Quem não sabe mais quem é, o que é e onde está precisa se mexer

Críticas   |       |    1 de abril de 2009    |    3 comentários

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PARTE I – 3 fatos.

1. A Cia. São Jorge escolheu não representar papel nenhum. Assim, Mariana, Marcelo e Patrícia se apresentam em cena e representam a eles mesmos.

2. O Movimento 27 de março ocupou a sede da FUNARTE em São Paulo, no dia do teatro e do circo, reivindicava o “diálogo bilateral” entre MinC e categoria artística sobre as políticas culturais; ademais, o fim do modelo atual de incentivo (representado pela lei Rouanet) que prevê a isenção fiscal proporcional para empresas que investirem em cultura – gerando, assim, uma valoração mercadológica da arte.

3. Iná Camargo Costa é uma das reconhecidas intelectuais do universo teatral brasileiro; grande entusiasta do teatro épico dialético. Coincidentemente, por dois sábados seguidos deparei-me com ela. No primeiro encontro, dia 21 de março num debate intitulado ‘teatro épico e pós-dramático na sociedade do espetáculo’, ela despejou seu ódio mortal ao crítico alemão Hans-Thies Lehmann, autor da famigerada obra Teatro Pós-dramático. Entre centenas de acusações como a de “jesuíta”, “mentiroso”, “falsificador da história”, pesava a mais grave: “propagador do subjetivismo metafísico, iniciado com o filosofo nazista Martin Heidegger, continuado com Derrida, que tinha como objetivo ‘destruir a dialética’”. O segundo encontro acontece justamente quando resolvo assistir a fragmentada peça da Cia. São Jorge de Variedades. Iná chega atrasada, mas justifica: “já assisti três vezes, resolvi pular a parte da rua”. No fim da peça, quando saímos todos novamente pra rua, Iná, extasiada diz: “cada vez eu gosto mais, maravilhoso”.

PARTE II – A crítica

Vem se fortalecendo no Brasil, dia a dia, o chamado “movimento de teatro de grupo”, afirmando-se como contraponto à lógica do capital na produção de cultura. Assim, agregam-se como força para reivindicar políticas públicas culturais consistentes e acumulam vitórias tais como a aprovação da inédita e contundente Lei Municipal de Fomento ao Teatro, na cidade de São Paulo, em 2002. Entretanto, suas prerrogativas de ação partem da seguinte premissa:

“Nós produzimos linguagens, alimentamos o imaginário e sonhos do que muitos chamam de povo ou nação; nós trabalhamos com o humano e a construção da humanidade. E isso não cabe em seu estreito mundo mercantil, em sua Lei Rouanet e seu programa único”. (Carta aberta ao Ministério da Cultura)

Ou seja, afirma-se que o teatro (ao menos o teatro de grupo) por si só, apenas por existir e atuar, é um elo fundamental a qualquer sociedade. Contudo, dando a entender que, a priori, não importa a obra, mas sim o ato.

A postura da teórica Iná Camargo Costa é um pouco mais discernível, por assim dizer, quando se contextualiza a questão. Seja assim, num debate sobre vertentes atuais da teoria teatral faz-se a crítica ferrenha ao pensamento que se fragmenta e se desconstrói (pensamento, coincidentemente, alicerçado na obra de Heiner Müller, de onde parte toda a dramaturgia da peça da São Jorge). Todavia, na prática de atuação há de se entusiasmar com qualquer manifestação artística oriunda da força política que nos apetece, seja qual for essa ação. Assim, teoria e prática, ou melhor, conteúdo e ação, são desmembrados no contexto de “luta cultural”. Tanto na postura de Iná como na do Movimento 27 de março.

O que, por sua vez, representa um problema de essência muito grave. Sem crítica pertinente, a prática teatral reproduz e reproduz, ad infinitum, as mesmas lógicas de pensamento que compõe o mundo do capital, ao qual se opõem na luta pragmática. Ademais, o círculo teatral paulistano (salvo as exceções que se recusam a ingressar nessa roda, ou que o fazem com a devida crítica) funciona sobre uma rede de influências e cordialidades construída desde as comissões de aprovação de Fomentos, PACs, etc. até as diretorias de SESCs e SESIs. Operação que reproduz o que há de mais perverso na política nacional.

Doravante, no espetáculo da Cia. São Jorge de Variedades, Quem não sabe mais quem é, o que é e onde está precisa se mexer evidencia-se uma desvinculação entre forma, conteúdo e ação política. Partindo de diversos escritos, peças e entrevistas de Heiner Müller, costurou-se uma dramaturgia de “efeito”, com centenas de frases “espetaculares”, mas desvinculadas de sua origem, isto é, de seu contexto. Assim, a afirmação idealista sobrepõe-se às contradições imensas que caracterizam a potência da obra de Müller. Utiliza-se do poder estético e de efeito que o léxico mülleriano possui para um fim idealista e afirmativo mascarado de ironia. Como, por exemplo, as exaltações à “rua” ao “poder revolucionário da periferia” ou a “resistência do teatro de grupo”.

Contudo, do mostruário de frases de Heiner Müller a Cia. São Jorge esqueceu-se de uma das mais belas; quando Müller, na peça A Estrada de Wolokolanski, referindo-se à burocratização e à repressão totalitária da RDA, escreve:

“O Momento da verdade: quando no espelho
O rosto do inimigo aparece”

Pois então, quem não sabe mais quem é, o que é e onde está, no mundo contemporâneo, somos estritamente nós. A sensação de pedantismo que permeia toda a encenação decorre da distância artificial, construída no espetáculo, entre aqueles que representam suas personas (ou a própria categoria teatral) e os que supostamente não sabem mais quem são, o que são e onde estão. O que nos remete de volta à ação política do movimento de teatro de grupo. Somos parte de um teatro que não sabe mais quem é, o que é e onde está; porém, insistimos em dizer que é apenas o mundo, e seus governantes, que não sabe mais quem é e que nós, em contrapartida, somos míticos “construtores de humanidade; produtores de linguagens”. Ou seja, há uma dificuldade tremenda em enxergar-se como parte das contradições sociais e das dinâmicas de “passificação” anestesiada.

E assim vamos caminhando… Satisfeitos de nosso vanguardismo, mas cegos de nosso mundo.

Que venha logo a peste (ou a catástrofe ecológica planetária)…

1 a 0 São Paulo x Palmeiras; em perfeita simultaneidade com a peça.

'3 comentários para “Quem não sabe mais quem é, o que é e onde está precisa se mexer”'
  1. Zé Renato Mangaio disse:

    Interessante crítica. Vamos começar desconstruindo (A la Derrida ou Heidegger -?). Toda crítica tem a sua carga de subjetividade, inclusive a que estou fazendo agora : a crítica da Crítica. O posicionamento crítico baseado nos “fatos”apontados parece desconsiderar que a revolução também afeta os indivíduos. Não penso se tratar só de uma metafísica vanguardista – isto é uma opinião pessoal – mas abalar a estrutura que ainda sustenta essa engrenagem a partir do que somos, representamos ou desejamos. A crítica também é repleta de referências orgulhosas sobre o conhecimento das vanguardas, mas ela se posiciona diante de uma imagem bastante parecida com Caetano sendo vaiado e falando: Vcs não estão entendendo nada!!!! no é Proibido Proibir. Corremos o risco de sermos tão nazistas se não compreendermos que as buscas estéticas tiram material da alma de indivíduos. Idolatrarmos este ou aquele autor, grupo, artista ou conduta, posicionarmos radicalmente e com uma escuta seletiva é quase um monstro que permitimos que habite dentro de nós ( metafísico né?). As vozes são plurais, as escolhas são poderosas: assim com os efeitos espetaculares da São Jorge saímos impregnados de um movimento da imersão deles no Heiner Muller, é uma perspectiva possível – é uma escolha que eles fizeram coerentemente, criticamente e ironicamente…claro que somos políticos e devemos muito aos discursos democráticos: Vide Nekrópolis (maravilhosa) de Gustavo Kurlat e F10.Posicionar-se implica vários movimentos, cada um está num período e fase de posicionamento, percebo neste trabalho da São Jorge um posicionamento necessário contrário às próprias fantasias que habitam os nossos Egos. Claro que eu cheio do meu confronto o seu discurso, assim entramos em dialética socrática?Marxista? Será que estamos nos compreendendo?Bem, o que vi na peça da São Jorge foi uma chamada de atenção e uma profunda generosidade dos artistas colocarem-se contra a mesmice deles mesmos, buscaram fugir dos discursos agit prop em respeito ao Brecht que pedia para ser superado. É admirável o risco corrido, poderia ter tudo sido ridículo e no entanto, eu na minha pequenez e ignorância saí me mexendo, querendo fazer mais teatro e me posicionar melhor ( não para ser baleado – mas para escolher melhor ao menos cinco maneiras de dizer a verdade). Trata-se de um espetáculo que precisa sempre ser revisto. A sua crítica me colocou mobilizado a rever o espetáculo do qual percebo que a distância artificial está bem próxima de nós.

    No mais, sinceramente.Agradeço o seu trabalho, importante pensar teatro dizer e escrever, se colocar.

  2. Paulo Bio disse:

    Caro Zé Renato,

    primeiro obrigado pelo comentário.
    Reconheço que não compreendi tudo o que você quis dizer.. mas vamos lá.

    Quando vc se refere ao Caetano, entendi que vc compara, assemelhando, minha atitude crítica a do Caetano em 68.
    Mas, quando Caetano é vaiado no TUCA é bem mais interessante saber que quem o vaiava era uma ala do movimento estudantil aparelhado e burocratizado que via nas guitarras elétricas da tropicália um sinal demoníaco do imperialismo (e exaltava aquilo que se chamava de nacional-popular) do que ver o fato como a arrogância de alguém perante a visão de outrém. Quando Caetano grita que eles (os que vaiam) são iguais àqueles que espancaram o elenco de Roda Viva, do Zé Celso, no Rio de Janeiro faz uma crítica absolutamente cabível não só àqueles tempos como a hoje. Mesmo que muito mais enfraquecida a ultra-esquerda reproduz totalitarismos assustadores (vide o ação dos grupos disciplinadores no Movimento Estudantil – AJR, Juventude do PSTU, etc. etc. etc.)…

    Enfim, digo isso pra argumentar que o contexto é a maior importância crítica [acredito que a “carga de subjetividade”, embora exista, tem de ser percebida e materializada históricamente sempre que possível – se não, caímos no discurso do “isso me mobilizou, então tem algo de bom.. etc etc”; que dilui a crítica e a argumentação (por exemplo, quando minha tia argumenta a favor da novela X porque fez ela pensar na desigualdade social.. etc.)]. Se negarmos ou usarmos o que nos interessa de determinado contexto incorremos num bareteamento da história e, no caso da São Jorge, no bareteamento da dialética explodida do Heiner Müller.

    Obviamente vc tem razão no que coloca sobre peça: que é uma perpectiva possível, que é uma “imersão” na obra, que tenta “superar” um agit prop planificado.
    [quanto ao Brecht acho que é outra questão. Que, no entanto, passa longe de “superação” – afinal, Brecht nunca foi idealista ou afirmativo – pelo contrário]
    Mas a crítica se dá justamente aí: na perpectiva escolhida e na “imersão” realizada. Critico a perspectiva escolhida como vazia, formalista e “de efeito”. Que, ademais, não percebe o grupo como, aí sim: indivíduos inseridos na contemporaneidade liquefeita… E a “imersão” como descontextualizada e idealista (embora um idealismo meio mascarado pela ironia e pela fragmentação)

    Não acho admirável “correr riscos”. Acho estúpido não corrê-los. Assim, não considero fazer qualquer complacência crítica à São Jorge por eles enveredarem por novos caminhos… Pelo contrário, a crítica deve ser feita a despeito de sua importância no “mundo teatral” ou de suas novas aventuras estilísticas. No entanto, tendo tudo isso em vista como percepção histórica do material abordado.

    Enfim.. acho que é isso.
    … várias questões que mereciam bem mais aprofundamento…

    Abraços!

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