Yo no soy bonita

Críticas   |    e    |    6 de outubro de 2011    |    0 comentários

Em um carro com Angélica L.

Confissão: na madrugada de domingo para segunda, eu, Ana Luiza Fortes, sonhei com Angélica Liddell, atriz, performer e dramaturga espanhola. Eu tinha assistido a uma peça dirigida e atuada por ela no domingo e o meu inconsciente é meio previsível em se tratando de sonhos. O sonho em si foi meio sem graça e pouco memorável: eu e um grupo de pessoas em um carro, uma delas era Angélica, com seu cabelo gigantesco e emaranhado. Fazia calor, mas as janelas estavam fechadas. Alguém soltou um pum, Angélica fez cara feia e abriu uma frestinha da janela. Silêncio constrangedor. Fim do sonho.

A descrição da cenografia da peça Yo no soy bonita, já exposta quando o público entrava na sala, bem poderia parecer a descrição de uma paisagem de um sonho (bem mais onírico-poético-metafórico que o da Ana, sem dúvida): um pássaro empalhado sobre uma pilha de colchões, um bolo de aniversário, uma cadeira antiga, luzes coloridas penduradas, um fogão de acampamento, novelos de lã, garrafas de cerveja, um pequeno animal morto sobre um montículo de terra, um grande cavalo branco (um animal real, vivo e dopado) cercado por cubos de feno.

No entanto, como se tratava de uma peça de Angélica Liddell, conhecida por seu trabalho performático, junto à sua companhia AtraBilis, era de se imaginar que esses objetos estariam aí a serviço da performer.

Duas informações centrais já nos haviam sido dadas pela programação do festival: que a peça era um relato de uma experiência de abuso sexual e que a atriz se cortava em cena.

Durante a peça, a atriz vai construindo um discurso provocativo, dizendo o quanto odeia os putos hombres hijos de puta e o quanto queria ser um puto hombre hijo de puta enquanto se relaciona com os objetos, se movimenta pelo espaço e, aos poucos, vai narrando a história de um soldado que a abusou em um quartel quando tinha 9 anos.

Na relação com os objetos em geral está sempre a provocação de violência e risco físico, um quase cortar-se, um quase queimar-se… Em uma das cenas, para exemplificar, toma uma garrafa de cerveja (a verdade é que metade toma e metade joga no chão), depois quebra a garrafa e em seguida dança loucamente com um caco de vidro sobre o peito. Em outra aquece leite até a fervura, por vezes colocando a mão dentro da panela e fazendo cara de dor. O ápice está na já referida cena do “cortar-se em cena”. Nesta, a performer realiza pequenos cortes com gilete nos dois joelhos, espera que a perna esteja bastante ensangüentada para depois limpar o sangue com pão e comer. Em todos esses exemplos Angélica parece querer enfatizar que sim, ela está sofrendo de verdade, que tudo aquilo é real e quase tão doloroso quanto a sua história de abuso.

Até aí tudo bastante conforme com os paradigmas e dogmas do teatro dito pós-dramático, performático, ou como queiram chamar. O problema é quando todas essas ações tão pessoais, tão fortes, tão violentas, tão-tão, soam no fim das contas tão gratuitas quanto uma propaganda de desodorante.

Pensar a relação que Angélica estabelece com os objetos em cena, de fato, pode ser uma linha central para refletir sobre o espetáculo. Angélica lida com os objetos (e com o cavalo dopado) como uma criança mimada com um brinquedo caro e novo. Nem bem usa e já joga fora para não ter que emprestar para nenhum amiguinho. Ou seja, não compartilha quase em nenhum momento com o público suas ações, que parecem entrar violentamente em choque com o seu discurso. Ela se sente usada e abusada pela sociedade, especialmente pelos homens, quer demonstrar a sua raiva e indignação com o mundo, com o que fizeram com ela. Mas acaba não ultrapassando a linha do próprio umbigo.

Em um momento até apela a frases projetadas em que faz referência a outras meninas abusadas sexualmente, mas, como todo o restante na encenação, não passa de uma referência que se esvazia rapidamente. As referências constam como elementos, como dados, uma ferramenta que não se converte em ação e que sofre o mesmo processo descartável dos objetos.

Em menos de dez minutos como espectadores, já nos damos conta de que se trata de um espetáculo expositivo. Portanto, toda e qualquer proposição de risco (físico, moral, ético…) à performer e ao público, é falsa. Não, ela não vai cortar fora sua perna, não vai queimar seu rosto com o leite, não vai levar um espectador ao palco e humilhá-lo. Todos respiram aliviados e tranqüilos na poltrona, está tudo sob controle, não há chance de que o espetáculo desande. “Além disso, ela ainda nem usou os novelos de lã e há mais uma garrafa de cerveja lacrada, portanto o espetáculo não terminará nessa cena”, poderia aparecer no balãozinho de pensamento de um espectador.

Angélica define sua poética como “pornografia da alma”. Não há melhor definição. Seu trabalho em Yo no soy bonita é abundante, é pornográfico, expõe, mostra tudo até a alma. A tal ponto que quem mostra e quem vê já não distinga a verdadeira imagem. A tal ponto que a imagem se mostre tão perfeitamente construída e delimitada que já não haja espaço para o obscuro, aquilo que não se vê, que não se pode nomear. A tal ponto que tudo se torne tão abundante e artificial quanto o pôster exclusivo de uma revista de sacanagem.

Talvez por isso os momentos da peça de mais contato com o público foram os que a artista não mostrava nada, apenas contava lembranças de sua infância no quartel, que culmina na descrição do abuso. Imagens sugestivas, ambíguas e por isso mais abertas a outras imagens, geradas pelo público: uma tarde de sol na piscina em que a jovem Angélica foi chamada de puta por um superior de seu pai; a leitura solitária de um livro de madrugada; a sensação do toque do soldado.

A artista mostra estar segura de seu discurso e ter total convicção sobre aquilo que expõe. Em suma, a artista mostra. Apenas se esquece de ir mais além do mostrar-se, exibir-se (representar-se?) insatisfeita, cansada, puta da vida.

Em um debate que aconteceu no dia seguinte ao espetáculo, uma amiga nos contou que Angélica descreveu a peça como um vômito de muitas coisas que há muito desejava falar. É uma pena que tenha vomitado sobre si mesma, ficaríamos felizes em poder nadar e refestelar nesse vômito junto a ela e todo público. Quem sabe em outra oportunidade, né, Angélica?

1 beijo pra xuxa

O que você acha?

A Bacante é Creative Commons. Alguns direitos reservados. Movida a Wordpress.