Fuerzabruta
Contradições da Indústria Cultural
Foto: Alejandro Guyot
Quarta-feira à noite, chuva torrencial (se você tiver a idéia brilhante de ir sem carro pra economizar, ou se, muito mais realista, não tiver carro; digamos que “se fudeuâ€. Primeiro porque não tem muitas linhas de ônibus que levam você até aquele canto; segundo que terá de caminhar uns 3km na chuva, da entrada do parque até a lona do espetáculo). Enfim, cheguei (após, é claro, ter enfiado o pé numa poça de água o que me fez ficar com as meias molhadas a noite inteira) na tenda-foyeur, paraÃso do conforto: long-neck contorcida de Skol, R$6,00; temaki peruano, R$13,00; fatia de pizza R$8,00; E guarda-chuvas personalizados Fuerzabruta, R$50,00.
21h. Abrem-se as portas. Um japonês termina seu drink Fuerzabruta (gin, mix de limão, pepsi, uma pedra de urânio e vodka), dá dois pulinhos no lugar, esfrega as mãos e começa a fotografar a equipe de Staff que conduz disciplinadamente nossa entrada num galpão enorme, com luzes roxas geradas por refletores ultra-modernos e um DJ, talvez excessivamente animado, tocando músicas pulsantes, daquelas que fazem a gente se pegar, pateticamente, balançando o corpo enquanto conversa.
A música pára! Avisos de segurança: “Vocês estão em uma tenda†(não diga). “Podem tocar a cenografia, mas com cuidado, pois ela é frágil, usem apenas as palmas das mãos†isso foi uma tremenda decepção, pois eu estava sedento de vontade de tocar a cenografia com minha crista ilÃaca, mas não foi dessa vez.
Silêncio. Primeiro efeito de luz: 900 celulares prontos pra fotografar o que quer que aconteça na frente deles. E, enfim, começa: uma esteira gigante entra no galpão. Um hermano cinematográfico, corre, corre, corre, ad infinitum… mais alguns outros efeitos estratosféricos e por aà vai…
De todas as imagens, à la abertura de olimpÃadas, pode-se (com alguma ultra-boa vontade e um otimismo exacerbado) depreender algo referente a uma linguagem dos sonhos; em que o hermano charmoso do começo é uma espécie de protagonista submerso em seus próprios sonhos e desejos, com ninfas dançarinas, fadas aquáticas e onÃricas, desafios a serem superados etc. Algo que, se verdade, remete ao simbolismo e, grande questão, ao teatro pós-dramático – categoria que, na verdade, não é corrente estética e sim tÃtulo de livro que busca compreender aspectos contemporâneos do teatro.
Hans-Thies Lehmann, o autor do livro, defende que as experiências teatrais que rompem com a fábula hermética (“visão de mundoâ€), com o teatro como obra pronta, fechada (começo, meio e fim), significante de algo, caracterizariam um contraponto, essencialmente polÃtico, à indústria cultural de massas calcada nessa mesma narrativa dialógica, completude significante, etc…
Paradoxo.
Temos um espetáculo de caráter assumidamente comercial: Broadway, souvenires, verbas milionárias, publicidade exaltando o caráter espetaculoso, etc, etc., ou seja, quase um entusiasta da indústria cultural (por sua forma de circulação e produção), mas que rompe, a priori, como dito acima, com qualquer desenvolvimento linear ou fábula construtiva da realidade. Voltando ao Lehmann, terÃamos em Fuerzabruta algumas das principais caracterÃsticas que definiriam uma práxis teatral de resistência à operação cultural padrão. Inclusive, uma das ênfases do famigerado teatro pós-dramático, a presença in loco do ator, não como significante, ou representador de algo, mas como presença real, de mesmo tempo e mesmo espaço que o público – o que geraria um processo de “experiênciaâ€, na conotação de Walter Benjamim, entre público e atuantes, segundo Lehmann.
Que há, então? Seria o pós-dramático uma imbecilidade de análises tortas? Ou, mais uma vez, vamos assistindo, pouco a pouco mais um apontamento de ruptura na arte sendo incorporado pelo sistema?
Entretanto há outras questões.
O espetáculo, embora conte com alguma referência interpretativa ligada ao sonho parece ter – numa leitura mais real – como principal objetivo o deslumbre imagético por si só. Mas não um deslumbre qualquer. Pois um deslumbre com público-alvo. R$150,00 de ingresso não refletem o capital disponibilizado para a execução; refletem sim, e agora opino, uma descarada seleção social. Obviamente, os ingressos poderiam ser muito mais baratos, já nos disse o MaurÃcio: R$6 milhões de Rouanet aprovados. Entretanto, o alto preço não revela apenas avidez lucrativa. Revela também, reafirmo, um caráter social pré-definido do evento. O público que estava lá, como nas baladas da Vila OlÃmpia, comprou seu destacamento social, pouco importando qualquer viés artÃstico da coisa. Ou seja, o espetáculo utiliza-se de uma práxis artÃstica de “vanguarda†(e aqui caberiam extensas considerações acerca da influência do grupo espanhol La Fura dels Baus, e de como ela se materializou no grupo argentino em questão), mas em prol de um mero deslumbre imagético que, por sua vez, tem como objetivo real inserir-se numa indústria cultural milionária e, ainda mais, dirigida a uma especÃfica parcela da sociedade. Em poucas palavras: consumo de luxo.
Ou seja, é um espetáculo não passÃvel de crÃtica artÃstica, mas de crÃtica polÃtico social.
Por isso, as categorias da pós-dramaticidade, do Lehmann, ou da experiência compartilhada do Benjamim, não devem ser levadas em conta aqui: Existe, em Fuerzabruta, uma apropriação brutal e digerida das idéias tidas como referência de vanguarda na arte; mas tais idéias não dizem respeito a simplórias vestimentas formais, pois são indissociáveis dos meios de circulação e produção da obra.
(Outro exemplo mais corrente: o procedimento épico é hoje referência na publicidade, entretanto não é sinal de que o teatro épico dialético de Bertolt Brecht foi incorporado pelo Capital enquanto discurso, mas apenas enquanto práxis.)
01 auto-crÃtica, pois me diverti muito na festa inclusive me encharcando nas duchas de água quente no final e, confesso, dancei sem parar.
Leia a também a crÃtica de MaurÃcio Alcântara para Fuerzabruta clicando aqui.
Muito bom, Paulo. Mas, alto lá, o espetáculo sempre é passÃvel de crÃtica artÃstica, bem como sempre é passÃvel de crÃtica polÃtico-social, ainda que em alguns casos uma e/ou outra não tenha muito por onde se aprofundar, como talvez seja o caso (não gastei 60 paus pra isso e não consegui o ingresso di grátis que eu tava tentando). Você fez uma escolha (e soube caminhar muito bem por ela), mas ela não é a única possÃvel. Talvez se o Zé Celso visse, ele diria que tem uns arquétipos que remetem à Ãndia pós-medieval, intepretada por uma anti-lógica subversiva da vertente libertária do catolicismo.