Aqueles dois

Críticas   |       |    7 de abril de 2009    |    9 comentários

Aqueles quatro

Fotos: Luzz Agência de Fotos

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– Nos vimos de tarde e agora à noite!

Assim fui recebido por um ator durante o aquecimento, enquanto sentava na cadeira do teatro para assistir Aqueles dois. Tinha encontrado com o elenco horas antes nos corredores de uma emissora de televisão e trocado não mais que meia dúzia de palavras com um dos integrantes do Luna Lunera. Reconheceu-me e carinhosamente tentava estabelecer uma relação com o público que se acomodava, para que assim entrássemos em seu universo durante uma hora e vinte e poucos minutos (ou será que sabia que o doce palhaço era um crítico mau da Bacante e já estava a fim de fazer uma moral?).

Confesso que morria de medo do que viria, visto que com o tamanho da expectativa qualquer deslize que pudesse vir a ocorrer seria uma desculpa pra começar um debate com todo mundo que me ultra-recomendou o espetáculo. De cara, mesmo com toda a afetividade do Odilon ao me cumprimentar, já quis torcer o nariz porque os atores aqueciam enquanto o público entrava, e os sinais que davam antes do espetáculo eram uma confusão de letras de músicas, cartas e horóscopo, ditos num microfone. Será que todas essas coisinhas típicas da modinha iam acabar com minha noite, numa lenga-lenga virtuosística de “olhem como nós somos legais e contemporâneos”? Será que eu veria um Caio Fernando Abreu intitulado pelo Mirisola como “leitura pras bichinhas esotéricas“? O horóscopo falava que os librianos precisavam fazer perguntas e conferir as respostas e eu, um libriano, não estava a fim de perguntar nada. Lembrei do conto do Caio que dá nome ao espetáculo, e fiquei com muita vergonha da hipótese de estar encarnando um dos funcionários da repartição que só fazem por julgar os outros apenas pelo simples prazer de estragar os seus dias. Engoli seco o meu preconceitinho besta e confiei na opinião dos amigos.

O que se vê em cena é o conto praticamente na íntegra. Então ótimo, eu poderia dizer pra você pegar o livro “Morangos Mofados” em uma biblioteca pública, ler o texto que originou a peça (aproveite pra ler outros também porque é um dos melhores livros do cara) e não gastar grana com o ingresso, evitando o trânsito, filas e futuros desgastes? Não, essa seria uma péssima hipótese. Até porque a graça da coisa não está necessariamente na história (sem desmerecer o Caio, portanto saia do orkut e vá ler um livro), mas em como ela é contada, e a dimensão que as relações preestabelecidas no papel ganham quando colocadas em cena. Pra isso os atores-diretores-dramaturgos enfiaram também impressões pessoais, cartas do autor, músicas e outros elementos (inclusive alguns justificados com um: “ta ali porque a gente gosta”, durante um bate-papo que ocorreu um dia após a primeira apresentação em Uberlândia), que como o chocolate granulado do brigadeiro, além de enfeitar, deixa o trenzinho mais doce.

Nos primeiros momentos vemos uma repartição e a emoção que deve ser trabalhar lá – carimbando papéis, datilografando documentos, atendendo telefones, tomando café e tomando café, apresentando Raul e Saul, dois homens que se sentem obrigados a trabalhar ali apenas porque precisam. É assim vago mesmo, ou se você não precisasse ficar aí nesse seu emprego ordinário de oito horas diárias, você trabalharia só porque ama o doce ambiente da labuta diária?

Imagino que todos devam arrumar alguma coisa pra deixar o trabalho menos chato. Raul e Saul, os personagens do drama, descobrem que tem em comum o gosto por cinema e suas conversas no café sobre Infâmia, Conta Comigo e Almodóvar acabam revelando que as coincidências de gostos, sentimentos e anseios vão além dos filmes. Diariamente, eu também aproveito que minha companheira de trabalho (é, por incrível que pareça a gente trabalha) é apaixonada por música e ouvimos sem parar infinitos discos (e conseqüentemente também dividimos anseios e desejos) para que as horas na frente do computador possam se tornar menos chatas. Só que diferente dos caras da peça, temos pais, amigos, amores e confusões. Um só tem um sabiá e uma coleção de discos. O outro uma televisão com imagens fantasmas e uma réplica de Van Gogh.

Inúmeras referências vão surgindo no quadradinho amarelado em uma encenação cheia de detalhes. O enredo vai e vem, aparecem desenhos do Niemeyer, atores falam juntos, a xícara é guardada dentro de uma gaveta, cartas são jogadas, a Ângela Ro Ro canta Amor meu grande amor, copos de conhaque são devorados, rostos com olhos enormes fundos aparecem em papéis brancos, os atores repetem sem cansar llegaste a mí como una tentación llenando de inquietud mi corazón. Provocam risos, relembram cenas de filmes, e na platéia alguns balbuciam “tá na cara dá pra ver no seu olhar, tô fazendo muita falta pra você” junto com o ator que ridiculamente tenta ser a Joana da nova geração.

Lembro de um certo autor falando da importância de se ter a percepção aberta para absorver o que está suspenso durante as cenas e quando as ligações se estabelecerem entre o não-significado imediato dos signos, tudo se mostrar claro. E meu nariz se desentorta porque apesar da aparente busca de traços estilísticos repetidos incessantemente por aí, eles não estão interessados em discutir o uso do contato improvisação numa nova bláblábláblá e não sei o quê, mas aproveitam dos recursos técnicos para estabelecerem uma relação de afeto entre atores e público, atores e atores, público e público, atores e autor. E o único abraço que Raul e Saul dão é tão forte que torcemos para que fiquem ali por pelo menos uns 15 minutos.

bate-papo

РVoc̻ de novo?

Foi assim que fui recebido pelo Odilon na segunda vez que fui assistir à peça. Vi primeiro numa sexta, participei de um bate-papo com o grupo no sábado, e precisava organizar minhas idéias no domingo. No bate-papo eu não conseguia entender porque todo mundo falava que a peça era simples. Eu precisava achar alguma resposta pra mim mesmo, que o espetáculo tinha tudo, menos simplicidade. Durante os aplausos percebi que apesar de tudo ser complexo, o resultado é tão redondo que dá a entender que é simples. Puro ilusionismo, típico do povo que come quietinho.

27 xícaras de café

9 doses de conhaque

4 taças de vinho

P.S.: Entre cervejas e conversas na sexta-feira à noite, uma amiga me disse que achava às vezes um pouco ultrapassado essa onda de preconceito, que não existe mais isso de coisas de menino e coisas de menina, vivemos na contemporaneidade e não sei o que mais. Deparo-me então com uma menina linda e loira na televisão a repetir a mesma coisa que os colegas de repartição fizeram com Raul e Saul, julgando suas atitudes superficialmente, apenas pelo que a sociedade acha “normal”. Seria assim a história tão datada como parece?

Confira também a crítica do Fabrício Muriana e a entrevista com a Cia. Luna Lunera.

'9 comentários para “Aqueles dois”'
  1. Douglas disse:

    Olá, gostei muito da crítica, vi a peça no sábado e gostei muito, realmente de simples não tem nada, e ao mesmo tempo é simples, mas não é nada simples, será que deu pra entender?? grande abraço Emiliano, mandou bem meu irmão.

  2. Vanessa disse:

    Tú Me Acostumbraste …………

  3. Paulo luis disse:

    ótima critica…
    onde eles estão em cartaz?
    vc não disse…
    abraço

  4. Mairla Melo disse:

    Ficou ótima Emilis….
    Deu pra relembrar a peça, que é maravilhosa…
    beijos…

  5. Aeh Douglas Luzz! Tem coisas que não precisa formatar que a gente acaba entendendo!

    Vanessa:… A todas esas cosas, Y tú me enseñaste…. (agora alguém completa com outro verso e a gente cria um jogo nos comentários)

    Paulo eles estiveram em cartaz bem rapidão em um final de semana de março em Uberlândia, em comemoração ao dia do Teatro. Sei que estão correndo pelo país e já fizeram temporada nas principais cidades.

    Beijo Mairla! Vc é ótima (hum… hum…)!

  6. Vanessa disse:

    ciceroniando, né. Massa.

  7. André Luís disse:

    assisti e adorei…
    quando começaram pensei,
    ih lá vem o tipo quito
    mas não é que eles são bons!
    eu gostei, simples, e eficiente…
    tipo a gente mesmo que fez e foda-se…
    interessantíssimo…

  8. […] Dois – Luna Lunera (Belo Horizonte – MG) (E esse ainda tem  mais uma crítica e mais uma e uma […]

  9. Mau Alcântara disse:

    Aí eu entro aqui 2 anos depois, pra indicar esse link pra um amigo, e deparo com:

    “ih lá vem o tipo quito”

    hahahahahaha

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