La família argentina

Críticas   |       |    7 de outubro de 2011    |    3 comentários

Matrioshkas das famílias disfuncionais

Alguma vez ouvi dizer que na cidade de Buenos Aires estima-se uma média de 300 espetáculos teatrais em cartaz por fim de semana. Dessas 300 peças, eu arriscaria dizer que cerca de 90, não, talvez 93, têm como cenário um cômodo de um lar, mais precisamente uma sala de estar. Sim, o teatro portenho é, por tradição, especialista em dramas familiares. E já que hoje estou com essa de ser preciso (um objetivo subjetivista, para ser mais específico), eu complemento: o teatro portenho é especialista em dramas de famílias disfuncionais (em contraponto a uma idéia de família “padrão”, com pai, mãe, irmãos, cachorro, papagaio…).

Contextualizando em 21 segundos:

Por um lado a tradição do drama familiar em Buenos Aires tem suas origens no teatro realista moderno e suas derivações, tendo como principal referência dramaturgos como Ibsen, Tchekhov, Arthur Miller, Tennessee Williams (para citar os mais remontados e revisitados em Buenos Aires atualmente). De diferentes formas e em diferentes contextos, a vida privada e a desintegração do núcleo familiar são temas centrais na obra destes dramaturgos que há muito conquistaram terreno no teatro portenho.


Por outro lado está a tradição de gêneros mais populares e locais, como os antigos sainete e grotesco criollo, que combinavam uma mistura de referências (entre gêneros populares europeus e o circo). Aqui se dava espaço à representação da vida dos imigrantes e suas famílias na primeira metade do século XX, tendo como cenografia principal os cortiços da época. Colocavam-se em foco famílias atravessadas por um contexto de frustração, miséria e fracasso (o mesmo contexto onde nasce o tango).

Ambas as frentes são chaves para pensar o teatro portenho, muito do teatro feito atualmente nesta cidade segue se estruturando e dialogando com essas tradições. A freqüente representação de dramas familiares é uma entre as várias heranças remanescentes.

Foto: Assessoria FIBA

Escrevo este texto logo após ter assistido a peça La familia argentina, da diretora (mais conhecida por seu trabalho como atriz) Cristina Banega, com texto de Alberto Ure (mais conhecido por seu trabalho como diretor). Uma peça de sala de estar.

Mas dizer que o teatro portenho é especialista em dramas de salas de estar bagunçadas e com uma garrafa de whisky pela metade (tradução: casa de uma família disfuncional), não quer dizer que necessariamente este 31% (aquelas 93 peças) se resume a simples repetições das mesmas fórmulas.

Ok, vamos ao ponto, ao drama, à história: um homem se separa de sua mulher e se casa como sua enteada. A peça inicia com um primeiro encontro entre este homem e sua ex-mulher (agora sogra) que acaba de se inteirar do acontecido. Uma entrada potente (dramaticamente falando), o enfrentamento de uma mulher desesperada e um homem que não tem argumentos para acalmá-la. De fato toda a peça se sustenta em uma sucessão de situações em que os personagens – a mãe-ex-mulher, o padrasto-marido e a filha-esposa –estão à flor da pele, em uma variação de ações e emoções pelas quais passam ao lidar com essa situação. O ápice e a consolidação do drama estão na descoberta de que a filha-esposa está grávida, completando o quadro da família conflitiva.

Mas, neste mesmo momento em que tudo parece descrever a trama de uma telenovela incestuosa, a peça oferece ao público uma portinha que permite entrar na história por um outro lado e, o que parece respeitar uma simples estrutura dramática, ganha complexidade. Aí me dei conta, a peça não estava me contando a história de uma família disfuncional, mas sim a história de uma concatenação ou um emaranhado de famílias disfuncionais.

Por isso a dificuldade em nomear as funções familiares dos personagens: uma mãe separada encontra um pai separado, se casam, se separam, o ex-marido se casa com a enteada, a enteada engravida do padrasto-marido, se separam, a ex-ex-mulher-sogra-mãe volta a se casar, o ex-marido²-padrasto-pai quer voltar com a ex-ex-mulher-ex-sogra, a ex-ex mulher-ex-sogra-avó adota seu neto…

Vemos uma família que, na tentativa de funcionar como uma família “padrão”, termina por se aprisionar em um sistema de contínua desestruturação e auto-sabotagem. Conforme as funções familiares vão se alternando e embaralhando, a mesma família vai se tornando múltipla. Um tabuleiro com as mesmas peças vai se transformando em diferentes jogos.

Finalmente La familia argentina não deixa de ser um drama de família disfuncional, mas talvez seja o drama da família disfuncional. E por isso merece o título que tem, condensa em uma mesma sala de estar um sem fim de dramas da família argentina disfuncional (ou melhor, da família portenha disfuncional).

Não estou seguro se este sistema de matrioshkas (ou bonecas russas) que o espetáculo cria é uma escolha de todo consciente da direção. De fato, muitas escolhas contribuem para que a peça não consiga ir muito além de um drama familiar tradicional (enfocado em só um dos momentos dessa família, respeitando uma linha cronológica, etc). Eu escolhi entrar por aquela portinha que em alguns momentos me pareciam apontar, mas tranquilamente se pode passar os 70 minutos da peça entre as quatro paredes de uma mesma família.

1 sofá, 1 mesa, 2 cadeiras e 1 portinha imaginária

 

'3 comentários para “La família argentina”'
  1. Mariana disse:

    Muito bom!

  2. erica smith disse:

    oi, sou erica e faço teatro a bastante tempo, mas profissionalmente a 2 anos, atualmente participo de 2 grupos de teatro(Vetor grupo cenico e Piaui estudo das artes), são 2 grupos diferentes mas iguais na energia e concentração. e confesso que vcs são nossa espiração em algumas vezes, principalmente no grupo (Vetor grupo cenico). agente ler, assiste peças pelo blog, enfim, pesquisamos, mas quero lembra que nossa idéia não é (IMITAR VCS)e sim ter uma base de como se fazer um bom teatro, nos sempre nos reunimos fazemos um trabalho de corpo, pesquisa, escrevemos nossas peças, fazemos músicas, conversamos, criamos ideias, somos um grupo ou melhor uma familia. e falo em nome de todos (Vetor grupo cenico)PARABÉNS!!!! haaa, eu sou de TERESINA/PIAUI… sucesso e abraços (se vcs lerem esse recado, manda um oi, ok!!!!)

  3. Astier disse:

    Oi Érica Smith, sou Astier, meio que seu vizinho, moro na Paraíba. Estamos perto e longe ao mesmo tempo. Ainda não conheço o Piauí. O Fabrício Muriana, um dos nossos editores, tem parentes aí. Vocês têm algum blog, alguma página pra gente ter notícia do trabalho de vocês? Vocês costumam viajar? Fiquei curioso pra ver algo do grupo. Mande notícias. Abraço Astier

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