Delírios de Grandeza

Críticas   |       |    22 de setembro de 2009    |    0 comentários

É um delírio desconstruir a base do nosso conformismo?

Corajoso. Vestido de personagem de filme de cowboy, de power rangers (ou qualquer outro desses lutadorezinhos) ou de toureiro, pelado ou transformado em jogador de futebol, o ator espanhol David Espinoza se arrisca ao apostar em tecnologia e, sobretudo, ao abrir mão completamente da ilusão em seu monólogo. Ou melhor, em utilizá-la justamente para quebrá-la.

A brincadeira é explorar os delírios de grandeza (sempre mais evidentes nos garotos) que sejam típicos do nosso tempo. E se você é dos que – depois de assistir muito novo circo francês – acham que a Europa não tem mais do que falar e que está tudo ok por lá, pode parecer realmente surpreendente notar que a construção de desejos e sonhos, orquestrada pelo quarto poder midiático, é tão eficiente lá como aqui na manutenção da eterna insatisfação ou eterna busca por uma satisfação plena inexistente – embora de vez em quando teime em aparecer no último capítulo da novela.

A lista é curta e objetiva: delírio de ser artista de cinema (“vou ser artista de cinema…o meu destino é ser star“); delírio de ser jogador de futebol (e de preferência ganhar da seleção brasileira na Copa); delírio de ser um astronauta, delírio de ser um grande herói mascarado como os dos desenhos; delírio de ser um sex symbol; delírio de ser um grande artista cuja trajetória se encerra com o mais poético e pleno dos suicídios.

A construção de heróis e referências impossíveis não é, certamente, exclusividade aqui da terra brasilis. Feliz ou infelizmente, esse é um dos elementos essenciais para que o ciclo capitalista/ consumista seja mantido. Tática que serve pra qualquer canto em que o capitalismo se estabeleça e que dá pra resumir em consolidar o desejo e a insatisfação, porque é isso que, afinal, vai gerar o consumo, que vai gerar produção, que vai gerar trabalho – ou seja, toda essa lógica invertida e absurda de exploração indiscriminada para produção e venda/ consumo do supérfluo. Nesse ponto, olá, EUA, Japão, olá todo pessoal que troca de eletrodoméstico como quem troca do Faustão pro Gugu – ou sejam lá quem forem os chatos dos domingos estadunidenses e japoneses.

Enquanto sonhamos em ser iguais ao mocinho do cinema com seu chapéu de faroeste; treinamos golpes no ar e chutes precisos no videogame; mostramos o bumbum durinho na web cam; ou nos embriagamos na nossa incrível genialidade de artistas incompreendidos; paramos de pensar e não começamos a agir para alterar estruturas que nos limitam, porque não há sequer tempo para percebê-las. E o ator tenta nos chacoalhar: “aqui não é a Broodway”; isso é ilusão; eu não fiquei incrivelmente forte de uma hora pra outra, isso é um dublê; o futebol, o videogame, o jogo político, tudo isso é possível manipular – botar no comando “easy” e mandar ver; web cams, artistas e políticos mentem; podemos desejar algo além do que nos é imposto sonhar.

Espinoza se coloca como instrumento de materialização dos delírios de grandeza mais clichês e em cenas simples procura traduzir, com apoio da tecnologia, quais são esses desejos que somo induzidos a ter. E quando eu digo simples, é simples mesmo… Para reproduzir o delírio de Hollywood, o ator imita com perfeição os gestos do mocinho do filme projetado no fundo do palco. No caso do campeonato de futebol, imagine um ator deitado no palco diante de um lap top jogando videogame e alterando as regras do jogo nas configurações. Ao lutador, bastam movimentos sincronizados e uma fantasia esquisita que toda criança quer ter. Para ser sex symbol, nem é preciso estar no palco – uma tela do MSN aparece e cobre todo o fundo da cena e é pelo comunicador online que o ator conversa com o público. Para constranger a maior parte da platéia, basta uma web cam com o dublê se despindo em movimentos sensuais. E por aí segue, até a dança final, filmada pela web cam e projetada de maneira a provocar uma espécie de espelhamento, de modo que o artista se encontra com ele mesmo na dança do toureiro.

Entre questionamentos divertidos e assustadoramente despretensiosos – chegando, várias vezes, ao ridículo – o ator vai desconstruindo um a um os heróis mais conhecidos até chegar na própria arte como produto de delírio. E aí, por alguma razão que talvez seja a dificuldade que é exercitar a autocrítica, a metáfora é menos contundente e agressiva que as anteriores. Ao falar de si, do ator, do artista, a desconstrução se limita à dança de um toureiro – que, apesar de rica em significados, não é suficientemente reveladora das estruturas do tal suicídio como exacerbação completa da poesia. No entanto, é possível pensar nesta dança somente como ponto culminante da autocrítica, uma vez que, a todo momento, a cada herói desmitificado em cena, caía um pouco a ilusão do espetáculo e desfazia-se um pouco a imagem intocável do grande artista.

5 dedos cobrindo o pipiu – que moralista

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