Decripolou Totepou

Críticas   |       |    5 de outubro de 2009    |    10 comentários

Palhaça é a mãe!

Foto: Silvia Montico

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Decripolou, a primeira peça que assisti no Festival Internacional de Comicidade Feminina Esse Monte de Mulher Palhaça, remete a uma maneira poética e singela de levar a palhaçaria ao palco do teatro. Poética? Singela? Você pode me perguntar o que, afinal, eu quero dizer com esses adjetivos, uma vez que adjetivos sozinhos costumam dizer muito pouco. Vamos lá. Uso poético e singelo neste caso para caracterizar uma apresentação que, mesmo utilizando muita técnica (mágica, malabares e manipulação de bonecos) e contando com muitos objetos cênicos, deixa sobressair dois elementos: a poesia das falas – poesia mesmo, com rima e tudo, mas direta, em vez de rebuscada – e, sobretudo, a simplicidade da presença viva, do estar no palco com todos os sentidos abertos ao redor, sinceramente, sem afetação.

Para ser ainda mais direta, a palhaça vivida por Odília Nunes reage a tudo em volta, o tempo todo. Algo como os choques recebidos por Michel Melamed em Regurgitofagia, mas sem a necessidade do recurso aplicado por ele. E a cada resposta que dá às reações da platéia ou ao acaso presente na própria cena (uma mágica que não funciona, por exemplo), a palhaça desperta a sensação de que o roteiro ali é o de menos. Para que o palhaço seja capaz de se revelar e nos revelar, o melhor planejamento é estar aberto ao inesperado, as melhores oportunidades são justamente as que escapam ao script. Ok, parece pura teoria de clown. Mas em Decripolou isso se efetiva mesmo e acabamos por rir muito mais do imprevisível do que das ações marcadas e planejadas.

Enṭo, escolho para desenvolver neste texto, dois momentos complementares Рum planejado, outro surpreendente.

Primeiro momento:

Em versos, a palhaça Bandeira fala da obrigação de fazer as tarefas escolares ou mesmo de estar na escola.

Vai já pra dentro menino! – Manuel Bandeira

Vai já pra dentro menino!
Vai já pra dentro estudar!
É sempre essa lengalenga
Quando o que eu quero é brincar…

Eu sei que aprendo nos livros,
Eu sei que aprendo no estudo,
Mas o mundo é variado
E eu preciso saber tudo!

Há tempo pra conhecer,
Há tempo pra explorar!
Basta os olhos abrir,
E com o ouvido escutar.

Aprende-se o tempo todo,
Dentro, fora, pelo avesso,
Começando pelo fim
Terminando no começo!

Se eu me fecho lá em casa,
Numa tarde de calor,
Como eu vou ver uma abelha
A catar pólen na flor?

Como eu vou saber da chuva
Se eu nunca me molhar?
Como eu vou sentir o sol,
Se eu nunca me queimar?

Como eu vou saber da terra,
Se eu nunca me sujar?
Como eu vou saber das gentes,
Sem aprender a gostar?

Quero ver com os meus olhos,
Quero a vida até o fundo,
Quero ter barro nos pés,
Eu quero aprender o mundo!

(texto gentilmente enviado por Odília Nunes)

Me lembro, então, que no Seminário de Cultura e Protagonismo Social na América Latina, parte da programação do Cena Contemporânea de Brasília 2009, discutia-se o lugar-comum do termo “tirar as crianças e adolescentes da rua” e era quase consenso a opinião de que é, sim, necessário tornar a rua mais segura do que é hoje, mas que não se pode ignorar que, em inúmeros casos, aprende-se mais na rua do que na escola – ou, para não reduzir a discussão ao quantitativo, aprende-se coisas mais importantes. A princípio, não estou entrando aqui na discussão de quanto tempo as crianças devem passar na escola (ou mesmo se devem ir a escola), estou apenas tentando evidenciar que a rua também é (e precisa ser) lugar de estar e que todas as instâncias da vida são propícias ao aprendizado – quase sempre, aprendizado mais relevante que muita conta de matemática e regra de análise sintática.

Me lembro também que a cidade onde moro reelegeu esta idéia de educação aqui ó.

E me lembro, claro, do tempo em que eu jogava taco na frente de casa.

Me lembro, ainda, de WWW para Freedom.

Segundo momento:

O outro momento do espetáculo que quero contar é complementar ao primeiro, a meu ver, porque aparece como uma prova de coerência entre poesia e prática, estética e ética. Nesse ponto, trata-se de radicalizar o tema de “ensinar” às crianças algo sobre liberdade ou, para ir direto ao assunto, aprender liberdade com elas.

A palhaça Bandeira tenta sem sucesso uma interação com a platéia:

“Pessoal, o que é isso? “, pergunta mostrando uma bolinha azul.

“E isso?” – insiste, mostrando uma amarela.

Confusa, a platéia fica em silêncio, tentando adivinhar alguma lógica muito complexa por traz dessa simples pergunta. Nesse momento, para nossa sorte, a filha de Odília, Violeta, entra espontaneamente no palco pela enésima vez (todas as vezes incorporadas pela palhaça).

“Ai, como é difícil fazer esse espetáculo pra adulto!” – reclama a palhaça – “Violeta, me ajude… o que é isso?” – mostrando a bola azul.

“Bola”

“E isso?” – mostrando a bola amarela.

“Bola”

“E isso?” – mostrando a bola vermelha.

“Bola”.

“Pronto! Ainda bem que eu trouxe a minha filha!”

O número e o espetáculo continuam, com inúmeras interferências de Violeta, sempre absolutamente bem-vindas. “Será que vão dizer que eu tô explorando ela?”, brinca, no palco, Odília, que está grávida de mais uma esperança.

5 entradas de Violeta. Ou mais…

Também foi publicado na Bacante um especial sobre o Festival. Para ler, clique aqui.

'10 comentários para “Decripolou Totepou”'
  1. Odília é preciosa por ser mulher, poeta, atriz, palhaça, improvisadora, provedora e semeradora de luz para nossos olhos e nossos corações, como esse DECRIPLOU, como sua Violeta…! Daqui do cantinho do sertão de onde ela saiu sem nunca nos deixar completamente, comemoro seu sucesso e me deleito com este texto “filho da mãe” de bom, de arretado!

  2. Juli disse:

    Oi, Tárcio! Nada como o depoimento de quem conhece a raiz. Fico contente por ter escrito um texto filho-da-mãe! hahaha

    Volte sempre.
    Bjos,
    Juli =)

  3. Silvia Montico disse:

    Torço por Odília onde quer que esteja…onde for que me informe que esteja. Torço por Bandeira a quem quer que faça rir ou mesmo voltar a infância por cinco minutos. Esta criatura maravilhosa me ensina a todos os instantes como ser uma pessoa melhor! Essa criatura que é só talento, só coração….

    Juli, parabéns por seu texto, por sua sensibilidade.
    Parece até que “vi” a Violeta – que ainda nem consegui conhecer – invadindo o espetáculo. Obrigada por dividir isso!
    Quem sabe a conheço junto com a nova esperança que não deve se demorar a nascer?

  4. maria paula bonatto disse:

    Odília consegue trazer para a dita “sociedade do conhecimento” muito da sabedoria milenar que o capital mundilizado conseguiu tornar marginais: o circo, o ser palhaça, o ser poeta, o ser mulher grávida e pobre, o de viver da arte. Isso tudo de uma forma tão digna e tão linda que só podemos pensar no quanto somos pequenos, no quanto ainda temos pra andar pra aprendermos a ter um coração de circo, de palhaço, de criança de coletivo.
    Paula Bonatto – educadora da Fiocruz, Museu da Vida

  5. Michelle Silveira disse:

    Odília foi a primeira Palhaça brincante que tive o prazer de conhecer. E que bela apresentação me foi concedida. Bandeira é maravilhosa de linda, de doce e inteligentemente boneca.
    Odília, com sua sensibilidade, sua técnica (improviso é muita técnica), sua poesia conseguir plantar em mim uma “dor de boneca” que eu não sei de onde surgiu, não sei como chegou em mim, não sei onde estava escondida, não me lembro como começou, não me recordo por qual janela entrou….mas Bandeira, com todo seu colorido e suas raízes, quem sabe minhas raízes remotas, me despertou…e se fez a catarse.
    De alma lavada, limpa, purificada, saí do espetáculo de Bandeira e sem parar eu chorei no camarim abraçada em Odília e em sua barrigona e com Violeta pendurada nas suas pernas compridas.
    Uma lembrança pra ser eternizada, de um deleite artístico e poético incomum.
    O popular é lindo!

  6. Juli =) disse:

    Silvia, obrigada por dividir seu depoimento tão sincero sobre a mulher e a palhaça.

    Maria Paula, também me interessa muito que eu e mais pessoas aprendamos a ter um coração “de palhaço”, um coração “de coletivo”. Tomara que por meio da arte seja possível aumentar essa possibilidade, pois mais injusta que seja a disputa com o “capital mundializado”, esse tal inimigo-nuvem.

    Michelle… engraçado como tivemos, num ponto, uma recepção completamente distinta. Para mim, não houve catarse, houve um encontro pleno sem um momento específico de identificação ou “redenção”. Um encontro que significava por si, em todas as partes, sem precisar de um desfecho arrebatador. Mas, de todo modo, que bonito seu despertar e mesmo seu choro de camarim.

    Beijos a todas e obrigada de novo pelos comentários,
    Juli =)

  7. Michelle Silveira disse:

    Mas não precisava ter desfecho arrebatador mesmo, porque Bandeira carregava a linha que podia nos levar cada um para um lugar.
    A catarse foi lavar a alma, no sentido bem óbvio, lavar a alma com a doçura de Bandeira e com alguma coisa que bateu não sei onde e veio não sei como e era de não sei que jeito. Mas era e estava ali.
    Mas como tem coisas que não tem explicação…deixemos assim…e fiquemos com a delícia de palhaça da Odilia.

  8. Felipe Pedro Leite de Aragão disse:

    Acompanho, daqui do sertão de onde ela saiu, os caminhos percorridos por Odília na sia caminhada de fazer rir e chorar. Fazer rir e chorar pq a primeira vez que vi o Decripolou foi na escola em que eu era gestor. Odília foi convidada por mim pra o Dia das crianças da escola (só crianças do campo) e eu não sabia se ria ou chorava, tamnaha dimensão de um espetáculo que remontava muito da minha infância e do que acredito.
    Odília é um daqueles casos em que o talento junta-se à alma e nos faz sempre bem.
    Parabéns pelo texto em que vc contempla o todo desta sertaneja do Pajeú arretada de boa no que faz e no que é.

  9. Juli =) disse:

    Oi, Felipe! Bem-vindo! Se souberes de mais desses casos em que o talento junta-se à alma, divida conosco!

    Beijos,
    Juli =)

  10. Felipe Pedro Leite de Aragão disse:

    Você sabia que Flávio Rocha também é tuparetamense?
    Ele está no filme Besouro e fez a Pedr do Reino.
    Cidadezinha danada essa pra distribuir talento pelo mundo afora….
    Devemos tudo isso ao trabalho da Casa da Cultura local, em especial a pessoa de Tárcio Oliveira, gênio das artes e que fez do teatro e da pintura seu ideário de vida.
    Se todas as cidades do sertão buscassem na arte a redenção….

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