Terapia de ris(c)o ou Por uma outra via

Críticas   |       |    6 de outubro de 2010    |    1 comentários

Só sei que tudo sei!

Então Greg Kinner olha bem nos olhos de Abigail Breslin e diz com toda convicção do mundo: “Há dois tipos de pessoas na vida: vencedores e perdedores.”

Pausa dramática.

Numa ilha grega, à beira do mar, com o vento a fazer esculturas em seu cabelo e roupas, Meryl Streep canta The Winner Takes it All gritando loucamente “Beside the victory that’s a destiny…”

Pausa dramática

Antes da Fabiana Andrade entrar embaixo do chuveiro do Sabadão Sertanejo, uma voz em off falava uma frase de Chico Xavier: “O bem que praticares, em algum lugar, é teu advogado em toda parte.”

Pausa dramática.

Três garotas entre 20 e 30 anos recebem um bilhetinho anônimo escrito: EU SEI, com um endereço e uma convocação para uma reunião. São recepcionadas ao som de Always On My Mind por um tetraplégico cuja cadeira de rodas é empurrada por um Elvis Presley soltando estalinhos e papéis picados. Dá-se início assim a uma sessão de terapia.

Corte seco.

28 de agosto de 2010 em Brasília, a cidade mais intrigante do país. Amor e ódio andando junto com Niemeyer e Lúcio Costa. O concreto me engole e consequentemente me angustia. É impossível imaginar como é viver naquela cidade. Por mais que tenha estado ali trocentas vezes, meu GPS mental não funciona. A violência candanga se dá por caminhos diferentes de capitais como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. O desenho urbano calcula o encontro entre as pessoas. Pode. Não pode. Inesperado é uma palavra que tende a não existe nos limites do plano piloto. Brasília é uma música do Legião Urbana de 29 minutos.

Foto: Ernesto Carvalho

EU SEI.

Se eu recebesse um bilhetinho escrito EU SEI, com um chamado e um endereço, provavelmente embolaria e jogaria no lixo. Pouco me importa o que as pessoas sabem de mim. Mas minha vida pessoal não é teatro (apesar de tantas coincidências). As garotas recebem os bilhetinhos e suas consciências pesadas são abertas perante o tetraplégico Quelson. Ele odeia seu nome e insiste para que todos o chamem de senhor Q. E quanto mais alguém odeia algo, mais a gente faz. Tipo puxar a alça do sutiã das garotas na 5ª séria. Quelson (engraçado, antes disso só conhecia Quelsons com K) inicia um jogo de perguntas e respostas, sem que pra isso ninguém tenha que saber nada de ninguém antes da terapia. É o prazer da tortura interior pela combinação de peças de um quebra-cabeça que as personagens entregam.

Elvis bebe cerveja no canto e faz uma cara sensual.

Antíteses. Tentativa de tratamento realista para as interpretações, em uma dramaturgia cheia de pessoas personagificadas. Uma estudante de medicina que coleciona um pinto de um cadáver, uma dona de loja de doces bem sucedida voluntária num disque-desabafo, uma cozinheira de fast-food que sonha em ser cantora e tem perda de memória recente. Bem filminho indie de baixo orçamento com fotografia amarelada e piadas cool. Uma babaquização do mundo real. Brincar com o quase improvável pro quase provável dialogar com o público. Existe o risco de cair no patético, assim como o risco de tratar os assuntos superficialmente, em generalizações, em rir em momentos que normalmente se espera estado de choque. Cometem o risco e atolam nele até o pescoço, como se fosse uma areia movediça. Que ótimo! É teatro, não é vida rea. Quelson não está defendendo nada, está só perguntando e mostrando alguns caminhos. Isso desnorteia um pouco os neurônios das meninas e traz longas gargalhadas desconfortáveis no público que vai passando uma bandeja de maria-mole. Odeio maria-mole, passo a minha pra frente. Todo mundo repetindo: Eu posso! Eu posso! É teatro, mas os livros de auto-ajuda continuam a vender igual água no deserto, e minha vizinha assovia The Winner Takes it All enquanto lava a roupa.

Eu posso.

“Às vezes digo a mim mesmo, Clov, você precisa aprender a sofrer melhor, se quiser que parem de te punir, algum dia.” Clov passa os dias a cuidar de Hamm, cego e inválido na cadeira com rodas. Quelson é um candango becketiano, com sua paralisia, o protetor de pescoço e camiseta de Mickey Mouse. Mas diferentemente de Hamm tudo o que é implícito ou solto no ar é pra ser assim mesmo. É pra deixar brechas, fingir não ser indiferente, pra jogar verde e colher maduro.

Foto: Ernesto Carvalho

Elvis abre outra cerveja.

E dança pro público. Vestindo uma roupa azul com franjas, bebendo cerveja e fazendo caras e bocas, ele distancia. Um estranho no ninho num distanciamento brechtiano-new-generation? Suas pontuações silenciosas marcam o respiro da platéia. Queria ter assistido Anticlássico – Uma Desconferência e o Enigma Vazio só pra fazer uma comparação espirituosa entre o Hamlet da bailarina e o Elvis do cadeirante. Aparentemente o caráter dos dois vai por duas vias bem opostas, mas que convergem no papel de Liminha blasé. Ula, ula, ula ê. Aposto que nada superaria à lambida nos peitos do topetudo.

Um tiro nos últimos cinco minutos.

Me diga a mim mesmo, rápido, o que te lembra Brasília? Concreto, secura, correr de carro no eixão às cinco da manhã na faixa presidenciável, branco, LBV, sotaque brasiliense, papos intelectualóides vazios, taras, pequenas malvadezas, violência velada, vazios, jacaré no lagoa, cidade satélite que imita o plano piloto, foto em preto e branco, calor seco, cubos ao invés de prédios, justiça cega, JK.

Terapia de ris(c)o é brasiliense na medida em que caminha do mais alto ao mais baixo grau de acabamento, tentando mostrar controle, mas deixando transparecer as arestas. É o Elvis polindo, e um travesti que entra no meio pra sujar e se tornar excesso.

Um mês depois. Em outra parte do cerrado, bem menos seco. Vou colocar minha lasanha no microondas, tirar a roupa e dançar “The Winner Takes it All” na minha varanda uberlandense até chegar um bilhetinho escrito EU SEI. Moro sozinho, como comida congelada, faço trabalho voluntário e não vejo nenhum problema nisso.

02 músicas que não sairam da minha playlist por um mês

– O espetáculo foi assistido no dia 28 de agosto no Teatro Nacional, em Brasília. Fez parte da programação do Cena Contemporânea Brasília 2010.

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