A Casa do Gaspar ou Kaspar Hauser o Órfão da Europa

Críticas   |       |    3 de setembro de 2007    |    4 comentários

Não vi, mas gostei. Por enquanto.

Leia também a crítica de Fabrício Muriana para este espetáculo.

Ilustrações: Ilo Krugli


Há mais de uma semana o céu de São Paulo estava cinza e a temperatura predominante era aquele típico “calor de chuva”. São Pedro prometeu, prometeu, mas só mandou chuva mesmo no dia em que não podia: domingo.

Não com pouco esforço, fui assistir A Casa do Gaspar ou Kaspar Hauser o Órfão da Europa, do Grupo Ventoforte, lá longe no Itaim Bibi (longe pra mim, antes que alguém diga que meu comentário é preconceituoso ) e de trem. Depois de muito esperar, finalmente o sofisticado meio de transporte – modelo europeu! – chegou. Que pena! Tive que andar umas oito estações ouvindo o hino da demagogia governamental: música clássica para o povo! Fala sério. Coloca mais trens circulando, aumenta o número de portas, sei lá, mas não venha achar que resolve alguma coisa colocar música clássica, porque quando há 777 pessoas por metro quadrado, não dá pra ouvir nada, nem o nome da estação, que dirá a Quinta Sinfonia de Beethoven.

Deixando de lado a minha revolta com meios de transporte metropolitanos, vamos avançar na história. Cheguei ao quintal do Ventoforte, um lugar que se de noite parece fantástico, durante o dia deve ser ainda mais encantador, porque aí sim deve ser possível ver todos os seus detalhes. São três espaços cobertos, madeiras e telhas, tudo meio improvisado e remendado, tudo é muito simples, tudo é aconchego, no melhor estilo quintal mesmo. Além destes espaços, há um coreto e um jardim com eucaliptos (!) – às vezes os eucaliptos caem durante as peças, mas nunca houve acidentes graves. Há também, segundo contam objetos cênicos muito originais chamados “cachorros de rua”, que invariavelmente invadem as montagens, sendo incorporados por elas. O autor deste A Casa do Gaspar, por exemplo, incorporou os tais objetos cênicos no próprio texto, que é pra não ter surpresas.

O grupo foi fundado em 1974 com a estréia da peça História de Lenços e Ventos, do autor-diretor-ator-criador-de-bonecos-exilado-político-argentino-naturalizado-
brasileiro-revolucionário-do-teatro-infantil Ilo Krugli, atual intérprete de um Kaspar Hauser com cara de palhaço-narrador. Ilo é um senhor com sotaque esquisito, mas com muito carisma, uma puta história sócio-artística e muita segurança no palco. Um cara que, enquanto o galpão enfrenta os prenúncios de uma enchente (na verdade, eram só goteiras mesmo), brinca com a chuva com a maior naturalidade.

Bem, eu estava lá, o público estava lá, os atores estavam lá… então vamos começar! As cadeiras ficavam num espacinho coberto voltadas para o coreto, onde a história tem início, mas, quase convicto, o diretor Marcello Airoldi (que também está em cartaz em Café com Torradas) nos pediu pra irmos pro relento assistir mais de perto, porque “não deve chover”. Menos de cinco minutos depois, choveu. E o Marcello, coitado, teve que pedir pra gente voltar pro coberto. “Pode deixar as cadeiras, de pé é melhor”. Ok. Mesmo sob chuva, os figurinos coloridos, feitos de tecidos picotados, chamaram atenção e encantaram o público, que está envolvido por músicas com influências populares. Então, uma companhia de teatro começa a contar a história de Kaspar Hauser, mas sem se prender aos formatos sugeridos pelo filme do Werner Herzog (O Enigma de Kaspar Hauser), por exemplo.

Somos levados, então, para um grande galpão repleto de bonecos espalhados – perfeita companhia pra quem costuma ir ao teatro sozinho e sente falta de um ombro pra encostar. Começa outra parte da encenação, que mais tarde eu soube que deveria ser feita lá fora. Eu, que estava pronta a questionar a transição mal contextualizada da parte externa para a interna, tive que ficar quieta, afinal, aquilo havia sido só um improviso para responder a São Pedro. Começam também as goteiras, uma no centro do palco, uma do meu lado, uma no boneco… e quando enfim uma gota atinge a mesa de som, a peça pára: enquanto tá no público, ok, mas na mesa de som já é prejuízo, né!?

Prejuízo lembra grana, que lembra fomento, que lembra telhas com goteira. Explico: o Ventoforte é fomentado pela prefeitura, mas a verba não é pra reformas, então, os caras têm que deixar as telhas como estão e parar o espetáculo quando chove muito. Bonito, né? Isso porque você ainda não sabe que, no ano passado, quando o senhor Kassab assumiu a prefeitura, o espaço foi interditado até que alguma mente brilhante que já estava na Secretaria de Cultura gritou: “Meu Deus, vocês interditaram o Ventoforte!”. Aí, o senhor-das-subprefeituras-faz-tudo-sem-pedir-pra-ninguém Andrea Matarazzo deu uma passadinha pelo local e se deparou com a oficina de bonecos do Ilo. Então, uma luz divina (ou terá sido uma gota?) desceu sobre a cabeça dele e ele não deixou que fechassem o lugar.

Quanto à minha experiência da paradinha no meio da peça, o que seria um problema acabou funcionando como uma ótima tática de divulgação. Vou voltar, vou levar mais gente e eles ainda vão ganhar duas resenhas na Bacante – ou uma e meia. Tudo isso pela coragem dos caras de tentar até o final. Digo, até o meio.

½ peça promissora

'4 comentários para “A Casa do Gaspar ou Kaspar Hauser o Órfão da Europa”'
  1. Ronaldo Ventura disse:

    Eu vi!

    Muito bacana!

  2. Marcello disse:

    nada mais democrático do que poder comentar o que se escreve sobre um espetáculo. pena não termos essa chance nos jornais impressos. que bom esse espaço, que certamente contribui muito para os tão importantes, e escassos, debates sobre o fazer teatral. quanto a questão politica não “explicita” na relação entre a interdição do teatro ventoforte em 2006 e o protagonista que busca a todo tempo sua casa em nossa peça, fica uma observação, do diretor e autor de a casa do gaspar, este que vos escreve. talvez na conversa que tive com fabricio antes do espetáculo, tenha gerado uma expectativa de que o assunto da interdição seria tratado de forma evidente na peça, talvez até panfletária. no entanto este acontecimento é tratado através de tudo o que há de politico na poesia da peça. o que nos fez permanecer no espaço onde estamos desde 1985, foi justamente a continuidade e relevância do trabalho do grupo ventoforte. assim, coube no espetáculo, lembrar o que nos faz de fato ter uma casa. não é gratuito o meta-teatro, que além de salvar gaspar do esquecimento e lhe dar o reconhecimento de uma origem digna, lida com a idéia que é pelo teatro, pela arte que a personagem pode ser salva, já que na “realidade” foi assassinado. o paralelo póetico e simbólico, está justamente na relação de que o grupo hoje permanece no espaço por causa do teatro que faz há 34 anos e que se complementa com a frase final de kaspar hauser, ou seria de ilo krugli: é aqui no teatro que quero ser sacrificado.
    quanto às outras questões politicas abordadas mais cruamente no espetáculo, prefiro marcar mais alguns encontros para debatê-los, e de preferencia regados a cerveja, já que de alguma forma acho que acabei ganhando dois novos amigos.

    marcello airoldi

  3. Fabrício Muriana disse:

    Caraca, Cello
    Difícil não só haver espaços de discussão, como também que as pessoas entrem na fogueira. E você entrou bem amparado.
    A Julie deve dar a opinião dela na seqüência (e sempre confio mais na memória dela do que na minha), mas estou certo de que se tivesse ouvido essa frase final do Ilo, teria mudado estruturalmente o meu texto. Quando falo dessa questão política que esperava, não é nada panfletário não. Isso tem seu lugar, mas, pelo pouco que conheci, não parece a cara do Ventoforte. Falava realmente de algo como você exemplificou, a frase final e tudo o mais. Como é praxe em peças ricas de sentidos, preciso rever. E sim, a parte da amizade e, sobretudo, da cerveja, são duas coisas que vão longe. Mas vamos marcar. A Piolín está sempre ali.
    Grande Abraço.

  4. Juli =) disse:

    Justo eu??? Fiquei tão encantada com as músicas e com os olhos do Ilo que me fixei pouco nas falas (desculpa, Cello! rs) Me lembro da frase, mas não é a última, é? Enfim… é um conteúdo político sutil e nem estamos falando que é preciso que exista um conteúdo político, enfim. Entendo que a política já está bem feita extra-peça, no dia a dia, na resistência e talz.
    Sr. Diretor, não entendi essa enrolação toda aí pra falar que acha que talvez de repente quem sabe ganhou dois amigos… ah, vá! Ganhou nada! Pagou com carona em dia de chuva, tá bem pago!

    Cervejaaaaaaaa.

    Beijo.
    Juli =)

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