Quem vem lá

Críticas   |       |    18 de dezembro de 2009    |    0 comentários

Experimentando relações

Fotos da montagem: Otávio Dantas

Tablado movimento2

Foto de divulgação da peça Movimentos para atravessar a rua, concebida na Praça da Sé, em 2005

No fim do ano passado, Martha Kiss, atriz do grupo Tablado de Arruar [que agora não está mais com a galera porque foi estudar fora do Brasil], me contou, entre muitos outros episódios estranhos e curiosos, o dia em que uma senhora passou pela Praça da Sé – onde o grupo ensaiou e apresentou a peça Movimentos para atravessar a rua – olhou para os atores do grupo ensaiando em plena praça e disse: “Isso aqui se botar um muro vira hospício, se botar uma lona, vira circo”. Desde 2001, o Tablado conviveu com as inúmeras loucuras e os inúmeros elementos de arte – circense ou não – presentes espontaneamente na rua. Em 2008, o grupo resolveu que era hora de um rompimento, de experimentar outras formas, espaços, focos de produção e foi isso que os levou a Shakespeare, às salas fechadas, às apresentações na Europa e, enfim, ao Sesc Avenida Paulista, um ambiente beeeeeeeeem diferente do da Praça da Sé.

Sesc Paulista
Foto de divulga̤̣o Рsite do Sesc

Praça da Sé
Foto do site do Forum Centro Vivo

Quem vem lá, a montagem mais recente do grupo, é uma releitura [bastante] livre de Hamlet – “porra, mais um Hamlet?”, você pode dizer, se você tiver visto esse do Rio, ou esse Venezuelano, ou esse budista, ou tantos outros. Sim, parece que há uma necessidade de atores, diretores, dramaturgos em se confrontar com essa obra ou, como diria o Sálvia, “fazer o Hamlet de sua geração“. Especificamente, pelo que vi, a busca do Tablado parece ser a de encarar de frente as muitas influências que vêm “do norte” e reagir a elas, ou, mais diretamente, relacionar-se com Shakespeare, ainda que seja para sugerir que sua lógica não serve mais para este lugar e para este agora. Não da mesma maneira, pelo menos.

Tablado cocacola

A saída temporária da rua permitiu ao grupo incluir na peça textos imensos e complexos, falados muito rapidamente, que provavelmente perderiam logo a audiência dos moradores de rua da Sé, que acabariam migrando para os pregadores gritões. Abrir mão de uma fábula bem fechada, com apresentação clara de personagens e mesmo com diálogos mais óbvios, também foi algo que o grupo se permitiu ao partir para o palco – que, tranformado em uma passarela, nem foi uma opção tão tradicional assim. Por outro lado, elementos da rua passava por ali o tempo todo e pareciam gritar que aqueles artistas se formaram tocando, cantando, falando alto, fazendo caras e vozes caricatas e imensas – tudo com a segurança que a prática de vários anos lhes conferiu.

Tablado banda

O início da encenação nos aponta um possível direcionamento de olhar para o mundo, uma conexão: o estranhamento da avenida lá embaixo, de sua arquitetura, de seu significado, do comportamento das pessoas que passam por ela. Depois, no entanto, ficamos tomados por divagações bastante profundas, mas muito difícil de serem comunicadas, partilhadas. E com isso, boa parte da peça fica, por assim dizer, cifrada, direcionada para um público muito específico e previamente preparado – e talvez difícil de apreender mesmo para estes. Num dado momento, um vídeo tenta nos conectar novamente com a rua, traz imagens da urbanidade de onde o grupo partiu. Mas seguimos muito distantes dessa urbanidade e de suas questões mais pungentes, seguimos falando de outras questões, mais abstratas, questões que, pra deixar o discurso bem claro, posso tentar definir como angústias de jovens de “classe média” típica, misturadas com questões de acadêmicos distantes do real. Todas as conexões mais claras, as referências diretas, a quase-negação de Shakespeare representando as influências que compramos cegamente do norte, ignorando a realidade latinoamericana, ignorando nossa origem e, ainda, a menção aos fluxos de capitais internacionais – grande inimigo impalpável de uma geração sem inimigos – tudo isso fica para a fala final, porque é mesmo muito mais difícil transformar essa lógica complexa em encenação do que em texto. Mas talvez fosse um estimulante desafio.

Tablado ofelia planta

Não, essas características não invalidam a obra, muito menos suas posssibilidades de diálogo com o público. Ao contrário, é uma escolha muito clara e objetiva de com quem dialogar, de que tipo de relação estabelecer. O Tablado quer experimentar falar com pessoas que vivem essas angústias: da impotência, da dificuldade de lidar objetivamente com as desigualdades e injustiças do mundo, das angústias individuais vividas até o limite enquanto se despreza ou não se consegue uma conexão com nenhuma aspiração coletiva. Quer dialogar com uma busca de latinidade como ponto de origem e união, como identidade. E não pareceu possível falar destes temas na Praça da Sé enquanto as pessoas passavam frio e fome vivendo na rua na ponta extrema da exclusão do sistema.

Tablado porrete

É irônico que este seja o primeiro trabalho que eu assisti do Tablado, sabendo tanto das experiências anteriores. Irônico porque o não conhecer permite idealizar o histórico do grupo. Mas, mesmo considerando as possíveis potências desta nova experiência de relação, parece mais transformador e potente o diálogo autêntico e direto que o grupo estabelecia com a rua e sua lógica, mergulhando num mundo que não era seu, mas de que se apropriava. Este novo passo, em outra direção, não anula, nem disputa com os outros: é o diverso, é parte da pesquisa. E o que parece se apresentar como essência é um coletivo coeso – afinado, diria a Babi, mas não estou falando das canções. Um grupo em que todos se expressam com a mesma intensidade, sem destaque de um indivíduo-estrela; em sintonia. E caberá a esse coletivo, a partir de mais esta experiência, decidir correr novos riscos em mundos inéditos ou parar neste espaço e nessas questões que lhes são caras porque eles próprios pertencem a esta camada social, mas que, por outro lado, são também mais confortáveis e, por isso mesmo, mais perigosas.

Tablado cadeira

3 gargalhadas com o cachorro trepando na perna de Hamlet.

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