Avenida Dropsie

Críticas   |       |    18 de maio de 2009    |    3 comentários

Eu diria que…

Maurício teria escrito que a trilha é foda.

Fabrício comentaria: “ah, se o Felipe fosse épico”.

Outras pessoas citariam a projeção numa tela de tecido que lembrava um cinema.

Praticamente todo mundo se encantaria com a chuva que cai no palco e parece que nunca mais vai parar.

Alguém já deve ter elogiado a narração do Gianfrancesco Guarnieri.

À parte isso tudo, eu quero falar de outro tema – escancarado pelo Will Eisner e meio escondidinho na peça em meio a tantos efeitos: a habilidade das cidades de se construírem sobre si mesmas de maneira cíclica.

A lógica das grandes cidades não dá margem a apegos – talvez por isso seja tamanho o estranhamento que causa em interioranos bobocas como eu. Da mesma maneira como não dá pra se apegar às pessoas; já que você só convive com freqüência com alguém se você trabalha com esse alguém, estuda ou mora com ele, ou seja, relações absolutamente pragmáticas com vínculos difíceis de manter; também não é permitido vínculo com os espaços.

Maurício diria e disse: “às vezes me pergunto se isso realmente é de qualquer cidade, ou se é muito forte em São Paulo especificamente. Qualquer paulista que vai pro Rio estranha a pretensa intimidade com que os cariocas abordam as pessoas, por exemplo. E o Rio é uma cidade grande. Todo mundo que conheço que vem pra SP, mesmo que vindo de outra cidade, sente isso que você tá falando”

Fabrício diria e disse: “São paulo é a cidade do despertencimento”

Primeiro porque, em geral, são muito pouco acolhedores, feitos para que passemos por eles rapidamente e cheguemos logo aos nossos locais de trabalho e produzamos muito e voltemos logo as nossas camas e durmamos muito para estarmos mais descansados no dia seguinte para produzirmos ainda mais.

Maurício diria e disse: “mais uma vez, estamos falando muito de São Paulo. Vide Buenos Aires, por exemplo – não dá pra dizer que os espaços são de mera passagem: lá todos os cafés e restaurantes têm mesas na calçada, há praças por todo lado e as pessoas da cidade efetivamente usam esses espaços, para conversar, sentar, tomar sol, praticar exercícios, etc – e dizem que na Europa, inclusive nas grandes cidades, isso também acontece)

Depois, porque um prédio que hoje ocupa um quarteirão inteiro pode ter sido retirado dali amanhã pra dar lugar a um banco, um Minhocão ou um buraco de metrô – haja vista, neste caso, o Edifício Santa Helena, derrubado na década de 1970 para dar lugar à Estação Sé do metrô (desembarque pelo lado esquerdo do trem), acompanhado do edifício  Mendes Caldeira, derrubado em 1975, na primeira implosão realizada na cidade. Estava aberta a temporada de construção sobre os resquícios de uma vila religiosa – sejam resquícios de tempos em que ainda havia matagal por todo lado, inclusive onde hoje só se vê cimento, sejam de períodos mais recentes, como é o caso da famosa-quase-lenda-urbana sobre a demolição de uma das mansões dos Matarazzo na Av. Paulista: proibiram o cara de derrubar a mansão e… – gente, que estranho! – … a casa desmoronou sozinha na noite seguinte!

Assim, de noite na surdina ou em grandes eventos de implosão, foram/fomos destruindo um pouco a identidade de São Paulo e, sobretudo, a dos paulistanos. Quando o Fabrício fala em “despertencimento”, eu entendo que estamos falando também de uma crise muito séria de identidade que, sim, é um problema moderno comum e complexo, mas que tem como um de seus fatores a maneira como lidamos com o nosso passado e o que mantemos ou não dele – sejam valores abstratos, sejam tijolos.

Portanto, ao meu ver, quando Will Eisner fala da solidão da vida na cidade, do isolamento, das desigualdades, das crueldades, dos grupos criados para defenderem-se de outros grupos e dos detalhes do cotidiano, ele está falando o tempo todo da arquitetura que abriga e simboliza esse caos urbano de um planejamento apressado, ansioso, progressista, assustador. Mas, também, não posso deixar de notar que está celebrando uma capacidade humana de adaptação e de amor – no sentido mais universal da coisa – que ainda é capaz de gerar episódios de encanto em meio às ruínas.

77 pessoas saíram dali e andaram até o metrô evitando os olhos umas das outras

Maurício ainda diria e disse: “eu complementaria com uma questão que pra mim é essencial: a peça retrata muito pouco (ou quase nada) o elemento mais terrível quando falamos de transformação urbana… uma cidade não se transforma sozinha, há vetores de aceleração desses processos, e um dos vetores mais cruéis é o da especulação imobiliária, que é basicamente gerido pela iniciativa privada capitalista, que não está nem aí para o aspecto social ou urbanístico, somada à ineficiência (ou incompetência, ou promiscuidade) do estado. Além disso, tem a própria sociedade civil que abre mão de aspectos coletivos para ganhar sua fatia do bolo da especulação. Nos quadrinhos do Eisner tem um exemplo muito legal, que o Fabrício citou inclusive quando rolou o incêndio do Cultura Artística: com a desvalorização repentina dos imóveis, os proprietários incendiavam o apartamento para pegar o dinheiro do seguro (pois as apólices não cobriam a desvalorização do imóvel). Do jeito que a peça mostra, parece que os prédios ficam velhos porque o tempo passa, mas o tempo pode ser o vetor menos importante se houver uma consciência maior sobre a identidade local, ou ainda o fator mais importante para estimular a preservação, no lugar da mutação.

Fabrício ainda diria e disse: “Ainda acho que o Hirsch faz uma peça genial, e corta o que há de mais relevante da reflexão do Eisner: o movimento cíclico. Ele mostra recortes, quando (primeira vez que me vejo pedindo isso) tinha que haver “começo, meio e fim que reconecta com o começo”. Pensar em São Paulo por meio da peça do Hirsch é uma escolha que pode ser feita também com qualquer outra cidade grande. Repasse as cenas na cabeça e você vai ver.”

'3 comentários para “Avenida Dropsie”'
  1. Astier Basílio disse:

    nossa, lugar.
    Adoro quando ouço/leio/vejo/escuto/sequestro
    esse “signo” se metamorfoseando em outro,
    em outros.
    Fico pensando em João Pessoa.
    Aqui – dizem as campanhas de marketing turístico – somos a terceira cidade mais velha do país, mas pra quê isso? O Centro Histórico está ruíndo, está ao abandono. A cidade emigrou, saiu. João Pessoa é uma das raras cidades que começou às margens de um rio e não de um mar (isso é o que dizerm os mais antigos), agora faz o movimento inverso em direção à praia…
    Eu vim de uma cidade de interior (que não quer ser interior nem fodendo…) cujo patrimônio histórico, os prédios Art Decó foram construidos nos anos 1940/1950 por cima da cidade velha… quase não há memória urbanística lá.
    Enfim… “lugar”, “lugares”…
    Não vi a peça do Hirsh ( gosteis dos jogos de intratextualidade aí da crítica), mas tá na mira preu ver.
    E que bom que vc voltou a escrever, menina. Tava com saudade. O recado vai também pra Leca.
    Caramba, só tem cueca escrevendo pra Bacante nos últimos tempos, nossa.

  2. Quando assisti Avenida Dropsie, estava no meio da faculdade de arquitetura, desiludido com o urbanismo e todas as teorias que organizavam o mundo através do desenho urbano. No meio de piruetas cenotécnias o Hirsch abriu pra mim possibilidades de discussão que na época, entre tantas teorias que iam de Le Corbu a Jane Jacobs, pareciam presas somente às aulas de sociologia da cultura urbana (e que não passava de uma disciplina pra preencher currículo)
    Vai ver que por isso um antigo professor, que assistiu a peça depois de minha indicação, odiou o que viu, e disse que as coisas não funcionavam daquela maneira, e ali era tudo feito pra nos emocionar e mostrar o quanto somos seres infelizes e solitários (e dá-lhe mais pessoas a acreditar que o desenho urbano é a única coisa capaz de transformar o mundo).
    Ah Julie, vamos montar um escritório de arquitetura juntos? Mas por favor, não vale comer terra.

  3. Oi, Astier.
    O exemplo de João Pessoa é bem bacana pra se pensar, porque quando a preservação do patrimônio se confunde com turismo de exploração também não serve muito, pelo menos não naquele sentido de reforçar a identidade e a idéia de pertencimento e responsabilidade pelo”lugar”.
    Penso também no caso do Recife, pois achei o Recife Antigo um bom exemplo de que um lugar que preserva os prédios antigos não precisa ser feio, escuro, caidão e ter a cara da casa da Família Adams.

    Eita, Emilli. As pessoas deixam as coisas meio simplistas, né? A gente tb, muitas e muitas vezes. A gente quer uma solução única que sirva pra tudo, tipo milagre, Tiradentes, JC… Esse caso do desenho urbano é drama Tostines, não? A gente vive nesse caos porque a cidade é mal planjeada ou a gente planejou mal a cidade porque vivia em meio ao caos desde o princípio? Ou ambos, se intensificando e complementando todo o tempo?

    Sim, vamos montar o escritório! Mas só com arquiteto-palhaço. E, não se preocupe, a gente pode chamar a Dani pra comer terra pra gente!!! rs

    Bjos,
    Juli =)

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