Cachorro!

Críticas   |       |    14 de julho de 2008    |    0 comentários

O Nelson não poupa ninguém

Fotos: Maurício Alcântara
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Montagens de Shakespeare e Nelson Rodrigues feitas no Brasil atualmente já estréiam devendo alguma coisa pro público. Ao término da apresentação de Cachorro!, fica aquela sensação legal, de cabeça oxigenada (ninguém tá falando pra pintar de loiro!), de que alguém se apropriou de pelo menos alguns aspectos dos textos do dramaturgo carioca. Entendo que é desnecessário se propor a uma montagem ingênua de ambos os autores, afinal já existem muitas (eu, inclusive, participei de uma) e o lugar-comum é um abismo próximo. Cachorro! começa assinalando um descompromisso com o autor e termina descompromissado também com uma suposta tradição rodriguiana (aquela do bem-fazer).

Cheguei ao teatro gripado, com sono, e superei a antipatia de um funcionário do SESC Rio Preto (a quem apelidamos carinhosamente de Montanha) que explicava com insistência que “fila indiana é aquela em que um fica atrás do outro”. Algumas pessoas ficaram de fora, com a primeira fileira de cadeiras do teatro inteiramente livre. Pendengas burocráticas à parte, era pra eu ter dormido, mas o ritmo que se impôs desde a entrada dos atores no palco é algo de um “videoclipe blasé”, com acelerações e pausas longas, que nos agarra pelo braço e nos faz um pouco menos descrentes com relação à negação uso do palco italiano.

Adaptação de livre inspiração na obra de Nelson Rodrigues, Cachorro! é uma peça curta, que conta a história de um triângulo amoroso: o marido, a mulher e o amante. E não vai faltar tudo aquilo que você espera de uma história de Nelson: traição, “morre comigo!”, ironia, personagens à beira de uma síncope, “seria tão lindo…” e aquela linha tênue que vai do trágico ao humor e vice-versa.

Mas Cachorro! é uma montagem que investe no exagero sem medo. Abdica do trágico para se entregar ao cômico por meio de um expressionismo absolutamente inverossímil, irreal, que só se institui e funciona na cena. Os atores são quase estátuas em movimento, fotografias em seqüência, primeira camada de uma textura (ainda não tô ganhando nada pra usar essa palavra) complexa que recobre e atravessa a obra de Nelson Rodrigues. Por meio da leitura que fizeram, conseguimos enxergar ecos da última montagem de Toda Nudez Será Castigada do Armazém, e muita ironia no tratamento do texto, que nos remete a Ensaio.Hamlet e Gaivota – Tema para um conto curto – inclusive essas duas companhias são referências assumidas pelo grupo carioca numa peça pré-ping-pong.

Um grupo novo, quando não se propõe ao naturalismo (tão caro à muitas montagens cariocas) acaba criando fissuras no clássico. Fissuras que revelam algo por trás da imagem, como numa tragicomédia – o ideal seria dizer uma comédia trágica – que nos faz rir dos limites do indivíduo. Não um qualquer, mas esse, brasileiro, que institui família, paga impostos e não lembra, vota e não cobra, vai trabalhando enquanto sua mulher vai sendo comida e a vida lá fora vai acontecendo. Esse indivíduo patético pra quem apontamos o dedo com a obra de Nelson Rodrigues.

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4 pétalas na boca

PS: Leia também as críticas de Marcio Freitas, Daniele Ávila, Henrique Gusmão, Celso Pontara e as fotos de Lenise Pinheiro para a peça.

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