Kamchátka

Críticas   |       |    11 de agosto de 2010    |    1 comentários

As apresentações de Kamchátka no FIT São José do Rio Preto geraram uma galeria de fotos e três críticas publicadas na Bacante. Como as críticas têm viezes diferentes e complementares, sugerimos a seguinte ordem de leitura:

1. Kamchátka – Por Astier Basílio
2.
Sem título – Por Fabricio Muriana (VOCÊ ESTÁ AQUI)
3. Não só espelho, mas também lente de aumento – Por Juliene Codognotto.

Mas, claro, você também pode ignorar nossa sugestão de ordem e ler como quiser. É tipo o Jogo de Amarelinha do Cortazar, só que não tão bom.


Sem título

Fotos nessa crítica: Fabricio Muriana

Todos os dias em que passo pela praça Dom José Gaspar, no Centro de São Paulo, relembro uma peça de rua que me fez parar ali e olhar para a violência implícita na escolha de assentos sem encosto para serem colocados no espaço público. O quanto uma decisão simples como essa revela o estado de calamidade em que vivem as pessoas de rua e como são tratadas pelos governos. Esse estranhar algo que parecia 100% natural é a pedra inicial de Kamchátka, intervenção de rua apresentada no FIT Rio Preto 2010.

É batata (já diria Nelson Rodrigues). Junte um grupo de quatro ou cinco pessoas, vá ao centro da cidade e combine com todos de olhar com cara de curiosidade para qualquer ponto no alto dos prédios. Arrisco dizer que é científico: você vai conseguir pessoas que pararão do lado do grupo e vão investigar com o olhar o que está acontecendo. Você e seu grupo poderão contar com o mal humor de quem parar e ter sua curiosidade frustrada, mas vai se operar uma quebra temporal com esse exercício: sem pedir, você vai roubar alguns segundos da vida de alguém. Essa ocupação do seu tempo apressado, do seu tempo pela cidade-lugar-de-passagem, é um dos compromissos dos oito performers do grupo espanhol. Ao parar e estranhar, o grupo nos faz rever espaços mortos, privatizados, movimentos totalizantes, subjetividades afogadas e coletividades invisíveis. Enfim, a cidade e suas narrativas irreais e inexistentes, até que se olhe para elas.

Depois da segunda apresentação que vi, pergunta-me um amigo que só foi na primeira:
– E a Kombi, em que horas chegou?
РṆo, ṇo teve kombi dessa vez.
РAh, ṇo era marca̤̣o?

Não sei onde li recentemente que a diferença entre a realidade e a ficção dos nossos dias é que a ficção tem que fazer sentido – grande parêntese de comentários; Emilliano me avisa que o clichê é de Manoel Carlos, mas duvido que ele, o Mané, tenha formulado a frase; Maurício me lembra essa tira do Laerte; Paulo me lembra da retomada da razão em Hegel no século XIX em resposta ao Romantismo Alemão . Em Kamchátka, os sentidos se constróem com o que nós – público e atores – encontramos a cada apresentação. Nossa paranóia obsessivo-compulsiva por sentido é que opera a construção da história (claro, se você for de histórias).

O tempo que se institui com a chegada dos oito migrantes, de roupas cinzas e malas na mão, é o tempo da descoberta. Lento. Moroso. Curioso. Tempo de entreolhar-se. Talvez aí resida um dos aspectos técnicos da peça que me desperte curiosidade pra entender como a máquina funciona. A apresentação tem que ter mais de uma hora e não mais que uma hora e meia. Nesse tempo, desfrutamos da calma e do olhar.

Há marcações. Contei três, somente, que se constroem ao longo dos movimentos. Mas pode haver outras. Elas não entram na mesma hora exata, mas sim quando a improvisação pede: uma música que fechou a primeira apresentação e encantou uma menina na segunda; as fotos de família apresentadas em cima da Kombi na primeira e num canto do bairro na segunda; a pilha de malas presente nas duas. No mais, só podemos supor: de onde vieram aqueles imigrantes? Como pode que ninguém os ensinou qualquer língua falada? E a propriedade privada, eles não sabem o que é? O que os move?

Essas perguntas nos ocorrem ali, na rua, na praia, na feira, onde eles resolverem (ou onde os festivais resolverem que eles vão) se apresentar. No espaço público e no tempo público retomados. Nos espaços privados redescobertos pela ingenuidade. No olhar do clown que não tem obrigação de fazer rir. No choro de quem se emociona com a possibilidade do encontro como forma em si subversiva. Kamchátka é memorável por tudo aquilo que cada vez mais dificilmente encontro no teatro.

8 malas, muitas pipocas.

Kamchátka se apresentou no FIT São José do Rio Preto 2010. Assisti duas apresentações no dia 18 de julho: às 10h da manhã no distrito de Talhado e às 16h em Engenheiro Schimidt.

'1 comentário para “Kamchátka”'
  1. Julii disse:

    We’ve arrievd at the end of the line and I have what I need!

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