produções do tipo).

Este grande pessoal sulista (são 18 atuadores) muito doido, peludo e estranho, está em São Paulo para 12 apresentações no Sesc Pompéia, trazendo todos seus “bahs” e “tris” para o Festival Palco Giratório Brasil 2007. Na matéria sobre o FIT de São José do Rio Preto, a Bacante publicou alguns boatos sobre eles, então era justo conferir a montagem agora que os jornalistas não estavam mais se estapeando para assistir a peça. Aliás, houve dias no FIT em que a fila de espera por desistências era maior do que a fila dos desistentes em potencial. Isso porque nesta montagem o público é muito reduzido para que todos possam vivenciar plenamente o espetáculo. Inicialmente, eram 30. Atualmente, são permitidas 40 pessoas por apresentação.

“A palavra morre diante da imagem”. Ao ouvirmos isso de Kassandra, personagem-título interpretada muito intensamente por Tânia Farias, é como se toda estrutura da narrativa se descortinasse. Concluímos, então, que o que se seguirá serão estímulos visuais autosuficientes e abundantes. Sim. Mas não só. Pelo menos até a metade da peça (o que não é pouco, já que a montagem tem três horas), a palavra realmente é relegada ao papel de coadjuvante, perdendo espaço não só para imagens, mas também – e muito – para cheiros (dizem que eles não usam desodorante, mas por incrível que pareça, eles são muito cheirosos!), sons, toques, sabores: uma experiência sensorial completa. Enfim, o tal Teatro de Vivência, ao qual o grupo se dedica paralelamente ao Teatro de Rua.

O investimento nos sentidos, especialmente a visão, fica evidente pela riqueza dos cenários – são pelo menos 7 espaços cênicos que, segundo nos contou um atuador cansadaço, demandaram 12 horas de trabalho diário durante dez dias para serem compostos. (Um pouco mais difícil, por exemplo, do que Aldeotas – peça em que um tapete é todo o cenário)

Os sons também estão, sem dúvida, entre os maiores destaques do espetáculo, comprovando a intensa pesquisa realizada. Com instrumentos exóticos, batuques e muito canto coral (sempre em outra língua), as músicas e “barulhos dão o tom de um ritual que nos remete às peças do Oficina, mas com menos gente pelada (não que não tenha gente nua em pêlo… e quantos pêlos!). Os significados contidos nestas músicas vão muito além do entendimento daquelas frases doidas que o público não pode traduzir. Nisso reside outra perda da palavra em seu significado restrito: ela não precisa ser entendida para que a mensagem seja compartilhada.

Ainda como parte da preparação de um ambiente muito próprio, não faltam recursos previsíveis, mas bem utilizados, como fogo, máscaras e um enorme cavalo de Tróia de metal (ok, talvez ele não precisasse ser tão grande…). Também não faltam recursos menos previsíveis, como o perfume que sentimos durante toda a peça – um cheiro que você vai ficar lembrando durante dias e depois vai ficar meio triste porque esqueceu como era. Ou, se você for mais enjoado, um cheiro que vai te causar ânsia e te obrigar a abandonar a peça depois de meia hora. Finalmente, não faltam, tampouco, recursos nem um pouco previsíveis (esquisitos, mesmo!), como o carneiro morto exposto em cena – que, aliás, causou grande polêmica no FIT.

Então, envoltos por estes perfumes, imagens, sons, escuros e silêncios, somos convencidos a deixar provisoriamente nossa realidade e, durante três horas, viver outra experiência, outra história. E lá vamos nós! Primeira e única parada: Tróia, em plena guerra por Helena. Não assistimos Tróia, estamos em Tróia. Vivendo medos, prazeres, sustos, dores. Sentindo uma mensagem antiga e atual sobre a falta de sentido das guerras, sobre a facilidade com que a violência se torna cíclica, sobre ética, integridade e coragem. Neste processo, se desconstroem os mitos dos grandes guerreiros e se desconstrói, sobretudo, o mito Helena, para que possamos entender que todo argumento é muito banal e insuficiente quando se trata de justificar morte e destruição.

Assim, o Ói Nóis fala da Tróia distante, mas fala também de nós. Usa a história de uma guerra que se tornou clichê, mas usa de tal modo que é como se a víssemos pela primeira vez. Então, não venham me falar que é difícil, por exemplo, encenar a ditadura brasileira porque o tema é muito batido e as pessoas já estão de saco cheio dele. As pessoas estão cansadas sim, mas é da forma pobre e viciada como ele é abordado. Como diz não me lembro quem, clichê é meramente uma questão de abordagem.

Acredito que mora aí o sentido político assumido pelo grupo: tirar as pessoas da passividade e, envolvendo-as em outro universo, lembrá-las de que estão vivendo erros que já foram vividos há séculos e talvez até despertá-las para agir. Trata-se de uma tentativa de desfazer o fosso entre passado e presente e usar a história como um espelho. Para se ter idéia desse tal engajamento sócio-político que o próprio grupo tanto enaltece, a oficina de formação de atores que acontece na Terreira da Tribo, espaço (alugado!) deles em Porto Alegre, inclui uma matéria tratando da história do pensamento político, porque acreditam que o ator precisa estar consciente do contexto em que está inserido e se propõem a realizar “um teatro que não comenta a vida, mas participa dela”.

Nessas horas, me lembro, com vergonha, de ter ouvido no Ciclo de Dramaturgia Avesso da Comédia, Comédia do Avesso, no Espaço Parlapatões (veja no post Discussão ou Disputa?), a Jandira Martini afirmar que somente a peça dela e a do Juca de Oliveira falam de política no Brasil, pois os outros têm medo. Jura? Será que política significa outra coisa no dicionário dela?

5 dias até o cheiro dos caras sair do seu nariz

'5 comentários para “Aos Que Virão Depois de Nós – Kassandra in Process”'
  1. Juli =) disse:

    É engraçado ser a primeira a comentar meu próprio texto. É só que quero acrescentar uma coisinha. Conversando com um dos atuadores do Ói Nóis no workshop que o grupo deu no Sesc, eu soube que nos 30 anos de existência o grupo só recebeu um prêmio por melhor direção, apesar de ter vencido diversas vezes como melhor espetáculo. Ok, pode ser que a direção não fosse boa o suficiente mesmo, mas fica a questão: será que dar o prêmio de melhor direção a um espetáculo cujo processo foi inteiramente coletivo é legitimar este formato e por isso os “julgadores” resistem tanto?
    É certo que até a mídia especializada está pouco habituada a processos assim, tanto é que muitos veículos tratam o Paulo (o atuador que tem mais cara de intelectual) como diretor. E ele não é! Mas parece que precisamos de um ícone. Enfim… é isso ae.

  2. Valmir Junior disse:

    Juli, morei no RS, assisti o ONAT e amei, assisti Brecht senão me falha a memória, e digo: todo mundo lá fala do mau cheiro deles. Por quê, hein? E como você ficou sabendo disso? Beijos!

  3. Juli =) disse:

    Vixi… a história do cheiro é engraçada… eu já fui pra peça com isso na cabeça, porque tinha uma super polêmica no FIT sobre o fato das meninas não se depilarem e deles não usarem desodorante… enfim. Aí, durante a peça você sente um tempo todo um cheiro super diferente. (Eu achei muito bom, a Leca quase passou mal… varia! rs)Até desconfiei que viesse do elenco, mas só tive certeza no workshop deles, perguntando pro Clélio, um atuador muito gente boa, que estava com aquele cheiro. E ele: “opa, me confundi e passei o perfume da peça pra vir no workshop!” rsss
    Agora quero ver a Missão, no PoA em Cena…

  4. Paulo V. Bio Toledo disse:

    Muito boa a crítica Juli!! (não deve fazer muito sentido comentar isso agora né?)
    Sabe que no encontro da São Jorge com eles, a Georgette virô pro Paulo e perguntou: “e como foi “amarrar” todo esse material, como foi teu processo de direção?” (achei bem engraçado, tendo em vista que ela é da São Jorge, que foi quem convidou o grupo (de 30 sem diretor!) para o evento – mas faltou estudá-los um pouco eheh)

    Só fiquei encucado com o caminho que me trouxe até essa crítica:
    1. Resolvi ler a crítica da Kassandra na Bacante.
    2. Digitei Kassandra no buscador do site
    3. Apareceu a crítica de Aqueles Dois (que assistimos juntos ontem!)… achei estranho…
    4. Mas Resolvi lê-la primeiro.
    5. Me deparo com a frase: “Era quase previsível que houvesse excessos na montagem final, como acontece em muitas outras que são feitas a muitas mãos” onde em MUITAS OUTRAS tem um link
    6. Curioso, cliquei no link
    7. E eis que:!
    8. A crítica da Kassandra!!

    Fantástico não?

  5. Juli =) disse:

    hahhahahahahahahaha. Fantástico! Tem coisas que só a busca da Bacante faz por você! rssss

    Lembra que te falei que escrevi antes de fazer a oficina com eles? Nem lembrava desse comentário que fiz em cima. Essa questão da direção poderia até ter sido o foco da crítica se eu tivesse feito a oficina antes. Acho que nesse ponto até prejudicou a reflexão que o texto traz. Por sorte, a gente sempre pode comentar, né?

    Beijo.
    Juli =)

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