Neva

Críticas   |       |    28 de julho de 2009    |    0 comentários

Quatro olhares sobre três atores no palco

neva paulo berton (2)

Foto: Paulo Berton

Marco Albuquerque viu na quinta-feira, dia 08 de maio de 2008, na Mostra Latino Americana de Teatro de Grupo, no Centro Cultural São Paulo.

Ao final da apresentação de Neva, fiquei impressionado com a reação da classe teatral brasileira (nem era só a classe paulistana que lota os Sescs, era a brasileira mesmo, já que coletivos teatrais de vários estados brasileiros participavam da Mostra) que estava arrancando os cabelos. Parecia que todos haviam sido profundamente questionados em suas motivações mais profundas sobre o fazer teatral. Se eu pudesse ler os pensamentos deles, eu provavelmente encontraria coisas como: “Meu Deus!! Minha vida não faz mais sentido”, “As pessoas estão morrendo de fome e eu estou aqui fazendo teatro”, “Vou virar missionário na África”, “Vou abandonar esse negócio de teatro de rua e aceitar o convite da Record pra participar dos Mutantes”, e assim por diante.

Eu, como todos, saí de Neva encantado (sim, esse foi exatamente o meu sentimento) com o desempenho das atrizes, com a simplicidade da encenação e com o texto. Curiosamente, entretanto, a mensagem principal de Neva não me atingiu. Fiquei me questionando sobre os motivos pelos quais o chão sob meus pés ainda continuava lá e cheguei à conclusão que isso talvez tenha ocorrido porque eu nunca tive ilusões sobre o que entendo ser o poder transformador do teatro. Nunca achei que, por fazer teatro, eu teria o poder mágico de resolver os problemas do mundo: os mendigos de rua continuariam a não ter o que comer, as pessoas continuariam sujeitas a serem vítimas da violência urbana ou a morrer na Revolução Russa e assim por diante. Tampouco passei a questionar se faz sentido fazer um espetáculo teatral em u m mundo com tantos problemas. São tantos os problemas que, pequenos que somos, ficaríamos de braços cruzados se resolvêssemos abraçar o mundo todo. Por conta disso, cada um deveria fazer, com orgulho, aquilo que sabe, aquilo no qual pode efetivamente gerar alguma transformação, por mais ínfima que seja. Desta forma, o espetáculo me deixou ainda mais apaixonado pelo Teatro: pelo simples poder que o Teatro tem de fazer as pessoas pensarem e olharem o mundo de um jeito diferente. E isso já é muito. Muito mesmo.

Fabrício Muriana viu no sábado, 19/07, no FIT 2009.

A primeira e principal motivação desse texto é entender o que fez a mim e a outras pessoas ficarmos tão embasbacados com Neva, de modo que nem dava vontade de aplaudir. É um palco italiano e não poderia deixar de ser. São três atores profissionais e, sinto-me pior, não poderiam ser atores não profissionais (por profissional quero dizer aquele ator que vende sua força de trabalho). A estética é a do Drama, quase como se Tchékhov fizesse uma continuação em mesa branca de uma das suas peças. Ocorre que o contexto é muito preciso, Rússia em 1905, e aqui vemos um procedimento narrativo que nos impede, a priori, de pensar em qualquer outro tempo. Lá fora, a revolução do proletariado está explodindo e aqui dentro do teatro, às margens do Rio Neva, as únicas explosões são arroubos naturalistas de um ator, uma diva e uma aprendiz. Há um jogo dramatúrgico que Tchékhov não faria, eu acho, com um final que vai subindo como o Bolero de Ravel (outro artista burguês). A que vêm aqueles jogos de interpretação, meu deus, eles queriam zuar com a minha cara o tempo inteiro? São necessárias uma hora e meia de peça para que a atriz fale quase literalmente a que vieram. É uma montagem impossível de dizer que “não mostra a que veio”. Mostra com luz na cara. Mostra a nós, público que se quer público. Mostra o projeto egóico e umbigóide que é o teatro atual. Mas afinal estamos falando de 1905 ou 2009? Da Rússia ou do Brasil? É aquele drama das novelas mesmo? Eu devo ser um colonizado (ando dizendo isso demais). E que tipo de brincadeira sem graça foi essa de colocar a peça Talvez logo depois de Neva? Prefiro ficar com a teoria de que isso se deu por conta da minha eleição de quais peças assistir, portanto é subjetivo. Claro, como é que não tinha pensado nisso, né não, Jorge Vermelho? E pensar que essa peça esteve em cartaz em todo o circuito comercial de São Paulo: uma mostra do Sesc, Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo da Cooperativa Paulista de Teatro, esteve em todo lado. Mas é claro, fui assisti-la em Rio Preto por idiossincrasias minhas, questões subjetivas de alguém que faz parte de um coletivo de crítica e que viaja pra ver peças que poderia ter visto na sua própria cidade.

Liz Nátali viu no sábado 19/07, no FIT 2009

Era a última peça do sábado e a penúltima que eu veria neste festival. Já tinha me conformado com a ideia de voltar pra São Paulo sem ter assistido nada que me convocasse de verdade. Quando digo convocar, me refiro a algo que de alguma forma chacoalhe todo o meu interior subjetivo a ponto de não permitir que eu me abandone numa poltrona confortável e ao mesmo tempo estabeleça comigo um diálogo intenso com base em conjunturas concretas, no caso, a repressão czarista frente à movimentação proletária.

Objetivamente, Neva põe em questão a relevância do fazer artístico diante da urgência do contexto que o permeia. Mas antes disso, passamos por muito tempo de peça para entender quais tipos de relações compõem aquele teatro de que os três atores fazem parte. Por exemplo, a vulgarização do amor trazida à cena pelo jogo imposto pela atriz-diva Olga aos outros atores, que deveriam reproduzir suas relações privadas com seu marido recém falecido de tuberculose. Ou, ainda, a vaidade exposta na competição entre as representações dos trechos das peças de Tchékhov, que descolados de sua totalidade tornavam-se patéticos.

Neva revela o contraste de duas circunstâncias: uma delas consiste em um ensaio esvaziado de sentido em que se aguarda a chagada dos outros atores que poderiam ter sido mortos no caminho e a outra, em uma situação limite que é concretizada por uma revolução proletária batendo à porta. Hoje, em termos gerais [ou ao menos na classe a qual pertenço] não possuímos uma situação limite, e talvez seja possível dizer que o fazer teatral nem sempre é patético. Mas, a meu ver, o que fica é o quanto esta ausência de contraste nos faz aceitar passivamente diversas movimentações subjetivadoras que nos afastam cada vez mais dos processos concretos que compõem a conjuntura social/política/amorosa/econômica/humana… e o quanto daquelas relações expostas de forma caricatural na primeira parte de Neva continua sendo reproduzido, não só no fazer teatral, mas também nos outros palcos que deveriam suprir interesses de ordem pública.

Juli assistiu na segunda 20/7, no FIT 2009

Ouvi muitas vezes nesse festival que Neva é uma violência – soco no estômago, tapa na cara, etc. A despeito disso, percebi muitas pessoas que não sentiram muito a agressão e que guardaram como principal lembrança da peça “o trabalho incrível das atrizes”. Oi? Pois é. Ao assistir Neva e ficar completamente besta com a peça, me senti diante de uma contradição: uma mensagem potente e transformadora num formato absolutamente sem qualquer intenção de inovação, quadrado e textocêntrico. Ao mesmo tempo em que essa escolha permite que algumas pessoas se contentem com apreciar o drama bem-feito, ela também reforça o conflito proposto e escancarado aos gritos no fim – a própria encenação, limitada, centralizada, parada, restrita a um pequeno espaço, é símbolo deste fazer teatral contido, distante e sem sentido que é denunciado ali.

E estávamos falando de 1905! Mas quantas vezes já vimos, seja em salas de ensaio, seja nas próprias apresentações, aquelas mesmas cenas de mediocridade, de postura nula diante da realidade, de fazer artístico transformado em mera profissão e expressão de vaidade, desvinculado de qualquer função social? Quantas peças cuja temática principal é o amor não vimos, ainda que só contando as do FIT 2009? Ou, ainda, outras, que levam em conta outras questões, mas as mascaram no seu tom romancizado.

Foi voltando de Neva de carona que percebi o quanto poderia ser rico o diálogo proposto pelo Painel Crítico do FIT 2009 ao convidar dois especialistas em performance que olham para o teatro com certo estranhamento e estão sempre em contato com as ditas fronteiras entre linguagens. Na ocasião, Lucio Agra relembrou um comentário muito revelador de Bia Medeiros sobre Neva: “Lucio, hoje eu vi teatro mesmo”. Isso porque as obras que eles têm visto nos últimos tempos quase sempre se baseiam em misturas entre linguagens e colocam um pé, pelo menos, na fronteira. Já Neva, na visão deles, é símbolo de um teatro que está no seu lugarzinho – a princípio, o drama centrado na enunciação de um texto (nesse caso, um texto bem longo, por sinal).

4 cores que não definem subjetividades

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