Café com Torradas e Francisco Pés Após Pés

Críticas   |       |    27 de agosto de 2007    |    5 comentários

Tapas leves, mas bem doloridos

Fotos: Eduardo Sofiati e Divulgação.

Na sexta-feira, o Gero Camilo me levou a um lugar muito especial na Bela Vista: o Casarão da Escola Paulista de Restauro, em pleno processo de recuperação, que deverá se estender por aproximadamente 7 anos. A Companhia de Restauro, muito generosa, aceitou a proposta do grupo Redimunho e, desde então, duas formas de arte s convivem no local: a restauração e o teatro. Bem, mas isso não tem tanto a ver com o que assisti na sexta-feira, porque, na verdade, nenhuma das duas montagens em cartaz eram realizadas pelo grupo que ali trabalha, mas por dois atores que participaram de uma mostra de monólogos e acabaram estendendo a temporada no casarão até 26/10.

Por si só, a casa vale a visita. Construída em 1911, hoje está totalmente sufocada e perdida, rodeada pelos altos e opressivos prédios do nosso tempo. Chegando a este pequeno pedaço de passado, me deparei com uma situação extremamente constrangedora: além de mim, mais duas pessoas (duas!) tinham ido assistir às montagens de Café com Torradas e Francisco Pés Após Pés. E, acreditem, o problema não é com as peças! Pelo que observei, há inúmeras hipóteses, entre elas a data (a peça só acontece de sexta, dia em que o trânsito é especialmente um inferno), a concorrência (São Paulo tem 777.777 peças por noite disputando a atenção de cidadãos cansados de trabalhar o dia todo e/ou a semana toda) e, fatalmente, os guias de cultura dos jornais. Faço questão de explicar esta última possibilidade com mais detalhes: a Folha de São Paulo, por exemplo, alega que precisa realizar um rodízio entre as peças divulgadas em seu Guia porque são muitos espetáculos. Pelo amor de Jesus! Olha o tamanho do deserviço e, junto com ele, da cara de pau! Se precisar, publica mais dez, vinte páginas de peças, ora! Custa muito? As peças, diferentemente da programação televisiva, não estão diariamente nas páginas do jornal e quando finalmente têm um espaço ainda precisam se revezar!

Eu, as duas senhoras, o Mendes (do Redimunho, que fazia a bilheteria) e um garoto que dá uma mão pros atores no fim da peça subimos até o terceiro andar. Na porta, recebemos uma senha. De acordo com o número, nos dispusemos em cadeiras e banquinhos junto às paredes de um pequeno quarto com lustre antigo, papel de parede brega e uma grande janela de vidro colorido. Ali esperamos até que um doido de pijama (interpretado por Marcello Airoldi) entra e procura o seu lugar. De cara, ele comenta justamente sobre o que nos havia causado o primeiro estranhamento: “não tem ordem?”. Então, começa a discorrer sobre as filas todas que enfrentamos no cotidiano e sobre outros tantos assuntos banais, chegando a nos contar seu problema com as bolinhas que se formam nas roupas e, até mesmo, a ficar procurando e tirar as bolinhas das roupas do público.


“Ninguém foi chamado ainda?”, questiona, afobado. E, finalmente, nos conta a impressionante história de como chegou àquele lugar. Então, somos surpreendidos ao ver encenados os nossos medos pequeno-burgueses babacas, que nos deixam cegos para o mundo e para as questões mais evidentes, tão evidentes quanto, por exemplo, um incêndio em um prédio, cujo cheiro de queimado acaba atribuído à torrada que passou do ponto. Trata-se de um ataque aos nossos temores que, além de serem resultado de uma sociedade desigual, são também resultado – temos que admitir – do nosso próprio egoísmo de cada dia. Isso! Dêem um belo tapa no meu medo egoísta de ir embora a pé sozinha à meia- noite ou de passar por debaixo da Praça Roosevelt depois que tiraram o Compre Bem de lá! Muito obrigada.

Na saída, café e torradas, pra entrar no clima. Bobo, mas muito doce. Pra mim, que nessa altura já sentia um leve soninho, a idéia de um café foi perfeita – devo admitir que sou uma dormidora compulsiva e considero os monólogos um grande desafio. Espertos eles. Assim nenhum crítico chato pode pedir café, como fez o Fabrício no Chalaça.

Com toda a intimidade que um público reduzido permite, fomos conduzidos ao quarto ao lado, para a segunda montagem. E eu que achava que já tinha apanhado bastante do texto do Gero Camilo tomei mais uma porrada do Francisco. Francisco é um cara que resolveu parar. Um desses caras invisíveis que os medos, os egoísmos e as portas fechadas da nossa sociedade (aqueles mesmos que acabáramos de ver no quarto ao lado) construíram. Não que ele seja simplesmente um resultado. Longe disso! Francisco é muito menos resultado do que nós. Francisco fez uma opção e a radicalizou. É ativo, até nas menores coisas. Quem é que disse que é proibido parar na metrópole? Este homenzinho cativante parou e o fez, segundo ele próprio, dentro da última casa da cidade – afogada no meio dos prédios. Lá ficou, com seu peixe e seu avião – uma criativa geringonça, que ele me deu pra segurar durante uns dez minutos e que, ao devolver, eu vi se transformar numa carroça (!).

Apesar da criatividade das cenas com o avião , o que sobressai é, sem dúvida, a relação deste homem com o peixe. Entre brincadeiras como “olha o maremoto, peixe!” e pirações como falar em nome do bichinho laranja (que parece dublar), Francisco ouve o peixe falando dos próprios temores, como a bombinha do aquário, e fazendo reivindicações, como um passeio ao “Shopping do Frango”.

Toda essa piração é criação do ator, diretor, pintor e pseudo-hippie Rogério Tarifa – da Companhia São Jorge de Variedades – que expõe também suas aquarelas , pintadas durante o processo de criação deste personagem. Nas horas vagas, Rogério alimenta o peixinho laranja com quem contracena e garante que, em casa, o bichinho tem um aquário maior. Sendo assim, a Sociedade Protetora dos Animais não precisa se preocupar. O dono conta, inclusive, que o peixe adora a brincadeira do maremoto!

Iluminação simples, mas suficiente, cenografia reduzida, mas completa e entrega total dos atores. Não é preciso muito para dizer muito. Talvez fosse preciso até usar menos palavras pra dizer. No entanto, apesar da verborragia, Francisco é um personagem que te prende, sem te cansar. Porque ele é, por um lado, aquilo que nós gostaríamos de ser e seríamos se tivéssemos coragem. Ok, só posso falar por mim, mas quem é que não pensa em parar um pouco só pra sentir mais a vida fluir?

PS: Fica o meu agradecimento ao Guia da Folha por ter divulgado a peça (mesmo que semana sim, semana não) e ao Gero Camilo porque foi seu nome no Guia que me levou às montagens.

4 taças de vinho depois do segundo monólogo (tive que beber por todo o público que faltou!).

'5 comentários para “Café com Torradas e Francisco Pés Após Pés”'
  1. Daniele Avila disse:

    pô… quero ver
    esse pessoal ainda vai estar em cartaz na segunda quinzena de outubro?…

  2. Juli =) disse:

    Sim! Até dia 26! Torço pra que no seu dia também tenha só três pessoas! Assim sobra mais vinho! rs

    Beijo, Dani.

  3. Anonymous disse:

    Olá. Estou escrevendo só pra dizer que ontem tivemos casa cheia na apresentação do Café com Torradas e do Francisco Pés Após Pès. Prorrogaremos sim a temporada até dia 26 de outubro sempre as sextas 21:30. Um abraço Rogério Tarifa.

  4. Juli =) disse:

    Aeeee. Que bom, Rogério! Vamos torcer pra faltar vinho, como bem disse o Marcello.

    Beijos,
    Juli =)

  5. Rafaella Mozz disse:

    Este foi um espetáculo inspirador. Depois de assistir Francisco Pés Após Pés algo ficou repercutindo na minha cabeça e de minha amiga. Algo alí era incomum…
    Eu sou o “avião quebrado”, aquele que não pode voar…rs.
    se ainda fosse possível eu e meu grupo Eu + 13 gostariamos de assistir novamente.

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