Identidade latinoamericana, organização coletiva e memória

Blog   |       |    22 de setembro de 2009    |    0 comentários

ou Relato da Mesa-Redonda “Dramaturgia e encenação do teatro latino americano”, no Festival Ruínas Circulares, em Uberlândia

Observação: Não se perca na cronologia. Emilliano já comentou neste blog outra mesa redonda do Festival Ruínas Circulares, que aconteceu no dia 17 de setembro. Este encontro que relato abaixo aconteceu antes, no dia 14 de setembro. Meu texto é que está sendo postados depois.

Com muito ar condicionado, nos reunimos no Auditório X, no dia 14 de setembro, às 14h. Havia outros convidados da UFU, mas estavam todos ali interessados no que diria Aristides Vargas, dramaturgo, ator e diretor do grupo equatoriano Malayerba. Até porque os outros dois componentes da mesa eram professores da casa, então os alunos – maioria da platéia devido, principalmente, ao horário do debate – podiam vê-los e ouvi-los quando quisessem.

Para mim, foi interessante ouvir os representantes da UFU inclusive para entender de onde parte a organização deste festival, que, em vez de ter a sua frente um grande e festejado realizador, tem como base de sua realização a própria Universidade.

O primeiro a falar foi o professor Luiz Arantes, especializado em dramaturgia e crítica teatral. O foco de sua fala foi a tentativa de uma dramaturgia comparada, citando obras que para ele refletem o que ele chama de hibridação característica da América Latina, como O Sumidouro, de Jorge Andrade. “Hibridação pode significar a perda de identidade, mas pode ser também a construção da identidade a partir do híbrido, da multiplicidade”. A hibridação, segundo a explicação do professor, é a negação da idéia de nacionalidade construída pela pureza racial e étnica.

Dado esse parâmetro inicial que, por um lado, já nos aponta as motivações para promover um festival latinoamericano, vamos à fala de Fernando Aleixo, um típico defensor do teatro de grupo e seu modo de produção. Aleixo explica com brilho nos olhos porque a organização em coletivos teatrais é uma mudança de paradigma na hierarquia do processo criativo vivida e outros tipos de organização. Fala, ainda, sobre a idéia de corealização, contrapondo-se a toda a organização social atual, em que o foco principal é o projeto do grupo e todos os elementos estão a serviço da realização desse projeto. A partir dessa reflexão, Aleixo aponta para um conceito de dramaturgia mais abrangente que considera todos os elementos cênicos como camadas dramatúrgicas de importância equivalente à do texto em si.

Aberto o terreno, passamos à esperada fala de Aristides Vargas. Exilado da Argentina aos 20 anos, ele formou um coletivo com muitas das características definidas por Aleixo. Um coletivo de atores, inicialmente sem especialização, que tinha como principal elemento de união a situação semelhante que viviam, provocada pelo exílio e pela solidão de estar em um lugar desconhecido. “Não nos importava muito o teatro, importava estarmos juntos”, conta. “Claro que isso eu penso hoje, não pensava enquanto fazia”.

Para Aristides, um projeto artístico surge a cada dia e se consolida na prática. “Um grupo de teatro não é estável, é algo que se move”. Foi o que aconteceu com o Malayerba que, iniciado como um “grupo de ação” formado exclusivamente por atores, deu autonomia aos seus membros, de modo que muitos deles se especializaram, surgindo desse processo diretores, figurinistas e escritores de teatro, além de atrizes que, segundo Aristides, fazem trabalhos mais ligados à comunidade.

“Grupo é uma palavra genérica, na verdade não um termo específico para designar estas estruturas formativas e criativas”, acredita, afirmando que há formas muito diversas de agrupamento e que é preciso pensar, sobretudo hoje que não há a mesma unidade ideológica dos anos 1970, que tipo de grupo se quer constituir diante de tamanha dispersão de interesses.

Com relação à diferenciação do trabalho de grupos de trabalhos considerados mais comerciais, a opinião de Aristides lembra uma fala de Pedro Pires, em um encontro em São Caetano do Sul. Pedro dizia que o teatro coletivo é a manufatura, enquanto o teatro comercial tenta ser produção em série, em escala. Aristides usa para isso uma metáfora singela. “Sua mãe faz uma linda camisa para você. Claro que você poderia comprar uma camisa no shopping, talvez mais bonita, mas há uma diferença ética”.

Quando o tema é dramaturgia, Aristides gosta de usar a lógica de escrituras que formam uma trama, um tecido. “Você não fica com toda a trama, mas tem acesso a alguma parte”, diz, referindo-se ao público que, para ele, também é dramaturgo. “Dramaturgo é quem faz o drama e quem faz o drama não é só quem escreve, mas também quem o executa e quem o vê”, destrincha.

E quando o assunto é o público como parte da construção da obra, Aristides afirma que as pessoas não vão ao teatro e vêem o que est;a colocado ali, mas, sim, o que elas precisam ver. “Isso acontece em muitos campos da vida”. Nesse ponto, faz uma crítica aos próprios artistas: “muitas vezes há mais interesse em fazer uma arte original e grandiosa do que em estabelecer uma conversa, uma comunicação com o público, sendo que esta é a experiência que só se pode viver no teatro”. Ainda com relação à recepção, ele prega que “aos espectadores é preciso falar-lhes especificamente, não em geral”, mas não conta técnicas para isso, apenas considera que cada pessoa vai ao teatro com predisposições diversas, o que já vai gerar recepção diferenciada.

Teatro ausente

A diretora do festival, Yaska Antunes, questiona Aristides Vargas sobre o título do livro recém-publicado sobre o fazer teatral do Malayerba, o Teatro Ausente, ao que ele responde que o teatro sempre mostra o ausente, é sempre uma referência ao real ou ao que não existe sequer no real.

Além disso, contextualiza a obra do grupo em sua relação estreita com o exílio. “O exílio é o não-lugar, habitar uma realidade constantemente ausente, estar entre a realidade deixada para trás e o desejo de retornar”. Essa idéia, no entanto, não é necessariamente geográfica, ou seja, não é preciso ser expulso de um país para sentir-se assim. “você pode estar exilado em sua própria casa”. Quando nos perguntamos que lugar estamos habitando, segundo ele, estamos enfocando um problema da contemporaneidade que é o estar em um não-lugar. “Não se trata de naçao ou fronteiras, mas do sentimento de não conseguir estar centrado”.

Para corporificar esta ausência tão presente em todo o trabalho do grupo, investe-se em aliar a realidade histórica objetiva ao plano poético e lúdico, que permite que a partir da revelação de momentos e fatos históricos haja espaço para a apropriação subjetiva das questões pelo público.

Aqui inclui-se a peça La Razón Blindada, apresentada no festival no dia anterior a esta conversa. Baseada na relação de presos políticos que, para enfrentar o isolamento e a tristeza que imperava naquele ambiente, se reuniam e encenavam diálogos malucos entre Dom Quixote e Sancho Pança. “Dois atuavam e dois assistiam, sentados em uma mesa. Era o teatro como necessidade de criar uma ilusão para sentir-se livre”. Ou seja, diante de um fato político muito concreto e dolorido, criava-se a ilusão como reação possível.

Aristides lembra que há grupos e autores que sofrem tanto para realizar suas obras que chegam a adoecer com terminam de escrevê-las. No caso dos prisioneiros o que se via era o oposto, embora fosse uma atividade política em um contexto de sofrimento. “E perguntei: ‘por que vocês faziam teatro?’ e eles responderam: ‘para rirmos'”.

Memória no processo e no palco

Quando veio a São Paulo, Aristides diz ter sido levado a um tal de Museu da Memória, quando pensou: “Poxa, essa imensa cidade tem uma memória tão pequena?”. A brincadeira é pretexto para falar sobre um tema que permeia toda a obra do Marayerba e de Aristides como dramaturgo. “Sempre tento escrever uma obra sobre meu pai e sempre acabo escrevendo sobre outra coisa”, brinca, apontando um caminho pessoal para a memória estudada pelo grupo.

Como a ditadura e o exílio são muito presentes na obra do artista, está dado o primeiro passo para que a discussão desta mesa-redonda se volte para a relação do Brasil com a memória da nossa ditadura. Cita-se a Lei de Anistia, a supressão do direito à memória política nacional, as poucas obras feitas a esse respeito. Relembra-se, ainda, o absurdo uberlandense chamado Rondon Pacheco, um rapaz que, como já disse Emilliano aqui na Bacante, esteve entre os cabeças do AI-5, e que, no entanto, é nome do teatro da cidade em que as peças do festival se apresentam e acaba de ganhar um lindo busto na reitoria da universidade. Conversa-se, enfim, sobre o direito à memória de uma nação.

Então, Aristides faz uma declaração surpreendente. Apesar de muito envolvido com a conversa sobre a ditadura, ele diz que a memória que interessa a seu grupo pesquisar não é a memória política ou coletiva, mas a memória emotiva, individual. A princípio, a declaração parece incoerente com o resultado visto em sua obra. No entanto, na mesma noite desse debate pude assistir Nuestra Señora de las Nubes, e posso dar aqui o depoimento de que, ao trabalhar com a memória emocional de seus componentes, o grupo consegue acessar e revelar, sim, a memória coletiva e torná-la, ao mesmo tempo, poética e política. Assim, entendo que ao dizer que seu foco é a memória emotiva individual, Aristides fala do caminho que percorre, no entanto, as escolhas feitas ao trabalhar tais memórias é consciente e política.

Essa lógica fica clara quando o artista expressa o que entende por memória. Listo uma série de aspas e você, leitor, fique a vontade para interpretar o moço:

“A memória é um paradoxo: a única forma de esquecimento é a recordação”

“Se você esquece o que passou, é como um doente, como alguém que nunca está realmente acordado”

“O fim último do recordar é esquecer”

“Temos que recordar, ainda que o que recordamos não seja exatamente o que foi vivido. Uma pessoa só se recorda de uma parte, nunca do todo”

“É preciso recordar para poder esquecer as tragédias. Não é possível esquecer por decreto”

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