A Mulher do Trem

Críticas   |       |    12 de fevereiro de 2008    |    10 comentários

Uma crítica com subtítulos

Do espaço
O espaço da Cia Os Fofos Encenam, inaugurado em 16 de novembro do ano passado é, de fato, fofo. Já assisti lá Assombrações do Recife Velho e talvez esteja até me repetindo ao dizer que é um local aconchegante, muito propício aos encontros e que isso é realmente relevante. Oferecer não um foyer com champanhe, mas cadeiras e mesas muito próximas onde as pessoas possam interagir é muito fofo, não é?. E a interação não é só entre as pessoas do público: faz parte do projeto a preparação pela própria companhia de um jantar temático ao fim das peças (o prato da vez é vaca atolada) – uma forma de, claro, ganhar uma grana e, ao mesmo tempo, estar em contato mais próximo com quem acaba de assistir ao trabalho, já que os atores também jantam ali. Eu não jantei, mas a paçoca era ótima.

Da companhia
Quando cheguei, todas as mesas já estavam ocupadas. Escolhi me sentar junto a um casal simpático. Os dois estranharam a ausência dos três sinais tradicionais, substituídos pela aparição de dois personagens da peça, que começaram a circular entre as mesas e depois nos convidaram pra ir a um ambiente mais fresquinho – no caso, o teatro propriamente dito. Embora tenham estranhado, eles gostaram. “É bom ver coisas diferentes, que surpreendam a gente”, ela me disse. Soube também que eles há tempos procuravam uma comédia que realmente os fizesse rir, uma comédia “inteligente”. Em sua última tentativa, coitados!, tinham visto duas horas de Chico Anísio contando piadas “sujas”. Bem, também não foi desta vez que os dois caíram de rir, mas a peça também não os desagradou completamente. Eu, de minha parte, fiquei contente, porque não fui a única a não morrer de rir na platéia, tinha companhia agradável comigo.

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Da peça
Começando, enfim, do começo, A Mulher do Trem é uma comédia premiada – seja lá o que isso realmente queira dizer – que andou muito por aí desde sua estréia em 2003. Agora apresentada na sede da Cia. e com algumas modificações no elenco, a peça vem na onda do circo-teatro e do resgate destas tradições (de que falarei no último subtítulo). A trama tem diversas reviravoltas e a história vai se enrolando, se enrolando, se enrolando, até envolver todos os personagens num enorme quiproquó.

Metade da peça pra enrolar, metade para desenrolar. A história e seus personagens passam longe de serem complexos, mas o tema pode ser considerado atemporal: o casamento, as traições, as relações familiares, as sogras. Dois jovens acabam de se casar. A mãe da noiva (vilã tradicional, com direito a gargalhadas tradicionais), que adorava o genro, escuta uma conversa dele com seu próprio marido, ambos falando mal dela. Na mesma ocasião, escuta o genro contar ao sogro a história de seu primeiro amor, que se concretizara em um trem com uma mulher cujo rosto estava coberto com um véu. Revoltadíssima, a sogra resolve vingar-se e procura uma maneira de anular o casamento da filha. Decide, então, dizer ao genro que ela era a mulher com quem ele, digamos, se sacudiu no balanço do trem e que a filha é o resultado desta união. O pobre fica atormentado com a idéia de ser avô dos próprios filhos e resolve anular o casamento assumindo uma amante que não tinha. Daí pra frente, como na Sessão da Tarde, “vai rolar muita confusão”.

Com todos os ingredientes tradicionais – piano acompanhando as ações, mudança de cenário feita pelos próprios atores com direito a acrobacia, maquiagem exagerada, radicalização dos estereótipos (ou tipologia, como me ensinou Alex Grulli recentemente), etc – a peça fez muita gente cair na gargalhada. Bem executados pelos atores da companhia, os estereótipos não buscavam qualquer realismo, pelo contrário, apostavam justamente na falta de verossimilhança daqueles tipos, de modo que o exagero pudesse mostrar com mais clareza as características que disfarçamos em nossa personalidade.

No entanto, as piadas e brincadeiras com os exageros são aquelas mesmas que critico em Chica Boa, piadas que já conhecemos de tantos outros trabalhos, sem nenhum toque de novidade, de contemporaneidade. Dessa forma, o mais divertido acaba sendo o entrosamento do elenco, o jogo teatral bem executado, as sutilezas acrescentadas pelos atores aos clichês do texto, além de uma brincadeira que tenta, num esforço isolado do resto da peça, contextualizar a montagem em seu tempo e espaço, ao mencionar Zé Celso – o pelado do teatro ao lado – e o Sr. Abravanel – vizinho do Zé.

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Da comparação
A peça Chica Boa, que critiquei na semana passada, também se propõe resgatar a tradição do circo-teatro. Ambas as peças foram dirigidas por Fernando Neves, diretor de família circense, que com certeza tem amplo conhecimento deste universo. A preparação dos atores, a radicalização dos estereótipos, a trilha, o cenário, o figurino, tudo em A Mulher do Trem é realizado com mais competência e entrega do que em Chica Boa, é preciso dizer. Até mesmo a trama é mais envolvente. Diante da proposta, a execução de A Mulher do Trem é impecável, desde o momento em que somos recebidos pelo criado (mais um ator com maquiagem de negão, como a nega-maluca de Chica Boa, mas este com função na peça). O que continuo questionando é que, mesmo com tal excelência na realização, ainda chama a atenção o fato de a proposta ser limitada demais, apegada até.

Do resgate
Resgatar ou não resgatar, eis a questão. Se um gênero foi tão importante como o circo-teatro na história do teatro brasileiro, tem muita coerência trazê-lo à tona para estudá-lo, mas será que reproduzi-lo acrescenta algo à cena teatral? Ou vira uma aula dinâmica de história do teatro pra ser vendida aos cursos de extensão universitária? Ou vira entretenimento sem provocação? O gênero a ser resgatado tem tamanha importância em si mesmo que não mereça ser retrabalhado, questionado? Paulo Oseas, do elenco de Chica, comentou na Bacante que “a idéia de introduzir em um núcleo fechado um elemento estranho que subverte a ordem vigente sempre funciona e é a fórmula do agente desestruturador que é atemporal”. Ele se referia ao enredo da peça em que ele atua, mas eu insisto em transpor isso, nos dois casos, para a forma e não só para o conteúdo da história. Já que estamos brincando com um formato que fez sucesso provocando os valorais morais da sociedade da época em que alcançou seu auge, por que não incluir na brincadeira um “agente desestruturador”, um “elemento estranho” e, assim, provocar também os valores de HOJE? A Mulher do Trem tinha como vantagem a temática, já que a decadência das relações familiares (tanto as relações matrimoniais quanto as de pais e filhos) é hoje ainda mais evidente do que naquela época. A estrutura familiar mudou e, no entanto, a peça, que questiona a verdade dos relacionamentos, não explorou esta mudança, deixando de impor um toque contemporâneo que, aí sim, faria a platéia rir de si mesma, dos seus próprios absurdos e exageros.

2 vacas atoladas.

'10 comentários para “A Mulher do Trem”'
  1. Alex Gruli disse:

    Em primeiro lugar… sou eu quem compra a paçoca!!! Que bom que gostou…

    Em segundo lugar, nosso bilheteiro disse que você é muito gatinha… devia ter esperado pelo menos pra gente tomar uma cerveja, né?

    Em último lugar, meu nome só tem uma letra “L”!!!

  2. Juli disse:

    E primeiro lugar… uau. Você mesmo compra a paçoca??? O vendedor de paçoca patrocina a peça?

    Em segundo lugar, nem encana com a cerveja, quando eu for ver “Deus sabia de tudo…” deixo uma foto pra vc e pro bilheteiro (vc fala daquele senhor de charmosos cabelos grisalhos, né?).

    Em terceiro lugar, desculpe pelo L a mais. Foi a emoção do aprendizado…

    Em último lugar, dessa vez vc veio mais bem humorado, né? Que bom, menino! Volte sempre…

  3. Juli disse:

    Ah, quando voltar, podemos falar de teatro tb, se vc quiser…

  4. Edu carvalho disse:

    olá, porque não podemos ir ao Teatro apenas pra nos divertir também?não digo aquele teatro comercial que nos trata feito bestas, e não tem um pingo de graça, que serve champagne na entrada do Teatro, mas porque algo que faz rir sem maiores pretensões é sempre criticado, ou visto como uma coisa menor?cansei de ver esse dito teatro cabeça, e achar um saco, vi coisas ótimas também, mas ultimamente tenho visto muita coisa até de grandes cias que pelo amor de deus, ando preferindo ficar só no bar, pq esta dificil estar no teatro, essa mania, de que tudo tem q ter um pq, um pra que…assisti a mulher do trem também e me diverti bastante, ando de saco cheio de ver ator nesses experimentos que nem eles sabem o quem estão fazendo…desculpe se em algum momento fui grosseiro, mas é minha opinião, Parabéns pelo blog

  5. Juli disse:

    Oi, Edu! Não se preocupe, vc não foi grosseiro.
    Olha, eu acho que podemos, sim, ir ao teatro simplesmente pra nos divertir. Não é o teatro de que mais gosto, mas não tenho nada contra em essência. Nesta peça, por exemplo, não critico que seja apenas diversão (até porque nem acho que seja, acho que os tipos fazem pensar tb). Mas para mim o riso está muito relacionado com o reconhecimento daquela situação, com a identificação e eu não me identifico com estas situações e, até por isso, acho que eles poderiam fazer um teatro mais relacionado com a época e o contexto em que o fazem. Isso seria ainda mais divertido…

    Quanto às porcarias do teatro “cabeça”… é duro, né? Fazer teatro cabeça sem consicência do que se faz é mto piro do que teatro só pra divertir. Mas não poemos generalizar, né? Não desista, Edu. Continue tentando… e continue ficando no bar também… é um hábito muitíssimo produtivo! rs

    Obrigada por comentar.
    Juli =)

  6. Edu Carvalho disse:

    olá, vc é muito simpática, tinha que retornar para dizer isto,rs
    gde abraço!

  7. André Domicciano disse:

    Olá!

    Como disse o amigo Edu, muitas vezes o teatro “sem pretensão” é mau visto, tanto pela crítica quanto pela dita “sociedade artística” e, creio, esse foi o motivo pelo qual os Fofos decidiram trabalhar o Circo-Teatro.

    Confesso que a Mulher do Trem mudou minha forma de pensar teatro. Me apaixonei pelo circo-Teatro desde o momento em que vi os Fofos, lá em 2003. Ali, relembrei minha própria essência enquanto ator e percebi o que estava faltando na minha vida teatral. A partir daí, também voltei meus estudos para o Circo-Teatro e fundei uma companhia em 2006 (que, agora em Junho, estréia sua segunda montagem no Centro Cultural do Jabaquara). Óbvio que não temos o conhecimento e a experiência de Fernando Neves (de quem fui aluno entre os anos de 2003 e 2006) e dos Fofos, mas temos muita dedicação no trabalho (o que nos rendeu prêmios, inclusive, em festivai de teatro. Não que isso signifique muita coisa para a crítica, mas para um grupo amador sem pretensão alguma, é um certificado que estamos no “caminho certo” e que nosso trabalho agrada de alguma forma).

    Claro que, como foi dito, a peça poderia abordar assuntos mais atuais, não se prender apenas à reconstrução da linguagem em associação aos temas da época, mas e daí? A história foi contada (muito bem, por sinal) e, como no meu caso, tocou de alguma forma. Nesse sentido, os Fofos fazem o melhor da arte: fazem teatro atemporal. E isso é muito significativo, pelo menos pra mim.

    Enfim…sempre acompanho as críticas da Bacante, gosto do bom humor, concordo com muita coisa, discordo de outras. Isso é bacana: a divergência de opiniões e o diálogo.

    Parabéns a todos – artístas, críticos, público – por contribuir na formação da cultura em nossa cidade, estado, país…

    Abraços

  8. Juli disse:

    Oi, André, tudo bem?

    Sim, acho que muitas vezes a recuperação das linguagens teatrais, por si só, pode tocar as pessoas – sobretudo as pessoas que já fazem teatro, como você, por ser referência, quase uma aulinha de história. No entanto, acho bem complicado qualquer fazer artístico desvincular-se totalmente do seu tempo.

    Com relação à sua companhia e aos prêmios, queria te explicar uma coisa, e isso é uma opinião pessoal: não é que os prêmios não significam muita coisa pra crítica. Há críticos que valorizam prêmios, há críticos que não… Pra mim, prêmios não deveriam significar muita coisa pra ninguém! Os critérios são sempre subjetivos e os prêmios fazem parte de uma lógica de disputa, não de soma cultural. Depois, viram uma chancela, como se isso realmente quisesse dizer que tal espetáculo é muito bom, quando só significa que, no dia em que aquele jurado viu, aquele jurado achou muito bom. Entende meu ponto?
    Entendo que, pra qualquer companhia, independente da experiência, é bacana ganhar um prêmio pelo reconhecimento do trabalho e porque traz oportunidades. Melhor ainda, ganhar um edital, por exemplo. Mas, nos dois casos, a meu ver, há ainda uma injustiça como ponto de partida, impossível de desvincular. Lá no plano do ideal, o perfeito seria que fossem todos reconhecidos (discutidos, criticados, pensados), não?

    Beijo grande.
    Juli =)

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