Caleidoscópio

Críticas   |       |    30 de julho de 2010    |    0 comentários

Inebriados por um CALEIDOSCÓPIO social.

Foto: Bruno Fernandes

Já há alguns bons anos o Jogando no Quintal, que começou mesmo num quintal em 2001, é um evento que atrai multidões desejosas de boas risadas no final de semana. São vários palhaços (alguns oriundos do projeto Doutores da Alegria) que se aventuram no estranho mundo dos ‘improvisadores’ – um mundo a parte, com ligas internacionais, campeonatos ao redor do mundo e centenas de grupos dedicados a este ‘gênero’ de arte ironicamente na fronteira com o esporte. A inserção neste universo peculiar, por quase 10 anos de atividade, fez o grupo adquirir a expertise do negócio e o espetáculo Caleidoscópio aparece como uma nova abordagem da improvisação pela Cia. do Quintal.

Quando o Jogando era no Quintal. Foto do site do grupo.


Pra começar eles tiraram os narizes de palhaço, e aqui as ‘regras’ são outras. Não há mais definido o caráter explícito de jogo como no Jogando no Quintal – onde há equipes, juiz, explicação de como a coisa funciona antes de começar, público-torcedor etc. –, mas sim a utilização da improvisação como linguagem poética. Há inclusive um diretor (o também ‘improvisador’ Marcio Ballas).

Em Caleidoscópio, portanto, evidencia-se a necessidade de leitura artística (e política) da obra. Já em Jogando no Quintal a leitura artística fica diluída por sua característica específica, que nubla a apreensão estética da obra em prol de uma vivência outra: divertida, lúdica e dinâmica – como um bom jogo de futebol.

O Caleidoscópio da Cia. do Quintal é constituído de duas partes. Na primeira, os improvisadores contam histórias simples e engraçadas da sua própria vida cotidiana como se estimulassem o imaginário do público que irá também contar suas histórias. Na segunda parte da peça começa o jogo de improvisação tendo como matéria-prima as mesmas histórias contadas pelos espectadores. E é isso.

A improvisação em Caleidoscópio perde sua característica de ‘instrumento de jogo’ e ganha status de ‘protagonismo formal’, ou seja, vira o próprio jogo. Mas é feito de um modo que o espetáculo fica constituído em torno da capacidade ‘improvisacional’ dos cinco (sendo um deles um músico-improvisador) e que, portanto, resta ao público contemplar a qualidade dos mesmos (e é inegável que eles são muito bons nisso). A contradição aqui é que a vivacidade típica da improvisação, ao ser alçada a ‘estrutura formal’ do espetáculo e a ‘linguagem poética’, perde sua potência intrínseca e vira motivo de contemplação. Então algo que, a priori, romperia com a fruição passiva do velho teatro ‘marcado’ e ‘ensaiado’ volta a ser objeto contemplativo. O improviso vira objeto e não mais instrumento. Sendo assim, a admiração da capacidade sublime dos improvisadores – como num caleidoscópio de belas imagens – fica em primeiro plano; e as histórias do público tornam-se apenas o pretexto para a execução talentosa do improviso.

É como se os estímulos dos espectadores fossem os fragmentos de vidro colorido e a improvisação fosse o mecanismo de espelhos do caleidoscópio, que cria formas maravilhosas com meros estilhaços do vidro quebrado – só que não assistimos as formas criadas, mas sim a maravilha do instrumento de criação. Ou seja, como já sugere o nome, o que importa aqui é o caleidoscópio e não tanto as imagens formadas por ele.

Há um paradoxo constituído, a forma não consegue se realizar como conteúdo porque não ultrapassa o âmbito da exibição demonstrativa do talento do grupo.

Só que é justamente esta estrutura formal que pretende apontar a diretriz discursiva da peça. Isto é, o mecanismo de transformar o cotidiano corriqueiro e banal (estilhaços de vidro colorido) em formas fantásticas de um caleidoscópio parece sugerir uma revisão do olhar que temos diante daquilo que é tido como fatos particulares dispensáveis que fazem parte da vida de um ser humano qualquer. Então as ‘pequenas histórias’ de uma vida particular ganham dimensões imensas e viram matéria-prima de uma obra de arte. Algo como a particularização, a individuação do processo social.

Foto: Fernando de Aratanha

Afora isso, há na disposição discursiva uma contradição mais profunda. Isto porque há um recorte de classe no público (matéria-prima) de Caleidoscópio (no mínimo demarcado pelo valor dos ingressos – R$40,00), mas o trato com ‘a realidade’ é feito no plural com pretensões de versar metaforicamente sobre o real e o ser humano, em uma generalização falsa. Da maneira que está contextualizado, com o público restrito que compõe o alicerce da função, o espetáculo fica, geralmente, alinhado a um humor digestivo de classe média. Sobretudo, foge ao controle dos ‘improvisadores’ a disseminação de lugar-comum e preconceitos típicos de classe durante os improvisos (o fato de eles funcionarem tão bem e causarem gargalhadas é a prova do conluio formado em torno da representação).

Assim, o discurso delineado com a linguagem do improviso não foge do lugar confortável da micro-filosofia do indivíduo. Mas a velha máxima de que ‘todo teatro é político’ torna-se verificável justamente quando a obra tenta se esquivar dela. E é aí que fica em evidência o caráter político-ideológico de uma ‘singela seção de improvisação com inocentes histórias do cotidiano de pessoas comuns’.

O humor jamais estará isento da sociedade que o envolve – e esse é o seu maior trunfo.

Caleidoscópio foi assistido no dia 23 de julho de 2007 no Tucarena, ao custo de R$20,00 (meia-entrada) – como a peça é improvisada há o risco desta crítica só ter validade – se é que tem alguma – para este dia…

300 sorrisos de satisfação ao fim do espetáculo.

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