Big in Bombay
You contemporary bitches!
[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=HwMvXuSZ5Mw]
Sala de espera é sempre um saco. Quando a gente não tem que folhear as revistas de fofoca e ficar sabendo qual tom pastel tal ator usou em sua varanda ou a Veja São Paulo de 4 anos atrás (confesso que até gosto de ver quais eram os filmes e peças que estavam em cartaz na época), é invariavelmente obrigado a ouvir Kenny G ou ter de agüentar o papo de alguma pessoa na sala (que invariavelmente é chata).Quando a sala de espera é a de uma espécie de agência de talentos, a coisa muda um pouco. As pessoas não estão lá pra mostrar as perebas pra ninguém, tampouco sair falando fofo por causa da anestesia: elas estão lá pra mostrar o que elas sabem fazer de melhor – ou ao menos o que acham que sabem. O medo do motorzinho se transforma em uma espécie de stage fright, o papo com o chato ao lado se mescla com uma competitividade que nem sempre é saudável – aliás, quase sempre não é. Afinal quem está lá pra mostrar o que faz de bom não vai querer que ninguém seja melhor, não é mesmo?É uma sala de espera como essa que vemos em Big in Bombay. Metade do palco é ocupada por uma enorme caixa de acrÃlico com algumas cadeiras. Todos olham para a porta ansiosos, e não demonstram saber exatamente o que acontece do outro lado, mas esperam ansiosamente por sua vez para entrar e, quem sabe, brilhar. Alguns se aquecem, outros ensaiam qualquer coisa, outros dançam. Uma mulher conta como as ondas eletromagnéticas emitidas pela geladeira interferiam em sua relação com seu gato.
Pouco a pouco, um a um vai tendo sua chance de aparecer. E a outra metade do palco se preenche de danças, performances e, claro, pitis, fricotes e crises – porque a gente bem sabe que artista também é cheio dessas coisas. Todo mundo quer ser grande, todo mundo quer ser uma estrela, daà o “Big” do tÃtulo. Mas é no “Bombay” que está o elemento mais rico (e divertido) desta produção. Tudo é construÃdo inspirado na poderosa indústria sediada em Mumbai, a mais populosa cidade da Ãndia: Bollywood.
Vemos em cena muitas dancinhas estranhas, com figurinos coloridos e coreografias que parecem ter a pretensão de imitar toscamente aquilo que vemos nos videoclipes da MTV ou ainda que aplaudimos no palco do Teatro Abril. Tudo, porém, muito bem executado, a ponto de não termos nem sombra de dúvida da capacidade asurda daqueles bailarinos. É a estética do “song and dance”, obrigatório em todo bom filme bollywoodiano, em que as cantorias e as dancinhas são tão importantes quanto o próprio roteiro (senão mais importantes). A diferença entre estes filmes milionários (sim, a indústria de filmes comerciais indianos é milionária, e o resultado é visto por audiências ainda maiores do que grande parte dos filmes do primo rico, Hollywood) e o que vemos na Broadway é que lá existe uma preocupação de se misturar o “videoclipismo” com as danças e tradições locais. O resultado, em 99,9% dos casos, é uma salada.
Mas no espetáculo não há referência maior da mistura da cultura estadunidense com a realidade indiana do que a presença de Mickey Mouse e todos os personagens da Disney. Os parques de Orlando são citados em diversos momentos, e apontados entre os maiores sÃmbolos da indústria cultural americana (calma, eu não vou citar a turma da Escolinha de Frankfurt). Em um diálogo, um personagem levanta a hipótese de que caso aconteça um desastre nuclear, só sobreviveriam os funcionários protegidos pelos corredores subterrâneos – que são a base da logÃstica dos parques da Flórida. E Mickeys, Minnies, Plutos e Patetas seriam os responsáveis por repovoar o planeta. Será essa teoria da difusão da cultura do Pato Donald um exagero? Eu acho que não, e a maior prova é o inocente e polêmico Farfur, rato muçulmano que deu o que falar no mundo todo (Descanse em paz, Farfur!).
São estas questões de identidade cultural e legitimidade artÃstica que conduzem todo este espetáculo caótico (no melhor dos sentidos). Lembrando que além do teatro, há aqui uma grande porcentagem de dança contemporânea, logo, é normal (e esperado) que as simbologias e as imagens acabem dizendo muito mais do que os textos e músicas. A dança do rapaz sem braço, a mulher que arremessa carrinhos de bebê, o homem vestido de urso, a moça tomando banho de corn flakes e a grande guerra que se trava na sala de espera – com direito a ventilador gigante e chuva – são imagens difÃceis de se esquecer. Mais que isso, há momentos que é tanta coisa ao mesmo tempo que o espectador ganha um papel mais ativo do que simplesmente assistir – ele precisa escolher o que ele quer ver. Piração ali é o que não falta, e essa overdose de situações e imagens absurdas, somada à música ao vivo muitÃssimo bem conduzida e à iluminação que sabe brincar com formas, cores e sombras, traz um panorama bastante peculiar ao mundo pós-moderno e consumidor assÃduo de culturas sobreviventes do grande ataque nuclear que é a globalização – aliás, a própria companhia Dork Park é altamente globalizada, com artistas do mundo todo – no espetáculo mesmo há gente falando em inglês, alemão, árabe, espanhol e até – vejam só – português.
São poucas as ressalvas a serem feitas – e eu já as havia levantado na primeira vez que assisti, lá em Porto Alegre. A primeira é o uso do vÃdeo, que apesar de trazer imagens ótimas, radicaliza pouco em linguagem. Até há uma tentativa de brincar, através de câmeras e microfones, com o que é visto/ouvido dentro da sala (ou do lado de lá da porta), mas isso não se concretiza como uma proposta do espetáculo. O segundo ponto que incomoda um pouco é a duração: assim como os filmes de Bollywood, o espetáculo tem quase três horas de maluquices. Chega um momento em que as danças já não empolgam tanto como no inÃcio, e a impressão é que de determinado momento em diante não haverá mais nada que nos surpreenderá – apesar do final ser apoteótico. Na verdade, estas ressalvas são mÃnimas, mas tão mÃnimas, que acabam fazendo pouquÃssima diferença com relação ao resultado final.
Em determinado momento, um dos personagens mais marcantes – o coreógrafo perfeccionista e afetado que nunca está satisfeito com o trabalho de seus bailarinos – diz, referindo-se ao desapego que a dança contemporânea tem da linguagem clássica e formal, que está cansado de ver gente se sacudindo como loucas no palco. Pois é. Apesar do espetáculo ser um pouco cansativo, eu não estou nada cansado de ver loucuras ricas e empolgantes como este espetáculo no palco. A vontade é de sair dançando do teatro, de preferência com uma roupa de mariacchi ou até mesmo com uma sacola na cabeça.
4 Mickey Mouses usando turbantes
Fotos do espetáculo? Sim, eu tirei algumas em Porto Alegre. Confira.
O que você acha?