Avenida Dropsie
Eu diria que…
MaurÃcio teria escrito que a trilha é foda.
FabrÃcio comentaria: “ah, se o Felipe fosse épicoâ€.
Outras pessoas citariam a projeção numa tela de tecido que lembrava um cinema.
Praticamente todo mundo se encantaria com a chuva que cai no palco e parece que nunca mais vai parar.
Alguém já deve ter elogiado a narração do Gianfrancesco Guarnieri.
À parte isso tudo, eu quero falar de outro tema – escancarado pelo Will Eisner e meio escondidinho na peça em meio a tantos efeitos: a habilidade das cidades de se construÃrem sobre si mesmas de maneira cÃclica.
A lógica das grandes cidades não dá margem a apegos – talvez por isso seja tamanho o estranhamento que causa em interioranos bobocas como eu. Da mesma maneira como não dá pra se apegar à s pessoas; já que você só convive com freqüência com alguém se você trabalha com esse alguém, estuda ou mora com ele, ou seja, relações absolutamente pragmáticas com vÃnculos difÃceis de manter; também não é permitido vÃnculo com os espaços.
MaurÃcio diria e disse: “à s vezes me pergunto se isso realmente é de qualquer cidade, ou se é muito forte em São Paulo especificamente. Qualquer paulista que vai pro Rio estranha a pretensa intimidade com que os cariocas abordam as pessoas, por exemplo. E o Rio é uma cidade grande. Todo mundo que conheço que vem pra SP, mesmo que vindo de outra cidade, sente isso que você tá falandoâ€
FabrÃcio diria e disse: “São paulo é a cidade do despertencimentoâ€
Primeiro porque, em geral, são muito pouco acolhedores, feitos para que passemos por eles rapidamente e cheguemos logo aos nossos locais de trabalho e produzamos muito e voltemos logo as nossas camas e durmamos muito para estarmos mais descansados no dia seguinte para produzirmos ainda mais.
MaurÃcio diria e disse: “mais uma vez, estamos falando muito de São Paulo. Vide Buenos Aires, por exemplo – não dá pra dizer que os espaços são de mera passagem: lá todos os cafés e restaurantes têm mesas na calçada, há praças por todo lado e as pessoas da cidade efetivamente usam esses espaços, para conversar, sentar, tomar sol, praticar exercÃcios, etc – e dizem que na Europa, inclusive nas grandes cidades, isso também acontece)
Depois, porque um prédio que hoje ocupa um quarteirão inteiro pode ter sido retirado dali amanhã pra dar lugar a um banco, um Minhocão ou um buraco de metrô – haja vista, neste caso, o EdifÃcio Santa Helena, derrubado na década de 1970 para dar lugar à Estação Sé do metrô (desembarque pelo lado esquerdo do trem), acompanhado do edifÃcio Mendes Caldeira, derrubado em 1975, na primeira implosão realizada na cidade. Estava aberta a temporada de construção sobre os resquÃcios de uma vila religiosa – sejam resquÃcios de tempos em que ainda havia matagal por todo lado, inclusive onde hoje só se vê cimento, sejam de perÃodos mais recentes, como é o caso da famosa-quase-lenda-urbana sobre a demolição de uma das mansões dos Matarazzo na Av. Paulista: proibiram o cara de derrubar a mansão e… – gente, que estranho! – … a casa desmoronou sozinha na noite seguinte!
Assim, de noite na surdina ou em grandes eventos de implosão, foram/fomos destruindo um pouco a identidade de São Paulo e, sobretudo, a dos paulistanos. Quando o FabrÃcio fala em “despertencimentoâ€, eu entendo que estamos falando também de uma crise muito séria de identidade que, sim, é um problema moderno comum e complexo, mas que tem como um de seus fatores a maneira como lidamos com o nosso passado e o que mantemos ou não dele – sejam valores abstratos, sejam tijolos.
Portanto, ao meu ver, quando Will Eisner fala da solidão da vida na cidade, do isolamento, das desigualdades, das crueldades, dos grupos criados para defenderem-se de outros grupos e dos detalhes do cotidiano, ele está falando o tempo todo da arquitetura que abriga e simboliza esse caos urbano de um planejamento apressado, ansioso, progressista, assustador. Mas, também, não posso deixar de notar que está celebrando uma capacidade humana de adaptação e de amor – no sentido mais universal da coisa – que ainda é capaz de gerar episódios de encanto em meio à s ruÃnas.
77 pessoas saÃram dali e andaram até o metrô evitando os olhos umas das outras
MaurÃcio ainda diria e disse: “eu complementaria com uma questão que pra mim é essencial: a peça retrata muito pouco (ou quase nada) o elemento mais terrÃvel quando falamos de transformação urbana… uma cidade não se transforma sozinha, há vetores de aceleração desses processos, e um dos vetores mais cruéis é o da especulação imobiliária, que é basicamente gerido pela iniciativa privada capitalista, que não está nem aà para o aspecto social ou urbanÃstico, somada à ineficiência (ou incompetência, ou promiscuidade) do estado. Além disso, tem a própria sociedade civil que abre mão de aspectos coletivos para ganhar sua fatia do bolo da especulação. Nos quadrinhos do Eisner tem um exemplo muito legal, que o FabrÃcio citou inclusive quando rolou o incêndio do Cultura ArtÃstica: com a desvalorização repentina dos imóveis, os proprietários incendiavam o apartamento para pegar o dinheiro do seguro (pois as apólices não cobriam a desvalorização do imóvel). Do jeito que a peça mostra, parece que os prédios ficam velhos porque o tempo passa, mas o tempo pode ser o vetor menos importante se houver uma consciência maior sobre a identidade local, ou ainda o fator mais importante para estimular a preservação, no lugar da mutação.
FabrÃcio ainda diria e disse: “Ainda acho que o Hirsch faz uma peça genial, e corta o que há de mais relevante da reflexão do Eisner: o movimento cÃclico. Ele mostra recortes, quando (primeira vez que me vejo pedindo isso) tinha que haver “começo, meio e fim que reconecta com o começo”. Pensar em São Paulo por meio da peça do Hirsch é uma escolha que pode ser feita também com qualquer outra cidade grande. Repasse as cenas na cabeça e você vai ver.â€
nossa, lugar.
Adoro quando ouço/leio/vejo/escuto/sequestro
esse “signo” se metamorfoseando em outro,
em outros.
Fico pensando em João Pessoa.
Aqui – dizem as campanhas de marketing turÃstico – somos a terceira cidade mais velha do paÃs, mas pra quê isso? O Centro Histórico está ruÃndo, está ao abandono. A cidade emigrou, saiu. João Pessoa é uma das raras cidades que começou à s margens de um rio e não de um mar (isso é o que dizerm os mais antigos), agora faz o movimento inverso em direção à praia…
Eu vim de uma cidade de interior (que não quer ser interior nem fodendo…) cujo patrimônio histórico, os prédios Art Decó foram construidos nos anos 1940/1950 por cima da cidade velha… quase não há memória urbanÃstica lá.
Enfim… “lugar”, “lugares”…
Não vi a peça do Hirsh ( gosteis dos jogos de intratextualidade aà da crÃtica), mas tá na mira preu ver.
E que bom que vc voltou a escrever, menina. Tava com saudade. O recado vai também pra Leca.
Caramba, só tem cueca escrevendo pra Bacante nos últimos tempos, nossa.
Quando assisti Avenida Dropsie, estava no meio da faculdade de arquitetura, desiludido com o urbanismo e todas as teorias que organizavam o mundo através do desenho urbano. No meio de piruetas cenotécnias o Hirsch abriu pra mim possibilidades de discussão que na época, entre tantas teorias que iam de Le Corbu a Jane Jacobs, pareciam presas somente à s aulas de sociologia da cultura urbana (e que não passava de uma disciplina pra preencher currÃculo)
Vai ver que por isso um antigo professor, que assistiu a peça depois de minha indicação, odiou o que viu, e disse que as coisas não funcionavam daquela maneira, e ali era tudo feito pra nos emocionar e mostrar o quanto somos seres infelizes e solitários (e dá-lhe mais pessoas a acreditar que o desenho urbano é a única coisa capaz de transformar o mundo).
Ah Julie, vamos montar um escritório de arquitetura juntos? Mas por favor, não vale comer terra.
Oi, Astier.
O exemplo de João Pessoa é bem bacana pra se pensar, porque quando a preservação do patrimônio se confunde com turismo de exploração também não serve muito, pelo menos não naquele sentido de reforçar a identidade e a idéia de pertencimento e responsabilidade pelo”lugar”.
Penso também no caso do Recife, pois achei o Recife Antigo um bom exemplo de que um lugar que preserva os prédios antigos não precisa ser feio, escuro, caidão e ter a cara da casa da FamÃlia Adams.
Eita, Emilli. As pessoas deixam as coisas meio simplistas, né? A gente tb, muitas e muitas vezes. A gente quer uma solução única que sirva pra tudo, tipo milagre, Tiradentes, JC… Esse caso do desenho urbano é drama Tostines, não? A gente vive nesse caos porque a cidade é mal planjeada ou a gente planejou mal a cidade porque vivia em meio ao caos desde o princÃpio? Ou ambos, se intensificando e complementando todo o tempo?
Sim, vamos montar o escritório! Mas só com arquiteto-palhaço. E, não se preocupe, a gente pode chamar a Dani pra comer terra pra gente!!! rs
Bjos,
Juli =)