Kamchátka

Críticas   |       |    11 de agosto de 2010    |    0 comentários

As apresentações de Kamchátka no FIT São José do Rio Preto geraram uma galeria de fotos e três críticas publicadas na Bacante. Como as críticas têm viezes diferentes e complementares, sugerimos a seguinte ordem de leitura:

1. Kamchátka – Por Astier Basílio (VOCÊ ESTÁ AQUI)
2.
Sem título – Por Fabricio Muriana
3. Não só espelho, mas também lente de aumento – Por Juliene Codognotto.

Mas, claro, você também pode ignorar nossa sugestão de ordem e ler como quiser. É tipo o Jogo de Amarelinha do Cortazar, só que não tão bom.


Kamchátka

Fotos nessa crítica: Marco Albuquerque (Veja mais aqui)

Era domingo. Cedinho ainda, pouco antes das dez da manhã. Na praça, euvia várias pessoas que tinham crachás e que não eram da comunidade do Distrito do Talhado, pertencente à cidade de São José do Rio Preto. Enquanto eu raciocinava até que ponto a interferência desse entorno poderia de alguma maneira falsificar ou interferir diretamente num espetáculo de rua. Meus pensamentos divagantes são interrompidos por uma voz. É um menino. Tem menos de dez anos. “Ei moço, moço”. Só depois do terceiro grito eu percebi que era comigo que o menino falava, me virei, ele disse: “ô moço, cê tem como sair da frente? Eu queria ver também…”. (Nesse ponto, Juli comentou comigo: “Astier, vc é um poeta. Ele só disse “dá pra sair da frente!”, bem mal educado mesmo!”)

Festival tem sempre particularidades. Chega-se com uma programação definida de espetáculos para assistir, mas entre o almoço e o caminho percorrido na van, se estabelece uma espécie de “mercado especulativo”. As peças, segundo essa metáfora, se transformam em ações. Nestas conversas, a bolsa de valores apresenta oscilações e quedas. É um bom critério? Não, a rigor, nem critério é. Mas, em geral, tiram-se estas opiniões a partir do que os que já estavam antes no festival e assistiram. Dito isto, uma das peças da grade que estava com as ações em alta era o do grupo espanhol Kamchatka, cujo espetáculo tem o mesmo nome da companhia.

Ao contrário do que o menininho pensava, os atores espanhóis não se postaram no centro da peça. Tanto ele como eu tivemos de nos deslocar obedecendo ao movimento das pessoas, aquelas que eu citei, de bermudas de marca, óculos escuros e crachás. Não sei dizer quantos no elenco eram. Presumo que uns dez. Usam roupas com um tom entre acinzentado e marrom. Alguns vestem ternos, outros, sobretudos. Todos estão de gravata, exceto a única atriz. Em comum, possuem malas. Vêm juntos. Vêm subindo e demarcando a paisagem. São rodeados por fotógrafos – apitou o meu primeiro medo, o de que a crosta midiática e a presença do exército de crachá formasse uma espécie de muro ou barreira entre o grupo e o povo.

Prefiro ir a um bar. Preciso olhar para a plateia. Alguns da vizinhança preferem permanecer onde estão, rindo, olhando de longe. Do bar, sai um senhor. Usa chapéu, tem um bigode grande, um cinturão daqueles de rodeio e botas. “Ué, vai lá, vai ver de perto, ora”, ele dizia isso para uma criança que, pressuponho, seja algum parente dele, filho ou, não seria nada inadequado dizer, o seu neto. Ele, o senhor, recomenda que o menino vá ver de perto. “São artistas”, comenta outro, também com o copo de cerveja na mão. Eles, os atores, se aproximam. Olham um moço na moto. Há uma criança na garupa. Em geral, quando um dos atores faz um movimento, por exemplo, o de acarinhar o capacete, os outros reagem de alguma maneira, desencadeia-se entre eles uma relação, um jogo.

Descem pela rua, vão atrás de uma kombi. Estão com os rostos lívidos, os olhos com ternura e um fácil sorriso lhes desenha no rosto. Um, dois, três, todos, a kombi recua; eles vão atrás da kombi – as pessoas, a essa altura, não consigo distinguir bem o pessoal da vizinhaça do povo de crachá, todos riem, acompanham; os atores põem a kombi pra correr; os atores utilizam as malas, fazem um corredor polonês; se ajoelham e esperam, a kombi entende a ‘deixa’, ultrapassa entre os atores, o público aplaude.

Em frente ao bar, que é ladeado por um mercadinho onde também se bebe cerveja, há um homem que observa tudo de cima de uma fachada. Um dos atores acena para ele. O aceno, depois de um tempo, é retribuido. O ator que acenou vai até o muro – o moço que acenou está em um segundo andar. O primeiro ator tenta subir, vem outro e o ajuda (Juliene Codognoto diz algo como que todos vieram ajudar, mas ela mesma reconhece que não se lembra bem). Ele, o ator um, sobe no muro. Ele, o ator um, contorna o telhado. Embaixo, ouço gente dizer: “será que ele vai conseguir?”; “será que ele vai ter coragem de subir?” O outro ator, que ajudou o ator um, sobe o telhado também. Há uma saída na parede para o ar condicionado do quarto. É por ela que o ator um sobe. Fica lá em cima. Fica ao lado do moço. O segundo ator, o que ficou no telhado e havia ajudado o primeiro ator a subir na fachada, recebe uma escada que desce da sacada; o segundo ator também sobe.

Neste momento o relato se mistura na ordem do que as coisas acontecem. Os demais atores tentaram entrar, por baixo e pela porta do sobrado. Eu entro, juntamente com boa parte das pessoas que acompanhavam o espetáculo, consigo ouvir a moça que trabalha lá: “gente, desculpa, eu entendo que eles tão fazendo o trabalho deles; que eles são do teatro, mas eu não posso deixar ninguém subir ali não, uai. Não tem ninguém lá. Como eu vou deixar eles subir na casa do patrão sem ninguém”. O menininho, aquele do começo do texto, me pergunta por que eles voltaram ou me pergunta por que eles não entraram lá, não lembro bem. Respondo que a moça lá não deixou ou respondo o que eu tinha ouvido há pouco, que o moço que havia acenado era especial e que não havia ninguém pra cuidar dele e que não havia como saber da reação dele. Consigo ver a expressão de tristeza dos atores que são mandados embora.

No mercadinho em frente à casa que os atores invadiram, um senhor de bermudas, uma latinha de cerveja, sentado em uma daquelas mesas amarelas da skol ri e observa tudo; mais do que isso, é observado. Eu voltarei a falar do senhor de bermudas. Preciso fazer uma pequena digressão. Quando eu percebo a forma como a dramaturgia e a própria encenação vão se completando com a participação natural do público que do espaço de observação é convidado a interagir e a dar uma resposta, me lembro da definição etimológica de teatro: “théatron”, que significa “lugar onde se vê”; e a definição sobre o lugar em que a arte se representa e a arte que é representada se confundem e chegam a ser uma coisa só em “Kamchatka”.

Volto ao senhor de bermudas. A atriz vai até ele. O senhor oferece a cerveja que bebe. Ela olha, bebe. Não lembro bem, mas acredito que depois disso vem outro ator que se deita. O senhor vê o ator no chão e coloca cerveja na boca do ator deitado, percebo que senhor meio que vira a estrela do bairro naquele momento, que muita gente comenta e ri. Após o gesto de por cerveja no ator deitado, todo o elenco, em fila, deita-se no chão: o senhor põe um pouco de cerveja na boca de cada um. Todo o elenco, retribui a gentileza; pegam o senhor com cadeira e tudo; fazem uma cama com as malas no chão em frente ao mercado – ninguém aponta nada, ninguém exige nada, os atores não falam nada; a sugestão, é isso o que os atores fazem, é aceita, o senhor deita-se nas malas; o elenco dá de beber ao senhor. (Juliene novamente ajuda minha memória precária e me diz que tudo isso acontece enquanto fazem carinho nele! Ela conta ainda que: “Isso é mega engraçado… cafuné, carinho nos pés…”)

Há ainda outra interação com o público na qual eu infiro que existam bases em que os atores estabelecem linhas de improviso, o que me remete aos jogos e as estratégias dos clowns, infelizmente não detenho tanto conhecimento suficiente para estabelecer conexões maiores, porém percebo nitidamente essa linha num dos momentos em que eles sobem (Juliene, sempre ela, corrige minha memória e diz: um deles sobe) em cima de uma van e se jogam (se joga) em uma rede de proteção composta não só pelos outros atores, mas por muitas pessoas do público.

(Alguém da Bacante, que acredito ser Fabrício ou Marco – a Juliene pitaca em letras vermelhas não é ela – me diz: Você esqueceu da música no final e das fotos em cima da Kombi!)


4 pessoas chorando 1 musiquinha cantada à capela 1 uma ciranda de abraços com estranhos que se olham sorrindo

FIT São José do Rio Preto, 18 de julho de 2010.

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