Divinas Palavras
Na moda dos “pós-“, pós-tropicalistas
Foto: Valéria Mendonça/ Divulgação.
Parece ser premissa dos Satyros radicalizar a pesquisa por novas linguagens e novas estéticas a cada montagem – afinal ficaria realmente esquisito (pra não dizer picareta) se eles montassem clássicos gregos, dramaturgia contemporânea alemã e textos do Marquês de Sade, tudo com a mesma cara. Logicamente, algumas dessas experimentações acabam funcionando melhor do que outras, o que torna os resultados de cada processo irregulares entre si – mas por outro lado, vale citar a coragem desses malucos que adoram pular em direção ao desconhecido. Já dizia o Abujamra, que por sua vez parafraseava aquele alemão de bigodes: quem gosta de abismos tem que ter asas. Agora, se as asas funcionam ou não, isso é outra história (ainda mais em tempos de crise aérea)…
Com o inesperado término da temporada de Inocência, a companhia decidiu encarar pela segunda vez Divinas Palavras, de Ramón del Valle-Inclán (a primeira vez foi em Lisboa), e para isso, embarcaram em uma extensa pesquisa em busca do feio e do grotesco. Lógico que uma revista esquisita como a Bacante tinha que conferir essa peça que desde o começo prometia ser estranha pra dedéu – e essa promessa se cumpre logo na entrada no Espaço dos Satyros, ao som de Chorando se Foi e outras esquisitices musicais.
Não demora para comprovarmos que, definitivamente, essa peça não aposta na sobriedade de Inocência, tampouco no lirismo de A Vida na Praça Roosevelt (ah, que saudades daquela peça!). Desta vez, a palavra de ordem é o exagerado, o ridÃculo (tá bom, foram duas palavras de ordem, mas deu pra endenter, né?). Ao contar a história de uma famÃlia que briga para decidir quem tirará proveito do idiota Laureano para ganhar dinheiro (Ivam Cabral deve tomar vários tapas na cabeça na rua de gente querendo ver ele mandar mais beijo), a trupe adota uma estética caótica, que batizam como pós-tropicalismo. Como é isso? Imagine duas drag queens mendigas, em trajes verde-amarelos, brigando – com direito a tapa, unhada e puxão de peruca – no meio da rua 25 de Março, na véspera do Natal, ao som de uma bateria de escola de samba. Imaginou? É mais ou menos assim.
A história de Laureano e esse clima carnavalesco (ou será pós-carnavalesco?) servem de pano de fundo para que a companhia revisite sua própria história com humor, ambientando parte das ações na praça Roosevelt – em geral, de forma bem articulada (embora cacos como o das mesas da calçada pudessem ter sido suprimidos sem prejuÃzos) -, e contando a história de um grupo de artistas deslumbrados que partem para o exterior, encarando o mundo inteiro como uma grande Disneylândia (e sendo encarados pelo mundo inteiro como personificações do estereótipo de carnaval, samba, caipirinha, arruaça e negas-malucas). Em contraponto a essa turma comandada por Mari Gaila – tia que “rouba” Laureano para ganhar o mundo -, vemos a morbidez ranzinza de Marica – a outra tia, beata – e o desespero moral do sacristão Pedro Gailo – irmão de Marica e marido (traÃdo ou, em outras palavras, corno) de Mari Gaila – que o leva a uma relação incestuosa com a própria filha.
Apesar de muitos conflitos se dissiparem com toda a alegoria proposta, várias imagens formadas em cena são ótimas: a iluminação que brinca com as sombras dos atores e com a textura das paredes rústicas do espaço, o coro dos vizinhos-corvos-dançarinos-pop, o coro das caveiras de sucata, os bonecos de madeira, as movimentações de todo o enorme elenco, o vÃdeo que expande o alcance da platéia para além da sala, o cachorro monstruoso que lembrava o coelho assustador de Donnie Darko etc, etc, etc. Já a trilha sonora, desta vez não é pueril como o Yann Tiersen de A Vida na Praça Roosevelt ou improvável como o tango eletrônico franco-argentino de Inocência: é recheada de macarronices que têm tudo a ver com a proposta, mas é menos marcante.
Com tantos pontos altos e baixos, Divinas Palavras passou por uma estréia conturbada e ainda está sendo descoberta por seus criadores. É como um carro novo, cujo potencial só pode ser descoberto após uma boa acelerada na estrada. Não tem (ao menos ainda) o mesmo refinamento das montagens anteriores – e talvez, devido à opção pelo grotesco, nunca venha a ter (o que não chega a ser necessariamente um problema).
Para o grupo, parece ser mais do que um novo espetáculo para o repertório: é um momento de balanço, de diálogo com seu passado (recentemente publicado pela Imprensa Oficial) e sobretudo com seu presente, com a recém-conquistada notoriedade na mÃdia e constantes disputas por espaços, calçadas e méritos pela revitalização de uma praça tão moribunda quanto Laureano, o idiota.
3 goles de cachaça. Êpa lelê.
O que você acha?