Fuerzabruta

Críticas   |       |    7 de outubro de 2008    |    1 comentários

Contradições da Indústria Cultural

Foto: Alejandro Guyot

Quarta-feira à noite, chuva torrencial (se você tiver a idéia brilhante de ir sem carro pra economizar, ou se, muito mais realista, não tiver carro; digamos que “se fudeu”. Primeiro porque não tem muitas linhas de ônibus que levam você até aquele canto; segundo que terá de caminhar uns 3km na chuva, da entrada do parque até a lona do espetáculo). Enfim, cheguei (após, é claro, ter enfiado o pé numa poça de água o que me fez ficar com as meias molhadas a noite inteira) na tenda-foyeur, paraíso do conforto: long-neck contorcida de Skol, R$6,00; temaki peruano, R$13,00; fatia de pizza R$8,00; E guarda-chuvas personalizados Fuerzabruta, R$50,00.

21h. Abrem-se as portas. Um japonês termina seu drink Fuerzabruta (gin, mix de limão, pepsi, uma pedra de urânio e vodka), dá dois pulinhos no lugar, esfrega as mãos e começa a fotografar a equipe de Staff que conduz disciplinadamente nossa entrada num galpão enorme, com luzes roxas geradas por refletores ultra-modernos e um DJ, talvez excessivamente animado, tocando músicas pulsantes, daquelas que fazem a gente se pegar, pateticamente, balançando o corpo enquanto conversa.

A música pára! Avisos de segurança: “Vocês estão em uma tenda” (não diga). “Podem tocar a cenografia, mas com cuidado, pois ela é frágil, usem apenas as palmas das mãos” isso foi uma tremenda decepção, pois eu estava sedento de vontade de tocar a cenografia com minha crista ilíaca, mas não foi dessa vez.

Silêncio. Primeiro efeito de luz: 900 celulares prontos pra fotografar o que quer que aconteça na frente deles. E, enfim, começa: uma esteira gigante entra no galpão. Um hermano cinematográfico, corre, corre, corre, ad infinitum… mais alguns outros efeitos estratosféricos e por aí vai…

De todas as imagens, à la abertura de olimpíadas, pode-se (com alguma ultra-boa vontade e um otimismo exacerbado) depreender algo referente a uma linguagem dos sonhos; em que o hermano charmoso do começo é uma espécie de protagonista submerso em seus próprios sonhos e desejos, com ninfas dançarinas, fadas aquáticas e oníricas, desafios a serem superados etc. Algo que, se verdade, remete ao simbolismo e, grande questão, ao teatro pós-dramático – categoria que, na verdade, não é corrente estética e sim título de livro que busca compreender aspectos contemporâneos do teatro.

Hans-Thies Lehmann, o autor do livro, defende que as experiências teatrais que rompem com a fábula hermética (“visão de mundo”), com o teatro como obra pronta, fechada (começo, meio e fim), significante de algo, caracterizariam um contraponto, essencialmente político, à indústria cultural de massas calcada nessa mesma narrativa dialógica, completude significante, etc…

Paradoxo.

Temos um espetáculo de caráter assumidamente comercial: Broadway, souvenires, verbas milionárias, publicidade exaltando o caráter espetaculoso, etc, etc., ou seja, quase um entusiasta da indústria cultural (por sua forma de circulação e produção), mas que rompe, a priori, como dito acima, com qualquer desenvolvimento linear ou fábula construtiva da realidade. Voltando ao Lehmann, teríamos em Fuerzabruta algumas das principais características que definiriam uma práxis teatral de resistência à operação cultural padrão. Inclusive, uma das ênfases do famigerado teatro pós-dramático, a presença in loco do ator, não como significante, ou representador de algo, mas como presença real, de mesmo tempo e mesmo espaço que o público – o que geraria um processo de “experiência”, na conotação de Walter Benjamim, entre público e atuantes, segundo Lehmann.

Que há, então? Seria o pós-dramático uma imbecilidade de análises tortas? Ou, mais uma vez, vamos assistindo, pouco a pouco mais um apontamento de ruptura na arte sendo incorporado pelo sistema?
Entretanto há outras questões.

O espetáculo, embora conte com alguma referência interpretativa ligada ao sonho parece ter – numa leitura mais real – como principal objetivo o deslumbre imagético por si só. Mas não um deslumbre qualquer. Pois um deslumbre com público-alvo. R$150,00 de ingresso não refletem o capital disponibilizado para a execução; refletem sim, e agora opino, uma descarada seleção social. Obviamente, os ingressos poderiam ser muito mais baratos, já nos disse o Maurício: R$6 milhões de Rouanet aprovados. Entretanto, o alto preço não revela apenas avidez lucrativa. Revela também, reafirmo, um caráter social pré-definido do evento. O público que estava lá, como nas baladas da Vila Olímpia, comprou seu destacamento social, pouco importando qualquer viés artístico da coisa. Ou seja, o espetáculo utiliza-se de uma práxis artística de “vanguarda” (e aqui caberiam extensas considerações acerca da influência do grupo espanhol La Fura dels Baus, e de como ela se materializou no grupo argentino em questão), mas em prol de um mero deslumbre imagético que, por sua vez, tem como objetivo real inserir-se numa indústria cultural milionária e, ainda mais, dirigida a uma específica parcela da sociedade. Em poucas palavras: consumo de luxo.

Ou seja, é um espetáculo não passível de crítica artística, mas de crítica político social.

Por isso, as categorias da pós-dramaticidade, do Lehmann, ou da experiência compartilhada do Benjamim, não devem ser levadas em conta aqui: Existe, em Fuerzabruta, uma apropriação brutal e digerida das idéias tidas como referência de vanguarda na arte; mas tais idéias não dizem respeito a simplórias vestimentas formais, pois são indissociáveis dos meios de circulação e produção da obra.

(Outro exemplo mais corrente: o procedimento épico é hoje referência na publicidade, entretanto não é sinal de que o teatro épico dialético de Bertolt Brecht foi incorporado pelo Capital enquanto discurso, mas apenas enquanto práxis.)

01 auto-crítica, pois me diverti muito na festa inclusive me encharcando nas duchas de água quente no final e, confesso, dancei sem parar.

Leia a também a crítica de Maurício Alcântara para Fuerzabruta clicando aqui.

'1 comentário para “Fuerzabruta”'
  1. Kiko Rieser disse:

    Muito bom, Paulo. Mas, alto lá, o espetáculo sempre é passível de crítica artística, bem como sempre é passível de crítica político-social, ainda que em alguns casos uma e/ou outra não tenha muito por onde se aprofundar, como talvez seja o caso (não gastei 60 paus pra isso e não consegui o ingresso di grátis que eu tava tentando). Você fez uma escolha (e soube caminhar muito bem por ela), mas ela não é a única possível. Talvez se o Zé Celso visse, ele diria que tem uns arquétipos que remetem à Índia pós-medieval, intepretada por uma anti-lógica subversiva da vertente libertária do catolicismo.

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