O Sobrado

Críticas   |       |    13 de julho de 2010    |    3 comentários

O Sobrado: um dia de vento nunca mais será o mesmo

Fotos: Flickr de Elisa Viali

Um dia, soube que havia uma discussão, em uma comunidade do Orkut, sobre um comentário meu, feito no blog de um amigo, sobre os espetáculos do Departamento de Artes Dramáticas do Rio Grande do Sul. Claro que estava dentro de um contexto, mas eu dizia que estes costumavam ser “pretensiosos”. Esta observação foi feita depois de assistir a alguns destes trabalhos, em que os textos encenados eram sempre de clássicos (Shakespeare, Brecht, Samuel Beckett, etc.) como se esta escolha bastasse para resultar em um bom espetáculo. O que raramente ocorria, pois os atores não conseguiam compreender as sutilezas dos autores e acabavam colocando no palco leituras equivocadas. Exemplo: Sergio Silva gostava de falar sobre uma montagem de Um bonde chamado desejo. Em uma das cenas finais, a personagem de Blanche deveria dizer: “eu sempre dependi da bondade de estranhos”. O tom era patético, deprimente até, que justificava toda a história até ali. A atriz, no entanto, optou por dar a fala de forma alegre e displicente, deixando sem nexo todo o resto.

De qualquer forma, o uso do adjetivo no meu comentário bastou para que eu fosse insultada. Lembro que fui nadar, literalmente para esfriar a cabeça, e decidi que não era o caso de reagir. Passar dos 40 anos me dá a lucidez de que nem todas as batalhas valem a pena. Pois bem, agora venho neste espaço falar de um espetáculo produzido pelos alunos do Departamento e dirigido pela professora da universidade Inês Marocco, cujo tema é, justamente, a guerra.

O Sobrado, criado a partir da obra O Continente, primeira parte da triologia O Tempo e o vento de Érico Veríssimo, relata uma situação enfrentada pela família Cambará [1] em 1895. Mas o elenco não está lá para contar a história do Rio Grande do Sul. Tentar fazer isso de um jeito igual ou melhor que Erico seria… pretensão! Até porque estamos falando de expressões distintas, ainda que complementares, como é o caso do teatro e da literatura. Acredito, porém, que Érico não gostaria de ser tratado como mito e que, provavelmente, ficaria bastante satisfeito com a reatualização da sua obra nos palcos, onde mais importante do que a fidelidade aos fatos geograficamente situados no estado gaúcho está a essência do comportamento humano em qualquer tempo ou espaço.

Assim, o grupo coloca no palco… (palco? Jurava que era a sala principal da residência da família Cambará) o sentimento de angústia, de opressão de quem está cercado por seus inimigos. Não é que o cenário fosse exatamente realista. Tinha lá suas portas e janelas. Mas nada de sofás, quadros, etc. Uma cadeira de balanço, lamparinas, detalhes. Mas é o texto, dito por atores em trajes de época, que nos levava a imaginar o ambiente familiar.

Rodrigo Fiatt faz o protagonista Licurgo e, embora ele seja um ator que ainda está nos bancos acadêmicos e não realizou outros trabalhos importantes, cada vez que ele aparece dá para “ouvir” o silêncio da plateia. Afinal, mesmo que, em algumas cenas, ele converse amigavelmente com os soldados, na maioria, ele impõe sua vontade, dá ordens para que todos fiquem onde estão, com pouca munição, praticamente sem água, comida, sem atendimento médico, sem esperança. Sua atuação rouba a cena. Ainda mais quando os diálogos são com sua “cunhada”. Eles se enfrentam. Ela questiona suas decisões. Ele insiste em sua conduta. Há um contraste entre a submissão e a força feminina. Mas vai além. Traz em discussão o amor pela terra e o respeito pela morte. Bravura ou Insensatez?

A vida não pode esperar o resultado da disputa entre o Partido Republicano Riograndense e os Federalistas, divergência que teve início com atritos ocorridos entre aqueles que procuravam a autonomia estadual frente ao poder federal e seus opositores. Há uma criança para nascer. Seu parto é arriscado, mas, na ótica do patriarca, não mais do que tentar pedir ajuda médica, saindo do Sobrado. Assim, ele arrisca a vida do filho e da esposa para manter a resistência. Ao nascer morta, a criança sem nome é enterrada no próprio porão da casa. Seus outros dois meninos (personagens de Philipe Philippsen e Felipe Rossato) trazem uma leveza para este momento denso da história. Os mesmos atores brincam de guerra à noite e interpretam soldados de dia, além de tocar os instrumentos que compõem a trilha executada ao vivo.

O espetáculo se desenvolve neste espaço predefinido, onde sentimos o tempo como algo concreto, seja nas cenas que retomam o passado dos personagens, seja apenas em suas lembranças. Contudo, não há monotonia. Ao contrário. As alterações de ritmo, ora com momentos mais calmos das conversas ao redor da fogueira, ora mais agitados dos soldados de prontidão, provocam um clima de suspense.

Neste clima claustrofóbico, criado pela impossibilidade de enfrentar o “mundo lá fora”, vivemos o drama desta história contada também com elementos lúdicos e poéticos como as fitas brancas traçadas pelos personagens, deixando Licurgo encurralado. Ao reagir à possibilidade de perigo de um ataque, todos se colocam em estado de alerta.

Logo em seguida, este é cortado por reminiscências de algum personagem da história, onde há espaço até para os “causos” dos soldados, enquanto esperam pelo desconhecido ou pela dança das mulheres que simulam o vento. Como dizia o autor, escritor de mais de trinta títulos, entre os quais a obra sobre a formação do Rio Grande do Sul que inspirou este trabalho, “quando é dia de vento, algo importante está para acontecer”. E acontece.

Mesmo os gaúchos que não leram os livros de Érico Veríssimo, um dos escritores mais populares do século XX, reconhecem elementos desta história que pode, também, ser compreendida por qualquer espectador, pois contém todos os aspectos presentes na vida de cada ser humano: as rivalidades, a família, a sobrevivência.

Mesmo aqueles que já ouviram falar dos chimangos e dos maragatos [2] não podiam imaginar como as pessoas se sentiam naquele momento. Depois deste espetáculo, eles podem. Talvez, seja por isso que nós, gaúchos, insistamos neste orgulho em cantar o hino do Rio Grande do Sul: “Mas não basta para ser livre, ser forte, valente e bravo. Povo que não tem virtude acaba por ser escravo…” Pois, não é preciso conhecer a definição de Aristóteles, que divide as virtudes em intelectuais e morais, para nutrir um sentimento de orgulho da capacidade de praticar atos justificados pela honra e defesa da terra que, só assim, tornam compreensíveis as decisões tomadas no Sobrado.

Infelizmente, de certa forma, continuamos por aqui “no cerco” já que, por enquanto, não há previsão de que o espetáculo cruze fronteiras e chegue aos estados vizinhos. Enquanto, isso, diferentemente de Licurgo, peço trégua aos inimigos que não concordarem com o que escrevo.

4 pedaços de charque e 3 quilos de erva de chimarrão

Notas

[1] A trilogia O Tempo e o Vento, do escritor brasileiro, é dividida em O Continente (1949), O Retrato (1951) e O Arquipélago (1962). O romance representa a história do estado gaúcho, de 1680 até 1945 (fim do Estado Novo), através da saga das famílias Terra e Cambará.

[2]
Maragato: Denominação dada ao revolucionário ou partidário da revolução rio-grandense de 1893, adepto do credo político pregado por Gaspar da Silveira Martins e adversário do partido então dominante, chefiado por Júlio Prates de Castilhos. Revolucionário ou partidário da revolução rio-grandense de 1923, adepto do partido liderado por Joaquim Francisco de Assis Brasil e contrário a Antônio Augusto Borges de Medeiros, governador do Estado. Federalista. O lenço vermelho o identificava.
Chimango: Alcunha dada no Rio Grande do Sul aos partidários do governo na revolução de 1923. Ave de rapina muito comum na campanha riograndense, parecida com o carcará, porém menor do que este. O lenço de cor branca o identificava.


Ficha Técnica

Texto: Erico Verissimo
Pesquisa histórica: Filipe Rossato e Philipe Philippsen
Adaptação e criação: Grupo Cerco
Direção: Inês Alcaraz Marocco   Assistência de direção: Isandria Fermiano, Kalisy Cabeda e Rodrigo Fiatt
Dramaturgia: Celso Zanini, Elisa Heidrich, Isandria Fermiano, Marina Kerber, Mirah Laline e Rodrigo Fiatt
Elenco: Anildo Michelotto, Celso Zanini, Elisa Heidrich, Filipe Rossato, Isandria Fermiano, Kalisy Cabeda, Luís Franke, Manoela Wunderlich, Marina Kerber, Martina Fröhlich, Mirah Laline, Philipe Philippsen, Rita Maurício e Rodrigo Fiatt
Cenário: Élcio Rossini
Figurino: Rô Cortinhas
Iluminação: Cláudia de Bem
Trilha sonora: Celso Zanini, Luís Franke, Martina Fröhlich e Philipe Philippsen
Produção: Adriana Som macal, Anildo Michelotto, Inês Alcaraz Marocco, Luís Franke, Manoela Wunderlich, Mirah Laline e Philipe Philippsen
Promoção: Departamento de Arte Dramática do Instituto de Artes da UFRGS
Realização: Grupo Cerco
Duração: 1h40min

Premiações

11 indicações ao Prêmio Açorianos de Teatro
4º Prêmio Braskem em Cena de Melhor Espetáculo pelo Júri Oficial
4º Prêmio Braskem em Cena de Melhor Espetáculo pelo Júri Popular
Prêmio Açorianos de Teatro de Melhor Direção, Melhor Ator Coadjuvante e Me lhor Dramaturgia
Troféu RBS Cultura de Melhor Espetáculo pelo Júri Popular

'3 comentários para “O Sobrado”'
  1. Belo comentário (crítica, opinião, o que for…) minha cara Helena!
    Realmente, este trabalho traz de volta na nossa memória, os momentos brilhantes que o Departamento de Arte Dramática viveu nos anos de 1980, onde várias montagens de professores e alunos enchiam nossos poucos teatros com peças sensacionais e de de extrema importância, como foram ‘Os Reis Vagabundos’ de Maria Helena Lopes e seu grupo Tear; ‘O Casamento do Pequeno Burguês’ de Irene Brietzke e o grupo Teatro Vivo.

    Parabéns pelo belo texto!

  2. Lindo texto, Helena!! Está digno do grande espetáculo que esse é. Beijos!

  3. Paloma B. disse:

    Tudo muito lindo!! Tanto o texto quanto o teatro ESPETACULAR!! Santa Cruz do Sul agradece a oportunidade, e aguarda mais espetáculos!!

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