Se eu fosse eu

Críticas   |       |    2 de julho de 2007    |    8 comentários

Um monte de mensagens, nenhuma história

foto: Melina Borba

Quem está acostumado com as peças do Bibi Ferreira teria um choque ao entrar no Next para assistir Se eu fosse eu. Por diversas razões, claro, mas, sobretudo, pelo cenário minimalista, pequeno e despretensioso. Tão diferente do didatismo cansado que se expõe no teatrão, em que sofá tem que ser sofá, cortina tem que ser cortina e mar… bem, mar não dá pra ser mar, né?

No total, quatro elementos cênicos. Contando o giz, que se desmancha em desenhos e, por conseguinte, em infinitos signos. Uma representação simples e, por isso mesmo, muito intensa. Os atores da Companhia Simples de Teatro trabalham o encontro como tema central desta criação. E se o teatro também é encontro, nada mais propício.

A base da peça é o livro de Clarice Lispector, Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, e só aí, na referência escolhida, já está dito que não se pode produzir nada linear, nem óbvio. Atente bem, pois isso é um aviso: não procure uma história. Não procure uma fábula com mocinhas e vilãs. Não procure uma linha narrativa. Não porque eles não tenham nada a contar, mas porque eles têm muito a contar.

A história escrita por Clarice é a de uma mulher que inicia um complicado processo de autoconhecimento. Até porque autoconhecimento é sempre um negócio complicado. Todas as etapas esquisitas e todas as relações com os nossos dias e as nossas posturas bizarras são expostas pelo grupo em falas fortes e repetições que exploram, ainda, outra característica de Clarice: o brincar com as palavras.

Entender que a palavra EU pode virar um latido e que atores podem virar cachorros até que os joelhos doam pode ajudar a entender uma porção de coisas sobre auto-afirmação, egoísmo e sobre a importância da relação com o outro na composição de um eu. Tal relação, tal outro, tal encontro é o fim do caminho, segundo Clarice e segundo a peça, e pode durar um instante. Um simples e rápido instante. O grupo mostra, ainda, que encontros podem acontecer de diversas formas, em diversos níveis e que a singularidade do eu que vai encontrar o outro está presente em cada detalhe deste eu, nas veias, nas cicatrizes, nos fios de cabelo…

Com uma base tão complexa e cheia de sentidos, vale chamar os expectadores pra uma festa de Ano Novo, vale correr, latir, tomar banho de bacia, desenhar com giz no chão. Vale tudo isso para mostrar que os encontros são como rios, fluindo e desaguando em outros rios, e que o contato humano é também um fluxo, essencial em qualquer momento e circunstância. Neste contexto meio místico, é possível entender que o mar cabe em uma bacia e que um grande encontro cabe em um pequeno instante.

Não tem história, não tem beijo, não tem gente pelada, nem diálogos longos. Sobra, no entanto, disponibilidade, criatividade e fé. Dá pra ouvir, em cada fala, a fé nos significados compartilhados. Um trabalho de entrega e confiança no próprio taco, pois sem sofá que é sofá, cortina que é cortina, cristaleira que é cristaleira, o que resta é trabalho de ator e vontade. Neste caso, uma vontade tão intensa que supera as piscadinhas chatas da iluminação. Segundo o iluminador, isso só acontece de domingo e vai ser arrumado logo. Pra garantir, vá aos sábados.

3 círculos de giz

'8 comentários para “Se eu fosse eu”'
  1. Emilliano Freitas disse:

    Ah, me deu vontade de ver uma foto do espetáculo!

  2. Juli =) disse:

    Atendendo aos pedidos do Emiliano: uma foto!

    Beijos.
    Juli =)

  3. Emilliano Freitas disse:

    ah valew! Boa foto!

  4. G. Tomé disse:

    Se eu fosse eu é, com certeza, a melhor peça de teatro que já vi. Abrangendo tudo mesmo. Ri, chorei..saí de lá meio baqueado e pensando várias coisas. Uma delas foi: Essa é a melhor peça que já vi.

  5. Juli =) disse:

    Que doido, Tomé. São muitas sensações mesmo… Esses dias, andei estudando umas coisas meio doidas e encontrei ainda mais sentidos nesta peça. Acho que ainda ficarei um bom tempo pensando nela…

  6. Anonymous disse:

    sou o anônimo da baixada, essa é uma peça que podemos dizer que une pesquisa, simplicidade e que “chega nas pessoas”…chega de tanto hermetismo!!!!

  7. Anonymous disse:

    Concordo com tudo, Anônimo da Baixada.
    Chega nas pessoas mesmo. Inclusive literalmente.

    A Bacante agradece a vinda da caravana da Baixada.

  8. edson fernando disse:

    um trabalho muito criativo.Nos faz refletir no que realmente somos e o que queremos

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